Armando Aguiar (Pintor português, n. 1964), Porto, s.d., óleo sobre tela.
Toponímia
Mudam-se os tempos. Já
não sabemos as matinais canções
nem habitamos vilas morenas.
Toleramos serventes de pedreiro louros,
de preferência não legalizados. Queremos
um grande apartamento em condomínio
fechado, um ferrari, uma piscina, um topo
de gama de uma coisa qualquer.
Temos ruas, temos praças e pontes
com nome de revolução. Como todos
os países temos hino - nação valente
imortal. Tivemos canela e diamantes,
santos, barregãs e dinastias de
tiranos e servos. Andámos muito
no mar, trocando rotas e poderes,
escravos, inquisições e cruzes.
Agora, neste estreito
quadrilátero, de onde saímos
e mal regressámos, sem índias nem
quinto império - salvou-se o manuscrito do
Luís Vaz a nado - restam-nos a sardinha
e a conquilha - ao que consta cercadas
de barcos espanhóis - o bacalhau
que já não vem da Terra Nova, a memória
dos pescadores de baleias, esgotada a captura
nas ilhas.
Também temos o treze
de Maio, o negócio clandestino
das abortadeiras, a broa de Avintes,
os tintos, por enquanto de marca e
o leitão da Bairrada e o Benfica e
o Sporting e o Futebol
Clube do Porto.
Temos ruas, temos praças e
pontes com nome de revolução,
topónimos nebulosos que a distância
apagará. Apenas aquela rua
chamada Cantor Zeca Afonso
poderá surpreender o transeunte
se acrescentarem o aviso:
nunca quis uma rua
só para si.
Mudam-se os tempos. Já
não sabemos as matinais canções
nem habitamos vilas morenas.
Toleramos serventes de pedreiro louros,
de preferência não legalizados. Queremos
um grande apartamento em condomínio
fechado, um ferrari, uma piscina, um topo
de gama de uma coisa qualquer.
Temos ruas, temos praças e pontes
com nome de revolução. Como todos
os países temos hino - nação valente
imortal. Tivemos canela e diamantes,
santos, barregãs e dinastias de
tiranos e servos. Andámos muito
no mar, trocando rotas e poderes,
escravos, inquisições e cruzes.
Agora, neste estreito
quadrilátero, de onde saímos
e mal regressámos, sem índias nem
quinto império - salvou-se o manuscrito do
Luís Vaz a nado - restam-nos a sardinha
e a conquilha - ao que consta cercadas
de barcos espanhóis - o bacalhau
que já não vem da Terra Nova, a memória
dos pescadores de baleias, esgotada a captura
nas ilhas.
Também temos o treze
de Maio, o negócio clandestino
das abortadeiras, a broa de Avintes,
os tintos, por enquanto de marca e
o leitão da Bairrada e o Benfica e
o Sporting e o Futebol
Clube do Porto.
Temos ruas, temos praças e
pontes com nome de revolução,
topónimos nebulosos que a distância
apagará. Apenas aquela rua
chamada Cantor Zeca Afonso
poderá surpreender o transeunte
se acrescentarem o aviso:
nunca quis uma rua
só para si.
Inês Lourenço, in Logros Consentidos,
Editor: & etc, 2005.
"Toda a cidade, com as agulhas dos templos, as torres cinzentas, os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto dependurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha."
Há como que seteiras, fendas, passadiços e bocais de pontes diante dos nossos olhos assestados sobre essa tremenda presença de rocha, caliça e betão armado. Uma ravina profunda marca o entalhe do rio, cujas águas verdes da primavera refletem o crescente da sombra dos rabelos de velas enfunadas.
O sol parece baixo sobre a cidade segregada da pedreira; uma transcendência de melancolia paira e comove-nos. A muralha infunde em nós essa doce tristeza europeia, um orgulho de atividade, um desenho de pompas escravas, um sonho económico e uma impraticável fé de liberdade.
A muralha cresce com os seus pequenos palácios da beira-mar, os seus bairros insubstituíveis de lata e de papel, as suas casa bancárias, os crimes de venalidade e de injúria, e os alegres pais de família com uma mulher em cada braço.
Atrás das suas pedras há a nobreza mourisca, há o judeu caviloso e astuto, o fenício do grande comércio, o homem da Lusitânia criticador e inerte. Ela é a muralha povoada de funcionários e mestres de obras, de colegiais, de artistas ingleses colonialistas – e pelo capital.
A sua alma é funda e profética, os seus costumes rigorosos mas não severos – e há mais espírito na sua gente de ilha, na sua gente crua de sentimento e afeiçoada à desgraça, que nos altos patíbulos da raça onde se convertem os grandes a um passatempo de serões.
Ela é a muralha, com a cintura rodeada de nevoeiros, generosa e tímida, com a sua coroa provinciana e a luva suja na mão descalça.”
Há como que seteiras, fendas, passadiços e bocais de pontes diante dos nossos olhos assestados sobre essa tremenda presença de rocha, caliça e betão armado. Uma ravina profunda marca o entalhe do rio, cujas águas verdes da primavera refletem o crescente da sombra dos rabelos de velas enfunadas.
O sol parece baixo sobre a cidade segregada da pedreira; uma transcendência de melancolia paira e comove-nos. A muralha infunde em nós essa doce tristeza europeia, um orgulho de atividade, um desenho de pompas escravas, um sonho económico e uma impraticável fé de liberdade.
A muralha cresce com os seus pequenos palácios da beira-mar, os seus bairros insubstituíveis de lata e de papel, as suas casa bancárias, os crimes de venalidade e de injúria, e os alegres pais de família com uma mulher em cada braço.
Atrás das suas pedras há a nobreza mourisca, há o judeu caviloso e astuto, o fenício do grande comércio, o homem da Lusitânia criticador e inerte. Ela é a muralha povoada de funcionários e mestres de obras, de colegiais, de artistas ingleses colonialistas – e pelo capital.
A sua alma é funda e profética, os seus costumes rigorosos mas não severos – e há mais espírito na sua gente de ilha, na sua gente crua de sentimento e afeiçoada à desgraça, que nos altos patíbulos da raça onde se convertem os grandes a um passatempo de serões.
Ela é a muralha, com a cintura rodeada de nevoeiros, generosa e tímida, com a sua coroa provinciana e a luva suja na mão descalça.”
Agustina Bessa-Luís, no livro A Muralha, 1957
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