domingo, 30 de junho de 2024

"Velha Natureza" - Soneto de Raul de Leoni


Frans Post (Pintor neerlandês, 1612–1680), Paisagem com plantação: o engenho, Brasil, c. 1660.
 
 

Velha Natureza
 

Tudo que a velha Natureza gera
Vai sempre rumo do melhor futuro;
Ela fecunda com o ânimo seguro
De quem muito medita e delibera…

O seu génio de artista mais se esmera
Na teoria subtil do claro-escuro,
Com que exalta a verdade mais austera,
Frisando em tudo o símbolo mais puro…

Só faz o Mau e o Hediondo para efeito
De projetar mais longe e sem nuance
A alma cheia de luz do que é perfeito,

Como cavou o Abismo nas entranhas,
Para dar mais relevo e mais alcance
À soberba estatura das montanhas… 


Raul de Leoni
(Poeta brasileiro, 1895
1926)



Frans Post, Paisagem de Pernambuco, Brasil, c. 1637–44, Museu Nacional de Belas Artes.
 
 
"O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos factos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais." 
 
Sir Francis Bacon (15611626), Novum Organum - Página 5, Jazzybee Verlag, 1620. 
 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

"Fica comigo" - Poema de Eduarda Chiote


Frederick Morgan (English painter, 1847–1927), A Gentle Reminder, c. 1899.

 

Fica comigo


Mãe,
arqueia os joelhos
para que o crepúsculo do medo
possa ceder ao berço
onde repouse.
E não me toques. Não me toques,
não me beijes.
Deixa-me permanecer aninhado no vazio
qual bicho de
sono.
Não me despertes.
Mãe, sou um menino de leite.
Apaga o seio.
Fica comigo: a noite
começa.


Eduarda Chiote
, in 'Antologia Poética'
 

quarta-feira, 26 de junho de 2024

"Casa grande" - Poema de Yvette Centeno



Edward Hopper
(American realist painter and printmaker, 1882-1967),
 

 Casa grande 


Estamos a sair da casa grande.
Malas feitas, eu já me despedi
de toda a gente,
falta só ir à cozinha
dar um último abraço.

A casa grande.
Por que vamos embora?
Igual à vida,
um sítio de passagem?
Na vida não se fica,
é só viagem…

Enquanto digo adeus
trazem como oferenda
uma taça de vidro
com morangos
polvilhados de açúcar.
Escolho alguns e chega
entretanto um dos meus filhos
a quem também são dados
em partilha.

Comemos só
um ou outro morango
a taça ainda fica cheia.

Os morangos:
fruto do coração?
Fruto vermelho
como o sangue da vida?
A vida partilhada
na hora da despedida?


Yvette Centeno
, Inédito

 
Edward Hopper, Apartment Houses, 1923, óleo sobre tela, 61 x 73,5 cm,
Pensylvania Academy of the Fine Arts, Philadelphia, PA, USA



"Com dinheiro se pode construir uma esplêndida casa, mas não uma boa família."
 
Manuel Tamayo y Baus - Fonte: Revista Caras, Edição 687, 5 de Janeiro de 2007. 
 

terça-feira, 25 de junho de 2024

"O gato" - Poema de Vinicius de Moraes



Pierre-Auguste  Renoir
(French artist, 1841–1919), Boy with cat, 1868.
 
 

O gato

 
Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, para
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.
 
 Rio de Janeiro, 1970

Vinicius de Moraes
, A arca de Noé.
 São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2003.
 
 
 
Poesia

"A poesia depende do poeta. Parece tolice querer vê-la no ar, nas flores, nas mulheres, numa sombra de casa colonial, no carnaval que termina. Não é coisa nem sopro dos deuses. Não está no reino passageiro das nuvens, nem é inconstante como os pássaros. Entre os astros também não vive, se um poeta não a persegue por lá. Pois, naquela hora, o menino a descobria no comércio do vento com as águas." 


Maurilio Camello, Memórias do Tempo Sagrado, 2022, Scortecci Editora, p. 88.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

"Xadrez" - Poema de Jorge Luis Borges



Honoré Daumier
(French painter, sculptor, and printmaker, 1808–1879), The Chess Players
c. 1863–67. Oil on wood, 24.8 cm × 32 cm., Petit Palais, Paris


Xadrez
 
I

Em seu grave rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.

Quando os rivais já se tiverem ido,
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Ténue rei, bispo em viés, encarniçada
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que da mão predestinada
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que Deus atrás de Deus a trama começa
De pó e tempo e sonho e agonias?


Jorge Luis Borges,
em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”.
São Paulo: Terracota, 2013.
Traduções de Augusto de Campos.

