quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

"Descobrir a leitura" - Poema de Eugénio Lisboa

 

Raimundo de Madrazo y Garreta (Spanish painter, 1841–1920),

Descobrir a leitura


Os livros que lemos na adolescência
marcam-nos para toda a vida:
devoramo-los com grande envolvência,
com fome saciada e repetida.

A magia de Wilde e de Voltaire,
a ferina ironia de France,
a paixão atrevida de Jane Eyre
e Stendhal, esse mago do romance!

Tantas e tão duráveis descobertas!
O fundo, fundo da tragédia grega
e o O’Neill que, escancarava, abertas,

as paisagens da humana refrega!
Foi um mergulho intenso e muito fundo
no que constitui este nosso mundo!


Eugénio Lisboa

 

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

"Poema da Maternidade" - Fernanda de Castro


Adolphe Jourdan (Pintor francês, 1825-1889), Tendresse Maternelle, c. 1889


Poema da Maternidade


Pode lá ser! Não quero, não consinto!
Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!

É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minh´alma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
— "Acabou-se! Acabou-se! Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora é só raiz." —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...

Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Por quê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
"Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,

Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...

Filho, por que seria? Ao vires para mim
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?

Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...

Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.

Toma um navio, um cavalo,
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Se quiseres dou-te o mundo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?

Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura...

Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...

Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfémia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada. . . Eu sei o que é o pecado
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
As vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!
Vida! Vida! Vida!

Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Já não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!
E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!


Fernanda de Castro, de Trinta e Nove Poemas (1941),
in Líricas Portuguesas – 2.ª série, org. Cabral do Nascimento,
Portugália Editora, 3.ª edição, Setembro de 1967.




Cabral do Nascimento: Líricas Portuguesas – Segunda série
Portugália Editora



Descrição

Seleção, prefácio e notas de Cabral do Nascimento. «Antologias Universais – Poesia III». A primeira série foi organizada por José Régio e a terceira por Jorge de Sena. Esta segunda série abrange aproximadamente o período da primeira metade do século XX e inclui poemas de: «António Feijó; Queiroz Ribeiro; Manuel da Silva Gaio; António Fogaça; João Saraiva; Alberto Osório de Castro; Júlio Brandão; Fausto Guedes Teixeira; Cândido Guerreiro; Ângelo de Lima; Augusto Gil; Bernardo de Passos; Júlio Dantas; Manuel Laranjeira; António Patrício; Afonso Lopes Vieira; António Correia de Oliveira; João Lúcio; João de Barros; Afonso Duarte; António Sardinha; Augusto Casimiro; Luiz de Montalvor; Alfredo Guisado; Armando Cortês Rodrigues; Mário Beirão; Américo Durão; Florbela Espanca; Américo Cortês Pinto; António de Sousa; João de Castro Osório; Edmundo de Bettencourt; Campos de Figueiredo; Fernanda de Castro; José Régio; Vitorino Nemésio; António Boto; António de Navarro; Fausto José; Pedro Homem de Mello; Armindo Rodrigues; Francisco Bugalho; Branquinho da Fonseca; Alberto de Serpa; Anrique Paço d’Arcos; Moreira das Neves; Miguel Torga; Guilherme de Faria; Carlos Queiroz; Adolfo Casais Monteiro» (daqui

 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

"Solidão estrelada" - Poema de Alberto de Oliveira

 
Dankvart Dreyer (Danish landscape painter, 1816–1852), Road across Hills, c. 1842.
 

Solidão estrelada


Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,

Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?

Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!

Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...

Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.

Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!

E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?

Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem! 


Alberto de Oliveira, Poesias, 2ª série, 1906.
 
 
Dankvart Dreyer, A View of Lake Vejl near Silkeborg, Jutland, 1843.
Statens Museum for Kunst


"É uma deformação da solidão extrema o acabar por nos fazer crer na imaginação que o nosso monólogo íntimo possa ser percebido ao longe sem palavras."

