terça-feira, 31 de dezembro de 2024

"Poema do Amor" - António Gedeão



João Alves de Sá (Pintor aguarelista português, 1878–1972), Vila Nova de Gaia, 1926.
 
 

Poema do Amor


Este é o poema do amor.

Do amor tal qual se fala, do amor sem mestre.
Do amor.
Do amor.
Do amor.

Este é o poema do amor.

Do amor das fachadas dos prédios e dos recipientes do lixo.
Do amor das galinhas, dos gatos e dos cães, e de toda a espécie de bicho.
Do amor.
Do amor.
Do amor.

Este é o poema do amor.

Do amor das soleiras das portas
e das varandas que estão por cima dos números das portas
com begónias e avencas plantadas em tachos e terrinas.
Do amor das janelas sem cortinas
ou de cortinas sujas e tortas.

Este é o poema do amor.

Do amor das pedras brancas do passeio
com pedrinhas pretas a enfeitá-lo para os olhos se entreterem,
e as ervas teimosas a nascerem de permeio
e os homens de cócoras a raparem-nas e elas por outro lado a crescerem.
Do amor das cadeiras cá fora em redor das mesas
com as chávenas de café em cima e o toldo de riscas encarnadas.
Do amor das lojas abertas, com muitos fregueses e freguesas
a entrarem e a saírem, e as pessoas todas muito malcriadas.

Este é o poema do amor.

Do amor do sol e do luar,
do frio e do calor,
das árvores e do mar,
da brisa e da tormenta,
da chuva violenta,
da luz e da cor.
Do amor do ar que circula
e varre os caminhos
e faz remoinhos
e bate no rosto e fere e estimula.
Do amor de ser distraído e pisar as pessoas graves,
do amor de amar sem lei nem compromisso,
do amor de olhar de lado como fazem as aves,
do amor de ir, e voltar, e tornar a ir, e ninguém ter nada com isso,
Do amor de tudo quanto é livre, de tudo quanto mexe e esbraceja,
que salta, que voa, que vibra e lateja.
Das fitas ao vento,
dos barcos pintados,
das frutas, dos cromos, das caixas de tintas, dos supermercados.

Este é o poema do amor.

O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor.
de amor.
de amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Eletrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela, tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.

Este é o poema do amor.


António Gedeão
(1906–1997), in Obra Completa
Relógio D'Água Editores
 
 
João Alves de Sá, Vista da Sé do Porto, 1926.
 

"O Porto não é em rigor uma cidade: é uma família. Quando algum mal o acomete, todos o sentem com a mesma intensidade; quando desejam alguma coisa, todos a desejam ao mesmo tempo. Os portuenses são tão ciosos da integridade da sua cidade, como os portugueses em geral da integridade da nação."  João Chagas

 
João Chagas

João Pinheiro Chagas foi um político, diplomata, escritor e jornalista nascido em 1863, no Rio de Janeiro, filho de emigrantes portugueses no Brasil, e falecido em 1925, no Estoril, em Portugal. Fez os seus estudos em Lisboa, e iniciou a sua carreira profissional no jornalismo, no jornal Primeiro de Janeiro, no Porto.
Desiludido com a questão do Ultimato inglês, tornou-se grande opositor da monarquia, que passou a criticar vivamente na imprensa. Em 1892 fundou o seu próprio jornal, República Portuguesa, que serviu como veículo de ataque e desmoralização da Monarquia.
Esteve envolvido em várias conspirações com vista ao derrube do regime. Foi condenado por implicação no 31 de janeiro de 1981, esteve degredado em Angola e depois andou foragido. Uma vez instaurada a República, foi embaixador em França, com intermitências, entre 1910 e 1923; chefe de Governo em 1911; e representante do País na Conferência de Paz e junto da Sociedade das Nações. Foi vítima de um atentado em 1915, de que resultou a perda de um olho.
 (daqui)
 

João Alves de Sá, Pastor com rebanho de ovelhas na aldeia, 1917.
 
 
João Alves de Sá, Lavadeiras, 1941, Coleção particular.

[João Alves de Sá (1878–1972) era licenciado em Direito e visconde de Alves de Sá, tendo nas últimas décadas de vida se radicado no Algueirão. 
Aguarelista contemporâneo, foi discípulo de Manuel Maria de Macedo (Manuel Maria de Macedo Pereira Coutinho Vasques da Cunha Portugal e Menezes, 1839-1915), dedicando-se também à cerâmica e, muito especialmente, à azulejaria, tendo dirigido essa secção na Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego
Foi galardoado com altas distinções como a medalha de honra em aguarela da Sociedade Nacional de Belas Artes e o 1º prémio Roque Gameiro (1947), do Secretariado Nacional de Informação, tendo participado em inúmeras exposições e dirigido vários projetos como o do pavilhão de Portugal na feira internacional de Sevilha, em 1929 e a ampliação da Câmara Municipal de Cascais, para cuja fachada elaborou os novos painéis de azulejos.] (daqui)
 

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