[Em 'Quase Borges' o poeta Augusto de Campos apresenta 20 traduções de poemas de Jorge Luis Borges 10 deles inéditos e uma entrevista que ele realizou com o poeta Argentino além de algumas fotos inéditas.] 
 

domingo, 23 de junho de 2024

"Os namorados pobres" - Poema de Adília Lopes


Eugene de Blaas (Italian painter, 1843–1931), Flirtation, 1887, oil on canvas.
 Private Collection
 

Os namorados pobres 


O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome

Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres

Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
com os dentes
e trocam alianças
feitas de cordel

Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar

O acaso
não os favorece

Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro

Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome

Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
atam um anel
ao outro
e enforcam-se

Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá para um
de cada vez

O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira

O dono da figueira
zanga-se
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço 


Adília Lopes, in “Dobra” - Poesia Reunida,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2009. 

 

sábado, 22 de junho de 2024

"Toponímia" - Poema de Inês Lourenço

 
Armando Aguiar (Pintor português, n. 1964), Porto, s.d., óleo sobre tela.
 
 
Toponímia


Mudam-se os tempos. Já
não sabemos as matinais canções
nem habitamos vilas morenas.
Toleramos serventes de pedreiro louros,
de preferência não legalizados. Queremos
um grande apartamento em condomínio
fechado, um ferrari, uma piscina, um topo
de gama de uma coisa qualquer.

Temos ruas, temos praças e pontes
com nome de revolução. Como todos
os países temos hino - nação valente
imortal. Tivemos canela e diamantes,
santos, barregãs e dinastias de
tiranos e servos. Andámos muito
no mar, trocando rotas e poderes,
escravos, inquisições e cruzes.

Agora, neste estreito
quadrilátero, de onde saímos
e mal regressámos, sem índias nem
quinto império - salvou-se o manuscrito do
Luís Vaz a nado - restam-nos a sardinha
e a conquilha - ao que consta cercadas
de barcos espanhóis - o bacalhau
que já não vem da Terra Nova, a memória
dos pescadores de baleias, esgotada a captura
nas ilhas.

Também temos o treze
de Maio, o negócio clandestino
das abortadeiras, a broa de Avintes,
os tintos, por enquanto de marca e
o leitão da Bairrada e o Benfica e
o Sporting e o Futebol
Clube do Porto.

Temos ruas, temos praças e
pontes com nome de revolução,
topónimos nebulosos que a distância
apagará. Apenas aquela rua
chamada Cantor Zeca Afonso
poderá surpreender o transeunte
se acrescentarem o aviso:

nunca quis uma rua
só para si.


Inês Lourenço, in Logros Consentidos, 
Editor: & etc, 2005.
 
 

Armando Aguiar
, Porto, s.d., óleo sobre tela.
 
 
Porto

 
"Toda a cidade, com as agulhas dos templos, as torres cinzentas, os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto dependurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha."

Há como que seteiras, fendas, passadiços e bocais de pontes diante dos nossos olhos assestados sobre essa tremenda presença de rocha, caliça e betão armado. Uma ravina profunda marca o entalhe do rio, cujas águas verdes da primavera refletem o crescente da sombra dos rabelos de velas enfunadas.

O sol parece baixo sobre a cidade segregada da pedreira; uma transcendência de melancolia paira e comove-nos. A muralha infunde em nós essa doce tristeza europeia, um orgulho de atividade, um desenho de pompas escravas, um sonho económico e uma impraticável fé de liberdade.

A muralha cresce com os seus pequenos palácios da beira-mar, os seus bairros insubstituíveis de lata e de papel, as suas casa bancárias, os crimes de venalidade e de injúria, e os alegres pais de família com uma mulher em cada braço.

Atrás das suas pedras há a nobreza mourisca, há o judeu caviloso e astuto, o fenício do grande comércio, o homem da Lusitânia criticador e inerte. Ela é a muralha povoada de funcionários e mestres de obras, de colegiais, de artistas ingleses colonialistas – e pelo capital.

A sua alma é funda e profética, os seus costumes rigorosos mas não severos – e há mais espírito na sua gente de ilha, na sua gente crua de sentimento e afeiçoada à desgraça, que nos altos patíbulos da raça onde se convertem os grandes a um passatempo de serões.

Ela é a muralha, com a cintura rodeada de nevoeiros, generosa e tímida, com a sua coroa provinciana e a luva suja na mão descalça.”

Agustina Bessa-Luís, no livro A Muralha, 1957
 

sexta-feira, 21 de junho de 2024

"Palmeira" - Poema de Bastos Tigre

 
 Anita Malfatti (Pintora, desenhista, gravadora, ilustradora e professora
 ítalo-brasileira, 1889 - 1964, Gruta da imprensa, s.d.