Saint-John Perse
, 'Correspondência'



Dankvart Dreyer, Dolmen on Brandsø, c. 1842, The Hirschsprung Collection


Para compreender, destruí-me


Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci, de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distração especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir. 

 (Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho).
Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1982. - 234. 

domingo, 26 de janeiro de 2025

"O que mais amo" - Poema de Luís Filipe Parrado

 

William Bruce Ellis Ranken (British artist and Edwardian aesthete, 1881-1941),
'The Open Window', These Are My Jewels, 1937.


O que mais amo

 
Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
De todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo. 


Luís Filipe Parrado
, "Entre a carne e o osso".

 
Luís Filipe Parrado, "Entre a carne e o osso"
Editora Língua Morta, 2012. 


"A poesia é um fogo cuja chama faz arder o espírito de quem ama."
[Pierre de Ronsard, poeta francês, nascido em 1525 e falecido em 1585, foi um dos animadores do grupo literário Pléiade e um dos maiores representantes da poesia francesa do Renascimento, tendo revelado, desde as suas primeiras produções, a influência de poetas como Píndaro Horácio. As suas principais obras são Odes, Les Amours e Sonnets pour Hélène. Ficou conhecido como o príncipe dos poetas. (daqui)]
 
 

sábado, 25 de janeiro de 2025

"Não, não queremos cantar" - Poema de José Gomes Ferreira


 Harold Harvey (Newlyn School painter, 1874–1941), Mousehole Harbour, Cornwall, 1922.
 

Não, não queremos cantar


 
Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas...

... Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.


José Gomes Ferreira, in Poesia I, 1948.
Poema VII da série Heroicas (1936-1937-1938)
 
 
 Harold Harvey, Newlyn Harbour: Mending the Nets.

Redes

Na Foz são os pescadores que fazem as redes, sentados no areal, com a primeira malha metida no dedo grande do pé, na mão direita a agulha com o fio e na mão esquerda o muro. As melhores redes eram as de ticum e o melhor ticum o que se vendia em Lordelo.

As redes são muito variadas. Há as redes da pescada; as robaleiras para o robalo na restinga e fora da barra; os quartos para o sável; e para a solha que vive na areia e cor da areia, uma rede especial, a feiticeira, com duas ordens de malhas. A rede, quando vem do mar, é lavada; seca e encascada. Depois remenda-se e mete-se nos cestos. Há também diferentes linhas e espinéis, para a faneca, para o robalo, que gosta das águas remexidas e dos sítios onde rebenta a onda, para a enguia, que é tão voraz que nem precisa de anzol, apanha-se com engodo, e até para o congro, no mar alto, tendo-se o cuidado de levar um machado, porque esses peixes, quando grandes, são terríveis, e mesmo dentro do barco, levantam-se para os homens como feras.

Barcos, houve na Foz catorze catraias (já não há nenhuma), batéis para a sardinha, que levavam quatro homens e seis peças, botes para a faneca e gamelas para o serviço do rio. Tenho por estas quatro tábuas com o fundo chato uma especial predileção. Foi nelas que aprendi a gingar, o que se faz só com um remo e certo movimento de pulso, e foi nelas também que aprendi a nadar à força, porque se voltam na ressaca com uma extrema facilidade.

Quanto a quinhões, era assim: vendido o peixe, metade do dinheiro que a mulher do pescador ganhava com a canastra tomava conta dele o arrais, que o dividia em quinze partes para os homens, uma para o moço e duas para a embarcação. Assim, até os que por sorte não apanhavam peixe tinham um quinhão garantido do mealheiro comum. Ficava ainda uma pequena parte nas mãos do arrais para o tempo de Inverno, quando se não podia ir ao mar. 

Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.

 
 Harold Harvey, Newlyn Harbour.

 
 Harold Harvey, Mousehole, Undated.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

"Alguém" - Poema de Gonçalves Crespo


 
Walter Langley (English painter and founder of the Newlyn School of plein air artists,
1852 – 1922), Meditation, ca. 1904.

