sexta-feira, 14 de junho de 2024

"Arte Poética" - Poema de José Augusto Seabra


Peter Ilsted (Danish printmaker and painter, 1861–1933), The Open Door, c. 1910.



Arte Poética


Surdo às palavras dos poetas fáceis.
Cego às imagens e ao mistério inútil.
Troquei as sombras por um sol lavado,
enjoo as cores da beleza fútil.

Poesia é - se a crio - a do real.
(Real o sonho, e sonho o descobri-lo.)
Prefiro este sabor de o tatear
às horas podres gastas a iludi-lo.

Sei pelo esforço o que a magia ignora.
Tenho asas tão leves nos sentidos
como as que nuvens de evasão vagueiam
por espaços só delas pressentidos.

Encontro em cada coisa o que é comum.
Reparto cada instante mais pequeno
da intimidade oculta dos meus gestos.
Sereno escrevo e a vós me dou sereno.

Sois o eco e o som da minha voz.
Amais a claridade e eu sou claro.
Dispo-me inteiro se preciso for
e no que é simples é que busco o raro.


José Augusto Seabra, em 'A Vida Toda', 1961


José Augusto Seabra, 'A Vida Toda'. Poemas.
Edição do autor. Porto, 1961.


A Vida Toda
 
O primeiro volume de poesia publicado por José Augusto Seabra reúne composições escritas entre 1955 e 1961, inserindo o autor, cronologicamente, no contexto da Geração de 50. Dentre as tendências deste período, a poesia de A Vida Toda distingue-se pela expressão de uma angústia, de uma solidão e de uma tristeza, que, sendo individuais, não decorrem do ensimesmamento do indivíduo na sua subjetividade, refletindo, antes, o contexto mental coletivo de que são eco; por outras palavras, o título A Vida Toda parece receber menos o investimento emotivo de um homem particular do que a expressão do humano ou de um certo humanismo. Ao mesmo tempo, a poesia de A Vida Toda, preferindo a regularidade métrica e rítmica, e recorrendo a formas fixas, como o soneto, apresenta o autor como um caso ímpar de continuidade com a tradição lírica pré-moderna, reescrita, porém, à luz das aquisições da própria modernidade: "Encontro em cada coisa o que é comum./ Reparto cada instante mais pequeno/ da intimidade oculta dos meus gestos./ Sereno escrevo e a vós me dou sereno.// Sois o eco e o som da minha voz./ Amais a claridade e eu sou claro./ Dispo-me inteiro se preciso for/ e no que é simples é que busco o raro." ("Arte Poética") (daqui)
 
 

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