 

Palmeira

Olho a nobre palmeira, em cujo cimo, a fronde
Se agita a farfalhar; e, ora canta e assobia,
Ora esbraveja, em fúria, ou solta, de onde em onde,
Gemidos de uma atroz, lancinante agonia…

Que alma contraditória em teu cerne se esconde
Que te faz rir, alegre, ou suspirar, sombria?
E a palmeira imperial, humilde, me responde:
– Não sou eu! Quem me agita a fronde é a ventania!

Olho, agora, aos meus pés, uma couve tronchuda
As folhas oscilando em leve movimento,
Para cá, para lá, conforme o vento muda.

– Esta, digo eu, não tem prazer nem sofrimento!
E ela, abrindo num riso a face repolhuda,
Impa de orgulho e diz: — Sou eu quem faz o vento!


Bastos Tigre (1882-1957)

 

quinta-feira, 20 de junho de 2024

"Lume" - Poema de Alfredo Guisado





Lume 


Apagou-se, por fim, o incerto lume,
que, em volta do meu ser, ainda ardia,
e o velho alfange, de inquietante gume,
cortou o voo que meu sonho erguia.

Apagou-se, por fim, o lume incerto...
e fiquei-me entre as urzes, hesitante,
no local que para o além era o mais perto
e para voltar a mim o mais distante.

Abandonada, então, essa charneca,
vestida de silêncio, árida e seca,
rodeou-me a minha alma sonhadora.

Afastei-me. Acabei por me perder:
sem poder atingir o que quis ser
e sem poder voltar ao que já fora.


Alfredo Guisado,
"Ânfora", 1918

quarta-feira, 19 de junho de 2024

"Já velho e doente" - Poema de Vitorino Nemésio

 
Vincent van Gogh (Dutch Post-Impressionist painter, 1853–1890),
Portrait of Dr. Gachet, 1890 (1st version), Private collection.
 


Já velho e doente 
 
 
«Seja a terra da Terceira
A minha coberta de alma»,
Disse eu na idade fagueira,
Em que tudo é força e calma.

Mas hoje, já velho e doente,
Em que as almas não se cobrem,
Hoje sim, peço seriamente
Que os sinos por mim lá dobrem.

Até já me aconselharam
Um quarto lá no Hospital,
Tanto caipora me acharam,
Escaveirado, mal, mal...

Ali visitas teria
Por obra de misericórdia,
Embora comida fria,
Alguma vez, que mixórdia!

Mas sempre era doce ao peito
Ir acabar os meus dias
Na Praia, de qualquer jeito,
Perto da casa das tias.

Tive o exemplo resignado
Que me deu a prima Alzira
Num lençolinho lavado
Com rendas limpas na vira.

Ali matámos saudades,
Ela alegre e penteadinha,
Mal pensando eu que as idades
Não perdoam. Hoje é a minha.

Também cheguei a pensar
No Asilo, talvez com um biombo.
Sou biqueiro. Mas jantar?
Todos ali, lombo a lombo.

Como outrora o Tintaleis,
Três-Quinze, Manuel de Deus
Eram duas vezes seis,
Lava-Pés, e Pão-por-Deus.

Mas já sei que nem no hotel!
(A família não consente).
Tenho que amargar o fel
Mortal como toda a gente

Morrer num navio, à proa,
Numa aldeia ou num porão,
Provavelmente em Lisboa
Prò Alto de S. João.

Se acaso em Ponta Delgada
Me fosse dado ter fim:
Queria a última morada
Com Antero, em S. Joaquim.

O melhor é não pensar.
É seja onde Deus quiser.
Bem me podem sepultar
Ao pé de minha mulher. 


Vitorino Nemésio,
in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"

 
"Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"
 
 
SINOPSE

Um livro inédito de Vitorino Nemésio (1901-1978), com edição de Luiz Fagundes Duarte, que também assina o prefácio à obra. E ali explica o percurso deste livro, que reúne cerca de 130 poemas do autor de "Mau Tempo no Canal". Nemésio escreveu estes poemas entre Março de 1973 e Maio de 1997, dedicados a D. Margarida Vitória, a última das suas paixões. Antes de morrer, o poeta copiou 53 deles para um caderno, onde escreveu, na folha de rosto: "Caderno de Caligraphia Pertencente à menina Margarida Vitória q. lhe ofereçe o Victorino Nemésio". Num segundo, a que chamou "Caderno de Caligraphia Offerecido à menina Margarida Vitória pelo seu menor criado e bem querido Victorino Nemésio", estão quatro poemas. A estes, Luiz Fagundes Duarte juntou outros 70, que Nemésio não tivera oportunidade de copiar para este segundo caderno por causa da doença, de que viria a falecer. Por dificuldades várias, que o organizador explica no prefácio (questões familiares, sobretudo), só passados 25 anos sobre a morte de Nemésio, o livro vê a luz do dia. E, para além da qualidade literária (Nemésio é um dos maiores escritores da língua portuguesa no séc. XX), o livro vem confirmar o grande sedutor que também era. Como diz Rodrigues da Silva (JL, 19/2/03), referindo-se à sedução que eram as suas aulas, "o que os seus alunos, porém, talvez estivessem longe de imaginar é que ele, já depois de catedrático jubilado, dobrados os 75 anos de idade, escrevesse ainda poemas de amor e paixão como estes que ora se revelam". (daqui)
 