 

Alguém 


Para alguém sou lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais do Cristo;
Para alguém sou vida e a luz dos olhos,
E se a Terra existe, é porque existo.

Esse alguém que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.

Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! esse alguém
É de meus dias a esplendente aurora:
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!


Gonçalves Crespo, in "Miniaturas", 1870.



Gonçalves Crespo, "Miniaturas" (7ª ed.)
Editora Domingos Barreira

 Sinopse

"Miniaturas", volume de poesias de Gonçalves Crespo, em que a temática amorosa e o retrato da figura feminina (vejam-se composições como "Modesta", "Sara", "Alguém" e "Mãe"), com ressonâncias do lirismo ultrarromântico, não escondem uma evolução no sentido do parnasianismo, com notações sóbrias e realistas de ambientes e cenários vazadas num estilo cuidado e depurado.
Composições como "A sesta", "Na roça" ou "Ao meio-dia" evocam os ambientes tropicais brasileiros, bem familiares ao autor. (daqui)

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

"Levava eu um jarrinho" - Poema de Fernando Pessoa


William-Adolphe Bouguereau (French painter, 1825-1905),
The Water Girl, or Young Girl Going to the Spring, 1885,
Dahesh Museum of Art


Levava eu um jarrinho


Levava eu um jarrinho
Pra ir buscar vinho
Levava um tostão
Pra comprar pão;
E levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro pro chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.

s.d.

Fernando Pessoa, "Poemas para Lili".
Quadras ao Gosto Popular (Texto estabelecido e prefaciado
 por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.)
 Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973). - 118-119.
 
 
 
 
Água

"Tudo é simples diante de um copo d’água."

Carlos Drummond de Andrade
, in O Avesso das Coisas (Aforismos)
 
 
Carlos Drummond de Andrade: O Avesso das Coisas
Capa: Estúdio Bogotá - Páginas: 288
Companhia das Letras, 2019
 
 
 Sinopse
 
Lançado originalmente em 1987, este volume reúne verbetes que, em ordem alfabética, elencam assuntos dos mais diversos diante do olhar aguçado de um dos nossos poetas fundamentais. Em O avesso das coisas, Carlos Drummond de Andrade compila, numa espécie de dicionário, suas próprias e idiossincráticas definições para cada palavra, convidando o leitor a "repensar suas ideias". O resultado é um conjunto de aforismos perspicaz e extremamente bem-humorado. (daqui)
 

Humorismo 

"O humorismo é a aptidão para despertar nos outros a alegria que não sentimos." 
 
Carlos Drummond de Andrade, in O Avesso das Coisas (Aforismos)
 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

"Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos" - Poema de Vinicius de Moraes

 

Arthur Hacker (English classicist painter, 1858–1919), A Heavy Burden, s.d.
 

Meu pai



Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra.
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas.
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.

Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas.
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insónias.
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.


Vinicius de Moraes, Jardim Noturno: Poemas Inéditos
Companhia das Letras, 1993. São Paulo.
 
 

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

"A avó" - Poema de Manuel António Pina



Rudolf Epp
(German painter, 1834 - 1910), Visit to the Grandmother. 


A avó


Tinha ao colo o gato velho
cansadamente passando
a sua branca mão pelo
pelo dele preto e brando.

Sentada ao pé da janela
olhando a rua ou sonhando-a
todo o passado passando
a passos lentos por ela.

Dormiam ambos enquanto
a tarde se ia acabando
o gato dormindo por fora
a avó dormindo por dentro.


Manuel António Pina
, in "Os livros",
Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. 
"Todas as palavras - poesia reunida 1974-2011",
Assírio & Alvim, 2012. 
 
 
Rudolf Epp, Admonition of the Grandmother.

 
 
Pelo ou pêlo

A forma correta de escrita do nome do filamento que nasce no corpo humano ou no corpo dos animais é pelo, sem acento circunflexo. A palavra pêlo passou a estar errada desde a entrada em vigor do Novo Acordo Ortográfico.
 
