segunda-feira, 17 de junho de 2024

"Gato Preto" - Poema de Rainer Maria Rilke (2 traduções)

 
Pierre Carrier-Belleuse (Peintre français, 1851-1932),
 Jeune ballerine tenant un chat noir, 1895.
 


 Gato Preto
 
Um fantasma, apesar de invisível,
acusa o toque do teu olhar,
o que não acontece com o teu pelo
negro e felpudo, que absorve tudo.

Como um louco que, num acesso
de mania, destrói tudo em redor,
e de súbito cai numa espécie de torpor,
no chão acolchoado da cela,

ele parece dissimular dentro de si,
todos os olhares que nele pousaram,
para agastado e ameaçador
se enroscar e com eles adormecer.

Mas, de súbito, desperta de novo,
volta-se para ti e olha-te nos olhos:
descobres-te, então, a ti próprio, suspenso
no âmbar amarelo dos seus olhos ovais
como se fosses um inseto e nada mais. 
 

Rainer Maria Rilke,
in Animal Animal – Um Bestiário Poético,
Assírio & Alvim, fev. 2005, página 97,
 tradução de Jorge de Sousa Braga
 
 

Lionel Lindsay
(Australian artist, 1874 - 1961)
 
 
 Gato Preto

 
Um fantasma é ainda como que um lugar
de que o teu olhar faz depender um som;
mas aqui, na negrura deste pelo,
dissolve-se a mais forte visão:
como um louco raivoso que, mesmo no auge
da fúria, bate os pés na escuridão,
de repente se achasse entre os chumaços abafantes
duma cela onde cessa e se evapora.

Assim ele parece disfarçar dentro de si
todos os olhares que jamais nele pousaram,
para sobre eles, ameaçador e agastado,
se fechar num arrepio e com eles dormir.
Mas súbito, como que desperto, volta
o rosto para ti e contempla-te nos olhos:
e então encontras o teu próprio olhar no âmbar
amarelo das pedras redondas dos seus olhos,
inesperadamente: incrustado e fóssil
como um inseto de remotas eras.


Rainer Maria Rilke,
in Poemas, As elegias de Duino e Sonetos a Orfeu
Oiro do Dia, set. 1983, página 170, 
tradução de Paulo Quintela
 

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