terça-feira, 18 de junho de 2024

"O Acre" - Poema de Rachel de Queiroz


Antônio Parreiras (Pintor, desenhista, ilustrador, escritor e professor brasileiro, 1860–1937),
A conquista do Amazonas, 1907. Óleo sobre tela, 400 x 800 cm,
Museu Histórico do Estado do Pará, Brasil.



O Acre 


Na ambição de encontrar mais borracha e mais ganho
de enricar mais depressa,
a gente deixou atrás Manaus e o Rio Negro...

Foi-se trepando pela correnteza
na procura ansiosa do ouro elástico,
ver se cumpria o eterno fado dos êxodos:
a fuga, a luta, o ganho e - coroando tudo -
a volta triunfante e endinheirada.

Lá acima, muito acima
— já longe dos rios das icamiabas guerreiras —,
tinha uma terra salubre,
onde a borracha corria livre nas veias da seringueira
sem saber de tigela e machadinha.

Os cearenses, aí, botaram a mochila no chão
e ficaram trabalhando.

Depois, eles, que chegaram sozinhos, desamparados,
acharam umas índias bonitas
que chamavam todo o mundo de usted...
E elas trataram deles, quando veio o beribéri,
e lhes deram muitos filhos entroncados e viçosos,
que enchiam os barracões de algazarra e de alegria.

E eles foram querendo bem àquela terra,
tão rica, tão sem dono,
que dava tanto dinheiro e tanta felicidade...

Mas lá vem o ditado
"Tudo no mundo se acaba,
tudo no mundo tem fim".. .
E um belo dia
apareceu o dono...

"—Vá-se embora, cearense, vá-se embora!
Você veio desbravar este buraco de mundo
pra meu proveito e meu gozo!...
A borracha, que lhe deve tanta noite mal dormida,
sou eu que quero vender!

Eu nunca abri estrada na seringa
e agora vou andar nas que você abriu...
A barraca que você levantou quando brabo
— ai! A tristeza do brabo que soluça de saudade, olhando o rio correr! -
pois também sua barraca/ filha da sua saudade,
eu quero tomar pra mim...

Eu nunca fazia nada,
porque tinha medo dos bichos que rodeiam os barracões;
você aceirou em redor,
demarcou os seringais,
e agora os bichos se amoitam com receio do seu rifle,
com medo do seu terçado.

Vá! Volte pra sua terra! Volta pior do que veio...
numa proa de navio, tão magro, tão empambado!
Chegando lá, que é que acha?
A ramada do roçado, já queimaram nas coivaras;
sua barraca de taipa, o tempo já derrubou...
E sua criaçãozinha? Mas você não comeu toda,
quando o legume faltou?...

Lá mesmo na sua terra, quem se lembra de você?
" — Aquele foi embarcado... morreu ou ficou por lá.. "
Vá! Só leve a sezão que apanhou por aqui
e a saudade de sua cunhã acreana,
dos seus curumins caboclos,
que eu também tomo pra mim..."

A resposta, qual seria?
Insolente e audacioso,
mostrou-lhe a ponta da língua,
mostrou-lhe a ponta da faca...

E, na luta pela terra,
o cearense fez mais um pouco
que tudo aquilo que os livros contam
na grande lista dos heroísmos...

Ah! O horror das trincheiras parecidas
a sepulturas encarrilhadas num zigue-zague macabro!...
Nos matagais doentios, onde as maleitas têm casa
e devoram mais vidas do que as balas,
nos combates lá no rio, na casca frágil das montarias,
e que sempre acabavam em festim de jacarés...

Pobre dono escorraçado! Chorava de fazer dó!...

E o barão do Rio Branco teve pena
e deu-lhe, pra consolo, um bocado de libras esterlinas...
e ele agarrou no dinheiro
e foi brincar de cara ou coroa...


Rachel de Queiroz, em "Mandacaru"
Org. Elvia Bezerra.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010. 
 