Na atual reforma ortográfica foi abolido o acento circunflexo utilizado no substantivo pelo, deixando de haver esse acento que diferenciava o substantivo pelo da preposição contraída pelo.

Assim, a distinção entre o substantivo e a preposição não é mais feita pela acentuação mas sim pelo contexto em que as palavras ocorrem:
  • Meu cachorro tem tanto pelo!
  • Que feio ficar olhando pelo buraco da fechadura.
 
Pelo: substantivo masculino

Enquanto substantivo, pelo pode significar um filamento que nasce no corpo humano ou no corpo dos animais, bem como fios que se soltam dos tecidos, sendo sinónimo de cabelo, pelagem, penugem, fio,…

Exemplos com substantivo pelo: 
  • Sou alérgica a pelo de gato.
  • Meu marido tem muitos pelos nas costas.
  • Esse cobertor larga tanto pelo!
Pelo: preposição

Enquanto preposição contraída, pelo pode ser a preposição per contraída com o artigo definido o ou com pronome demonstrativo o (por + o = pelo). É sinónimo de: a favor de, ao longo de, através de, por aquele, por aquilo,…

Exemplos com preposição contraída pelo:
  • Sou pelo direito à eutanásia.
  • Cheguei rápido porque vim pelo caminho mais curto.
  • Pelo andar da carruagem, não iremos a lugar nenhum…

Novo Acordo Ortográfico e os acentos diferenciais

O Novo Acordo Ortográfico aboliu o acento diferencial em palavras paroxítonas homógrafas de outras não acentuadas.

Antes do acordo: pêlo, pára, péla, pélo, pólo, pêra.

Depois do acordo: pelo, para, pela, pelo, polo, pera.

Foram mantidos os acentos diferenciais no verbo pôr, para distinguir da preposição por, e na forma conjugada pôde (pretérito perfeito do indicativo), para distinguir da forma conjugada pode (presente do indicativo). (daqui)
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

"Vagabundo do mar" - Poema de Manuel da Fonseca


 
Moreira Aguiar (Pintor português, n. 1947), Sol e Chuva - Carcavelos, Cascais, 100x 60cm. 

 

Vagabundo do mar

 
Sou barco de vela e remos
ou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré… 
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia…
 Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
 Sei lá.
 Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
 É, por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar. 
E agora,
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar. 


Manuel da Fonseca,
 in "Rosa dos ventos"

domingo, 19 de janeiro de 2025

"A conformidade" - Poema de Hélène Monette

 

 
Jane Austen (English novelist, 1775–1817), 1810,
by Cassandra Austen (Amateur English watercolourist
and the elder sister of Jane Austen, 1773–1845).
 


A conformidade


Até os mais amigos
dizem
conforme
o jogo é conforme
o prazer é conforme
no plano da vestimenta, a mulher é conforme
a vida é conforme
ou deslocada

assustadora, a verdade não é verdadeira

como isto é definitivo
nada para escrever um poema à filha
uma carta ao filho
uma lágrima à irmã
nada para escrever por estes dias uma sinfonia
os dias fedem como o aborrecimento

o absurdo tomou conta do aquecimento dos glaciares
não me aborreçam com tudo o que é conforme a este diktat
a esse desgaste
a esse glaciar derretido em negro acorrentado

é possível sonhar com a nascente do conforme
a humanidade desaparecerá antes
o conforme depois
porque tudo é conforme no primeiro como no último
a idiotice é conforme
a mentira é de boa conformidade

eu esperava-vos ali onde vocês me esperavam
sim, mas conforme a quê?

não sei
é a sociedade pesada e maldosa
bonita e conforme
com a cor dos pulmões nas florestas queimadas
é a sociedade na terra de todos
que torna a humanidade conforme
aos bozos da definição plana
o zero é conforme
e o resto, é a terra a um canto
que já não aguenta de tanto suar

nos tempos que correm caminhamos com uma faca nas costas
bem enterrada entre as omoplatas
uma faca sólida, no lugar apropriado
a faca é conforme ao amor que perdura 
entre os dormitórios batidos em neve
entre as ilhas inundadas
isso é exato
tudo está no seu lugar
a lama e o oceano
o cartão do loto
o número errado
e o espetáculo
o grande espetáculo debate-se no ecrã que morre

como isto é cómico, o cómico é conforme
com o cómico
e não há engano
toda esta lógica é patética
o universo gira nos olhos dos nossos bem-amados
calhaus em fogo
no além mais profundo sem igual


