Karl Schmidt-Rottluff (1884–1976, German expressionist painter and printmaker;
he was one of the four founders of the artist group Die Brücke), Garden in Winter, 1969.
Sonho de uma tarde de inverno
Fiquei, longamente, a ler, no frio
da tarde quieta,
uma crónica do tempo merovíngio,
dos monges da Abadia de Cluny.
E um rádio gritante trouxe pela janela,
todo o banzo e o azougue de um samba sensual:
voo de cantáridas tontas
no hálito de incenso de uma nave,
fenestrada de ogivas e ventanas
e toda colorida de vitrais…
E no vago torpor do meu subsonho,
vi como trabalhava,
extasiado, na penumbra
parda de um meio inverno,
um monge
rendilhador de joias de ouro,
discípulo, talvez, de Santo Elói:
depois de modelar um cimo de coroa,
com Virtudes de auréola
em meio de anjos louros,
e de cinzelar,
na pasta de sol frio do rebordo
de um anel real,
uma rosácea, um gládio e um globo,
deixou errar seus dedos e seus sonhos,
e fez crescer, no jalde de um cibório,
o relevo de uma Vénus
com um Cupido ao solo…
E era tão bela a sua ideia de ouro,
e foi tão casto e cristão o beijo longo
que ele pôs na deusa,
que a ténue poeira flava do seu êxtase
de pronto se esvaiu.
E então, febril,
murmurando, constante, um exorcismo,
santificando traços, disfarçando os nus,
fez depressa da Vénus uma Virgem,
e do pagãozinho alado um menino Jesus.
Depois, sorrindo, o santo joalheiro
rezou, com outro beijo, a sua contrição…
E mil diabinhos crepitaram nas chamas,
rubros, rindo,
porque agora o seu beijo
fora ardente e pagão.
da tarde quieta,
uma crónica do tempo merovíngio,
dos monges da Abadia de Cluny.
E um rádio gritante trouxe pela janela,
todo o banzo e o azougue de um samba sensual:
voo de cantáridas tontas
no hálito de incenso de uma nave,
fenestrada de ogivas e ventanas
e toda colorida de vitrais…
E no vago torpor do meu subsonho,
vi como trabalhava,
extasiado, na penumbra
parda de um meio inverno,
um monge
rendilhador de joias de ouro,
discípulo, talvez, de Santo Elói:
depois de modelar um cimo de coroa,
com Virtudes de auréola
em meio de anjos louros,
e de cinzelar,
na pasta de sol frio do rebordo
de um anel real,
uma rosácea, um gládio e um globo,
deixou errar seus dedos e seus sonhos,
e fez crescer, no jalde de um cibório,
o relevo de uma Vénus
com um Cupido ao solo…
E era tão bela a sua ideia de ouro,
e foi tão casto e cristão o beijo longo
que ele pôs na deusa,
que a ténue poeira flava do seu êxtase
de pronto se esvaiu.
E então, febril,
murmurando, constante, um exorcismo,
santificando traços, disfarçando os nus,
fez depressa da Vénus uma Virgem,
e do pagãozinho alado um menino Jesus.
Depois, sorrindo, o santo joalheiro
rezou, com outro beijo, a sua contrição…
E mil diabinhos crepitaram nas chamas,
rubros, rindo,
porque agora o seu beijo
fora ardente e pagão.
João Guimarães Rosa, do livro 'Magma'.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 95-96.
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