 
Bacia Amazónica com a localização do Rio Acre


Acre

O estado de Acre fica no extremo sudoeste da região Norte do Brasil. Faz fronteira com o estado da Amazónia, a norte, a leste com o estado da Rondónia, a sul com o Peru e a oeste e a sudeste com a Bolívia. A capital é Rio Branco. Tem uma área de 152,581 km2 e uma população de 686 652 habitantes (censo de 2006) com uma densidade de 4,5 hab/km2 e uma esperança média de vida de 70,5 anos.

O estado de Acre fica quase todo ele na floresta amazónica, daí o relevo, dominado pelos planaltos, varia entre os 200 e 300 metros de altitude. A exceção é a serra de Contamara a oeste, com 609 metros de altitude, o ponto mais alto do território. A norte existe uma zona de planície. Os rios que atravessam o Acre nascem no Peru e, ou são afluentes do Amazonas, como o Juruá e o Purus, ou vão desaguar nos seus afluentes como o Tarauacá, o Embirá, e o Acre. Durante a estação seca, os rios ficam sem caudal para a navegação, isolando a área. O clima é equatorial, quente e húmido com temperaturas de 25ºC e precipitação de 2000 a 2500 mm anuais. A vegetação é dominada pela floresta amazónica.

Em 1867, este território foi atribuído à Bolívia, pelo Tratado de Ayacucho, firmado com o Brasil. Na viragem do século XIX para o século XX, foi declarada a 1.ª República do Acre, seguida de uma segunda tentativa de implantação do regime republicano, igualmente mal sucedida. Até 1903, o Acre era território boliviano e nesse ano, José Plácido de Castro, um soldado brasileiro declarou a 3.ª República do Acre. Contudo, tropas governamentais, comandadas pelo Barão do Rio Branco, apressaram-se a tomar uma posição e marcharam para o local. Por fim, em 1903 foi assinado o Tratado de Petrópolis que entregou a região do Acre ao Brasil. A ação diplomática exercida pelo barão do Rio Branco valeu-lhe o nome para a nova capital do território. Em 1962, foi elevado à categoria de estado federal.

O estado do Acre é pouco povoado devido às dificuldades de acesso. A população concentra-se quase toda ela em duas cidades: na capital, Rio Branco e no Cruzeiro do Sul, onde também se encontra um polo de desenvolvimento económico.
A principal atividade é a extração da borracha, que teve um pico de produção no virar do século XIX para o XX e depois durante os anos 40, quando muitos nordestinos emigraram para a região. Para além do látex, tem-se apostado na extração de produtos naturais para a indústria alimentar, farmacêutica e para a cosmética. O desbravamento da floresta para criar pastagens tem sido uma ameaça à biodiversidade da região. Os rios são o principal meio de transporte e quase todos os núcleos urbanos foram construídos à beira dos rios, mas durante a época das chuvas, a comunicação por terra fica cortada e as cidades isoladas. Sem um sistema de esgotos, nem mesmo em Rio Branco, a mortalidade infantil devido à malária e à disenteria é muito elevada. (daqui)
 

segunda-feira, 17 de junho de 2024

"Gato Preto" - Poema de Rainer Maria Rilke (2 traduções)

 
Pierre Carrier-Belleuse (Peintre français, 1851-1932),
 Jeune ballerine tenant un chat noir, 1895.
 


 Gato Preto
 
Um fantasma, apesar de invisível,
acusa o toque do teu olhar,
o que não acontece com o teu pelo
negro e felpudo, que absorve tudo.

Como um louco que, num acesso
de mania, destrói tudo em redor,
e de súbito cai numa espécie de torpor,
no chão acolchoado da cela,

ele parece dissimular dentro de si,
todos os olhares que nele pousaram,
para agastado e ameaçador
se enroscar e com eles adormecer.

Mas, de súbito, desperta de novo,
volta-se para ti e olha-te nos olhos:
descobres-te, então, a ti próprio, suspenso
no âmbar amarelo dos seus olhos ovais
como se fosses um inseto e nada mais. 
 

Rainer Maria Rilke,
in Animal Animal – Um Bestiário Poético,
Assírio & Alvim, fev. 2005, página 97,
 tradução de Jorge de Sousa Braga
 
 

Lionel Lindsay
(Australian artist, 1874 - 1961)
 
 
 Gato Preto

 
Um fantasma é ainda como que um lugar
de que o teu olhar faz depender um som;
mas aqui, na negrura deste pelo,
dissolve-se a mais forte visão:
como um louco raivoso que, mesmo no auge
da fúria, bate os pés na escuridão,
de repente se achasse entre os chumaços abafantes
duma cela onde cessa e se evapora.

