sábado, 15 de junho de 2024

"Invocação à Mocidade" - Poema de Pinheiro Chagas



Édouard Bisson
(Pintor francês pré-rafaelita, 1856-1939), A dança das ninfas, s.d.


Invocação à Mocidade


Sonhos da mocidade! ardentes devaneios,
que me afagais gentis, quando esmorece o sol!
Frescas visões de amor! suavíssimos gorjeios,
que desprende em meu peito ignoto rouxinol!

Vagas aspirações! poemas indivisíveis,
que na fragrante balsa, e no rosal colhi!
Vago e meigo cismar d'amores impossíveis
com virgens ideais, fantasmas que entrevi!

Sois o enlevo gentil, que a mente me extasia!
Oh! loira juventude! Oh! nume encantador!
Quero no teu altar, que hoje profana a orgia,
puro incenso queimar, sagrar-te um casto amor!

Hoje dum meigo olhar, fulgida luz divina
nem já desperta amor num jovem coração!
Juvenis corações somente os ilumina,
com chamas infernais, satânica ambição!

Oh! quem fora cantor de lira omnipotente
para estampar «infâmia» em fronte juvenil,
que arranca desfolhada a coroa d'inocente,
e a arroja ao tremedal dum egoísmo vil!

Outrora, antes de entrar na solidão da vida,
vasto areal, que rouba ao triste as ilusões,
tragando-as sem cessar, e o deixa à partida,
sem flores, que uma a uma as colhem os tufões,

era oásis gentil a mocidade ardente!
Sentia-se girar o sangue com fervor!
Era a idade louçã; pura se erguia a frente,
desabrochavam n'alma os cânticos d'amor!

Para um beijo colher em lábios de donzela,
por trémulo apertar d'alva, pequena mão;
para que um vulto esquivo assome na janela,
e a noite encha de luz, radiante aparição,

fora a vida arriscar jovem apaixonado!
Oh! loucuras gentis! creio ainda escutar
no campo, ao longe, o canto enamorado
de fresca serenata em noites de luar!

Hoje só prosa vil! Noites de primavera,
debalde vos perfuma o laranjal em flor!
Poético cismar, sois uma vã quimera!
A nova geração sabe zombar do amor!

Eu, ao ver despontar ridente o sol da vida,
amo, canto, respiro as auras da manhã;
brisas da mocidade, áurea estação florida,
da existência sem luz aurora tão louçã!

E creio com fervor! sinto, na mente, puro
o fogo da poesia audaz resplandecer!
Guardo no coração, como em sacrário obscuro,
o amor da natureza, o culto da mulher!

Vela no peito meu sempre o fogo sagrado,
musa do puro amor, ó cândida vestal!
nunca o sopro do mundo atroz, ímpio, malvado
te infame, te macule a fronte virginal!

A singela canção, que a fresca mocidade
me fez brotar da mente, acolhe-a tu, gentil
arcanjo d'anos vinte, anjo da flórea idade,
ó nume inspirador do canto juvenil!

Meus versos ilumine a luz, que te rodeia!
Flores do teu regaço os venham perfumar!
No peito do cantor sagrada chama ateia!
Bafeja-lhe as canções! Inflama-lhe o cantar!


Manuel Pinheiro Chagas
, em "Poema da Mocidade"
 
 
"Poema da Mocidade" de Pinheiro Chagas


Poema da Mocidade
 
Da autoria de Pinheiro Chagas, é o volume que reúne o Poema da Mocidade, do qual alguns fragmentos já tinham sido publicados na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, e o poemeto Anjo do Lar, inicialmente publicado em 1863. A obra abre com uma "Invocação à mocidade", onde o jovem autor censura a juventude que prostitui a sua lira e a sacrifica à ambição e ao ceticismo, demarcando-se veementemente dessa posição: "E creio com fervor! sinto, na mente, puro/ o fogo da poesia audaz resplandecer!/ Guardo no coração, como em sacrário obscuro,/ o amor da natureza, o culto da mulher!". O mesmo tom está patente na "Carta" a António Feliciano de Castilho, onde Pinheiro Chagas preconiza uma poesia que promova o "culto dos afetos santos e puros" e contribua para desprender "o espírito universal dos torpes laços com que a matéria procura prender a humanidade ao rochedo do embrutecimento". 
O Poema da Mocidade acaba por ser recordado pela sua relação com o desencadear da Questão Coimbrã, já que, como é sabido, foram as referências irónicas de Castilho, na sua carta-posfácio, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteligível que motivaram as reações de Antero de Quental e Teófilo Braga. (daqui)
 
 
Manuel Pinheiro Chagas em 1875 
(fotografia de Alfred Fillon, in O Contemporâneo, 1875) 
 

Pinheiro Chagas

Escritor português nascido a 12 de novembro de 1842, em Lisboa, e falecido a 8 de abril de 1895, na mesma cidade, Manuel Joaquim Pinheiro Chagas foi também um célebre polígrafo da segunda metade do século XIX, jornalista, poeta, novelista, historiador, dramaturgo, crítico literário e tradutor (de Ponson du Terrail, Alexandre Dumas, Octave Feuillet, Alfred de Vigny e Jules Verne, entre outros autores).
Interessou-se pela política, tendo-se notabilizado como orador e tendo exercido os cargos de deputado pelo Partido Regenerador e de ministro da Marinha, em 1883. Ocupou, entre várias funções, o cargo de professor no Curso Superior de Letras, para o qual concorreu com Teófilo Braga. Em 1865, publicou o Poema da Mocidade, cujo posfácio, assinado por António Feliciano de Castilho, seu amigo, viria a suscitar a Questão Coimbrã, na qual Pinheiro Chagas tomou parte, com o opúsculo Bom senso e bom gosto. Folhetim a propósito da carta que o sr. Antero de Quental dirigiu ao sr. A. F. de Castilho, onde defendeu Castilho, contestando a novidade e a substância das ideias literárias sustentadas por Antero.
Em 1869, publicou A Morgadinha de Valflor, que o notabilizaria como dramaturgo. Em 1871, interveio a favor do encerramento das Conferências Democráticas do Casino. Fundou, em 1876, o Diário da Manhã, mas colaborou em variadíssimos jornais e revistas, entre os quais O Panorama, Arquivo Pitoresco, Gazeta de Portugal, Jornal do Comércio, Diário de Notícias, A Ilustração Portuguesa, Revolução de setembro e Artes e Letras. Neles assinou numerosos artigos de crítica literária, em parte recolhidos nos volumes Ensaios críticos e Novos ensaios críticos, de 1866 e 1867, respetivamente. 
Conhecido hoje em dia sobretudo pelo conservadorismo das posições assumidas contra a Geração de 70 e pelo convencionalismo da sua obra literária, excessivamente marcada pelo ultrarromantismo, Pinheiro Chagas mereceria porventura uma releitura, principalmente no tocante à sua produção como crítico literário.
Pinheiro Chagas deixou-nos livros magníficos, onde demonstra as suas imensas faculdades intelectuais, de entre os quais ressaltam títulos como A Flor Seca, Os Guerrilheiros da Morte, O Terramoto de Lisboa e A Mantilha de Beatriz. (daqui)
 

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