Assim ele parece disfarçar dentro de si
todos os olhares que jamais nele pousaram,
para sobre eles, ameaçador e agastado,
se fechar num arrepio e com eles dormir.
Mas súbito, como que desperto, volta
o rosto para ti e contempla-te nos olhos:
e então encontras o teu próprio olhar no âmbar
amarelo das pedras redondas dos seus olhos,
inesperadamente: incrustado e fóssil
como um inseto de remotas eras.


Rainer Maria Rilke,
in Poemas, As elegias de Duino e Sonetos a Orfeu
Oiro do Dia, set. 1983, página 170, 
tradução de Paulo Quintela
 

domingo, 16 de junho de 2024

"Quantas vezes me deixei ficar" - Poema de Victor Oliveira Mateus



Ramon Casas (Catalan artist, 1866–1932), Interior al aire libre (Open Air Interior), 1892.
(Ramon's sister Montserrat and his brother-in-law Eduardo Nieto)
Colección Carmen Thyssen-Bornemisza
, Museo Nacional de Arte de Cataluña
 


 Quantas vezes me deixei ficar...
 
 
Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem...

Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava

ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,

as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir

e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel. 
 

Victor Oliveira Mateus
, A Irresistível Voz de Ionatos
Fafe: Editora Labirinto, 2009.



Ramon Casas, Plein Air, c. 1890–91. Óleo sobre lienzo, 51 cm × 66 cm
Museo Nacional de Arte de Cataluña



"A solidão da poesia e do sonho tira-nos da nossa desoladora solidão."

Albert Béguin, "Poesia da Presença" 
 

sábado, 15 de junho de 2024

"Invocação à Mocidade" - Poema de Pinheiro Chagas



Édouard Bisson
(Pintor francês pré-rafaelita, 1856-1939), A dança das ninfas, s.d.


Invocação à Mocidade


Sonhos da mocidade! ardentes devaneios,
que me afagais gentis, quando esmorece o sol!
Frescas visões de amor! suavíssimos gorjeios,
que desprende em meu peito ignoto rouxinol!

Vagas aspirações! poemas indivisíveis,
que na fragrante balsa, e no rosal colhi!
Vago e meigo cismar d'amores impossíveis
com virgens ideais, fantasmas que entrevi!

Sois o enlevo gentil, que a mente me extasia!
Oh! loira juventude! Oh! nume encantador!
Quero no teu altar, que hoje profana a orgia,
puro incenso queimar, sagrar-te um casto amor!

Hoje dum meigo olhar, fulgida luz divina
nem já desperta amor num jovem coração!
Juvenis corações somente os ilumina,
com chamas infernais, satânica ambição!

Oh! quem fora cantor de lira omnipotente
para estampar «infâmia» em fronte juvenil,
que arranca desfolhada a coroa d'inocente,
e a arroja ao tremedal dum egoísmo vil!

Outrora, antes de entrar na solidão da vida,
vasto areal, que rouba ao triste as ilusões,
tragando-as sem cessar, e o deixa à partida,
sem flores, que uma a uma as colhem os tufões,

era oásis gentil a mocidade ardente!
Sentia-se girar o sangue com fervor!
Era a idade louçã; pura se erguia a frente,
desabrochavam n'alma os cânticos d'amor!

Para um beijo colher em lábios de donzela,
por trémulo apertar d'alva, pequena mão;
para que um vulto esquivo assome na janela,
e a noite encha de luz, radiante aparição,

fora a vida arriscar jovem apaixonado!
Oh! loucuras gentis! creio ainda escutar
no campo, ao longe, o canto enamorado
de fresca serenata em noites de luar!

Hoje só prosa vil! Noites de primavera,
debalde vos perfuma o laranjal em flor!
Poético cismar, sois uma vã quimera!
A nova geração sabe zombar do amor!

Eu, ao ver despontar ridente o sol da vida,
amo, canto, respiro as auras da manhã;
brisas da mocidade, áurea estação florida,
da existência sem luz aurora tão louçã!

E creio com fervor! sinto, na mente, puro
o fogo da poesia audaz resplandecer!
Guardo no coração, como em sacrário obscuro,
o amor da natureza, o culto da mulher!

Vela no peito meu sempre o fogo sagrado,
musa do puro amor, ó cândida vestal!
nunca o sopro do mundo atroz, ímpio, malvado
te infame, te macule a fronte virginal!

A singela canção, que a fresca mocidade
me fez brotar da mente, acolhe-a tu, gentil
arcanjo d'anos vinte, anjo da flórea idade,
ó nume inspirador do canto juvenil!

Meus versos ilumine a luz, que te rodeia!
Flores do teu regaço os venham perfumar!
No peito do cantor sagrada chama ateia!
Bafeja-lhe as canções! Inflama-lhe o cantar!


Manuel Pinheiro Chagas
, em "Poema da Mocidade"
 
 
"Poema da Mocidade" de Pinheiro Chagas


Poema da Mocidade
 
Da autoria de Pinheiro Chagas, é o volume que reúne o Poema da Mocidade, do qual alguns fragmentos já tinham sido publicados na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, e o poemeto Anjo do Lar, inicialmente publicado em 1863. A obra abre com uma "Invocação à mocidade", onde o jovem autor censura a juventude que prostitui a sua lira e a sacrifica à ambição e ao ceticismo, demarcando-se veementemente dessa posição: "E creio com fervor! sinto, na mente, puro/ o fogo da poesia audaz resplandecer!/ Guardo no coração, como em sacrário obscuro,/ o amor da natureza, o culto da mulher!". O mesmo tom está patente na "Carta" a António Feliciano de Castilho, onde Pinheiro Chagas preconiza uma poesia que promova o "culto dos afetos santos e puros" e contribua para desprender "o espírito universal dos torpes laços com que a matéria procura prender a humanidade ao rochedo do embrutecimento". 
O Poema da Mocidade acaba por ser recordado pela sua relação com o desencadear da Questão Coimbrã, já que, como é sabido, foram as referências irónicas de Castilho, na sua carta-posfácio, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteligível que motivaram as reações de Antero de Quental e Teófilo Braga. (daqui)
 
 
Manuel Pinheiro Chagas em 1875 
(fotografia de Alfred Fillon, in O Contemporâneo, 1875) 
 

Pinheiro Chagas

Escritor português nascido a 12 de novembro de 1842, em Lisboa, e falecido a 8 de abril de 1895, na mesma cidade, Manuel Joaquim Pinheiro Chagas foi também um célebre polígrafo da segunda metade do século XIX, jornalista, poeta, novelista, historiador, dramaturgo, crítico literário e tradutor (de Ponson du Terrail, Alexandre Dumas, Octave Feuillet, Alfred de Vigny e Jules Verne, entre outros autores).
Interessou-se pela política, tendo-se notabilizado como orador e tendo exercido os cargos de deputado pelo Partido Regenerador e de ministro da Marinha, em 1883. Ocupou, entre várias funções, o cargo de professor no Curso Superior de Letras, para o qual concorreu com Teófilo Braga. Em 1865, publicou o Poema da Mocidade, cujo posfácio, assinado por António Feliciano de Castilho, seu amigo, viria a suscitar a Questão Coimbrã, na qual Pinheiro Chagas tomou parte, com o opúsculo Bom senso e bom gosto. Folhetim a propósito da carta que o sr. Antero de Quental dirigiu ao sr. A. F. de Castilho, onde defendeu Castilho, contestando a novidade e a substância das ideias literárias sustentadas por Antero.
Em 1869, publicou A Morgadinha de Valflor, que o notabilizaria como dramaturgo. Em 1871, interveio a favor do encerramento das Conferências Democráticas do Casino. Fundou, em 1876, o Diário da Manhã, mas colaborou em variadíssimos jornais e revistas, entre os quais O Panorama, Arquivo Pitoresco, Gazeta de Portugal, Jornal do Comércio, Diário de Notícias, A Ilustração Portuguesa, Revolução de setembro e Artes e Letras. Neles assinou numerosos artigos de crítica literária, em parte recolhidos nos volumes Ensaios críticos e Novos ensaios críticos, de 1866 e 1867, respetivamente. 
Conhecido hoje em dia sobretudo pelo conservadorismo das posições assumidas contra a Geração de 70 e pelo convencionalismo da sua obra literária, excessivamente marcada pelo ultrarromantismo, Pinheiro Chagas mereceria porventura uma releitura, principalmente no tocante à sua produção como crítico literário.
Pinheiro Chagas deixou-nos livros magníficos, onde demonstra as suas imensas faculdades intelectuais, de entre os quais ressaltam títulos como A Flor Seca, Os Guerrilheiros da Morte, O Terramoto de Lisboa e A Mantilha de Beatriz. (daqui)
 

sexta-feira, 14 de junho de 2024

"Arte Poética" - Poema de José Augusto Seabra


Peter Ilsted (Danish printmaker and painter, 1861–1933), The Open Door, c. 1910.



Arte Poética


Surdo às palavras dos poetas fáceis.
Cego às imagens e ao mistério inútil.
Troquei as sombras por um sol lavado,
enjoo as cores da beleza fútil.

Poesia é - se a crio - a do real.
(Real o sonho, e sonho o descobri-lo.)
Prefiro este sabor de o tatear
às horas podres gastas a iludi-lo.

Sei pelo esforço o que a magia ignora.
Tenho asas tão leves nos sentidos
como as que nuvens de evasão vagueiam
por espaços só delas pressentidos.

Encontro em cada coisa o que é comum.
Reparto cada instante mais pequeno
da intimidade oculta dos meus gestos.
Sereno escrevo e a vós me dou sereno.

Sois o eco e o som da minha voz.
Amais a claridade e eu sou claro.
Dispo-me inteiro se preciso for
e no que é simples é que busco o raro.


José Augusto Seabra, em 'A Vida Toda', 1961


José Augusto Seabra, 'A Vida Toda'. Poemas.
Edição do autor. Porto, 1961.


A Vida Toda
 
O primeiro volume de poesia publicado por José Augusto Seabra reúne composições escritas entre 1955 e 1961, inserindo o autor, cronologicamente, no contexto da Geração de 50. Dentre as tendências deste período, a poesia de A Vida Toda distingue-se pela expressão de uma angústia, de uma solidão e de uma tristeza, que, sendo individuais, não decorrem do ensimesmamento do indivíduo na sua subjetividade, refletindo, antes, o contexto mental coletivo de que são eco; por outras palavras, o título A Vida Toda parece receber menos o investimento emotivo de um homem particular do que a expressão do humano ou de um certo humanismo. Ao mesmo tempo, a poesia de A Vida Toda, preferindo a regularidade métrica e rítmica, e recorrendo a formas fixas, como o soneto, apresenta o autor como um caso ímpar de continuidade com a tradição lírica pré-moderna, reescrita, porém, à luz das aquisições da própria modernidade: "Encontro em cada coisa o que é comum./ Reparto cada instante mais pequeno/ da intimidade oculta dos meus gestos./ Sereno escrevo e a vós me dou sereno.// Sois o eco e o som da minha voz./ Amais a claridade e eu sou claro./ Dispo-me inteiro se preciso for/ e no que é simples é que busco o raro." ("Arte Poética") (daqui)
 
 

quinta-feira, 13 de junho de 2024

"Esplanada" - Poema de Manuel António Pina


Conrad Kiesel (German sculptor and painter, 1846-1921), Day dreaming, c. 1921.
 
 

Esplanada 


Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
in 'Um Sítio onde Pousar a Cabeça',
Edição do autor, 1991.
 

quarta-feira, 12 de junho de 2024

"Saudade" - Poema de Carlos Melo Santos


Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), Isolation, c. 1907-12.


 Saudade


Ter saudade
é vaga disforme de um corpo.
Ter saudade
é pássaro que aparece e se apaga
erguido de confusão
na angústia, teste dado à natureza
bruxuleante dentro de mim.
Ter saudade
é fingir qualquer coisa que inquieta,
levantada, desenterrada do crivo da memória.
Por vezes quando o tempo por ela passa
não passa o tempo da saudade,
estátua rígida dum destino anoitecido,
passa um nada meio acontecido.
Saudade,
é filha da alma do mundo
que de tanto ser outro
sou eu já.
Saudade,
porque viajas cansada
em horas dentro de mim?
Saudade
que vieste até à última força desta linha,
brumosa da eterna caminhada.
Sempre que vieres
sem avisares
leva-me contigo
para que a paz volte
à memória de meu corpo
como o rio que passa
no tempo final da minha natureza.


Carlos Melo Santos (1956-2021),
 in "Lavra de Amor"


terça-feira, 11 de junho de 2024

"Carta a um amor" - Poema de Lindolf Bell


Thomas Eakins (American realist painter, photographer, sculptor, and fine arts educator,
1844 – 1916), Portrait of Maud Cook, 1895, Yale University Art Gallery, New Haven.



Carta a um amor 

 
Poderias deixar de ter sido
o deslumbramento para mim?
Responde-me: é preciso justificar.
Olhei em teus olhos e falei:
eis a minha morada.

Ah! O mistério, o mistério foi suficiente
para conter-nos.
Mas entre as múltiplas tendências
te escolhi
e te ampliei.

Um cavalo desenfreado correu-me
quando tuas mãos floriram sobre mim.
Tentei amar o irreversível
mas o que se descobre
ou cresce
ou se lega
ou perde equilíbrio e força.
Pelas bordas das coisas
se perdem os excessos
e meu coração foi tanto
quanto um coração pode ser.

Não. Não quero extravasar
de ti os outros,
mas quero ser o eleito.

Jamais nos é possível entrever,
porque o que há em nós
suspeita apenas,
e o que vem para nós
não nos pertence com facilidade.

Poderias deixar de ter sido
o deslumbramento para mim?
Ainda que respondesses, sim,
não o poderia aceitar.
Olhei em teus olhos e falei:
eis a minha morada. 
 

Lindolf Bell, in "Convocação",
São Paulo: Brasil, 1965.