Hélène Monette, Poemas
Tradução de Rosa Alice Branco


sábado, 18 de janeiro de 2025

"Quando eu partir" - Poema de Tereza de Mello


Artur Franco (Artista plástico português, n. 1950), Noturno,
 Casa do Arco na cidade de Leiria, s.d.
 
 

Quando eu partir


Quando eu partir
Não chorem nem tenham pena.
Como diz o poema,
Fui apenas
Um passarinho que cantava,
A borboleta que voava
Procurando a sua flor,
Como quem busca o amor
Para dar e receber.
Fui pedra puída pelo tempo,
Rolando com marés.
Fui também alguém
Que gostava de viver.
De cantar
E de poder voar.
Rocha desfeita em areia,
Onda rolando em espuma,
Charco que a chuva deixou
E pensava ser espelho
Dos que passavam
E olhavam.
Mas não ficavam…
Fui um bichinho de conta
Enrolado em si mesmo
Como berlinde de vidro,
Brincadeira de criança. 
Fui monte ao longe
Altaneiro
E fui campo de centeio
Ondulando pelo vento.
Fui tudo que a vista alcança
Ou apenas a criança
Que nunca soube crescer.
Não chorem nem tenham pena
Da formiguinha atarefada,
Pois fui tudo
E não fui nada
Nesta vida passageira.
 
 
Tereza de Mello (1927- 2009)
(Pseudónimo de Maria de Lourdes Brandão de Mello)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

"Um mover de olhos brando e piedoso " - Poema de Luís de Camões


Nicolas de Largillière (French painter and draughtsman, 1656–1746),
The Beautiful Strasbourg Woman (La Belle Strasbourgeoise), 1703,
Musée des Beaux-Arts, Strasbourg.
 
 
 
Um mover de olhos brando e piedoso


Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;

Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.


Luís de Camões, Sonetos 
 

Nicolas de Largillière, Self-portrait with family, c. 1710, Louvre Museum.
 
 
"Na arte a mão nunca pode executar algo superior ao que o coração pode inspirar."
 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

"Chuva e Sol" - Poema de Raimundo Correia



Norman Garstin
(Irish artist, teacher, art critic and journalist associated with the Newlyn School 
 of painters, 1847–1926), The Rain It Raineth Every Day, 1889, Penlee House.
 
 
 
Chuva e Sol 

 
Agrada à vista e à fantasia agrada
Ver-te, através do prisma de diamantes
Da chuva, assim ferida e atravessada
Do sol pelos venábulos radiantes...

Vais e molhas-te, embora os pés levantes:
– Par de pombos, que a ponta delicada
Dos bicos metem nágua e, doidejantes,
Bebem nos regos cheios da calçada...

Vais, e, apesar do guarda-chuva aberto,
Borrifando-te colmam-te as goteiras
De pérolas o manto mal coberto;

E estrelas mil cravejam-te, fagueiras,
Estrelas falsas, mas que assim de perto,
Rutilam tanto, como as verdadeiras...


Raimundo Correia, Versos e Versões, 1887.
In "Poesias completas". Org. pref. e notas Múcio Leão. 
São Paulo: Ed. Nacional, 1948.

 

Norman Garstin, A Steady Drizzle, Unknown date. Oil on canvas.


"... e eu imagino uma velhinha por trás da vidraça, jogando paciência com esta chuva tão sem pressa..." 


Mário Quintana
, in Poemas para a Infância.
Poesia Completa, RJ: Editora Nova Aguilar, 2005 
 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

"A poesia que desce ao poeta" - Poema de Múcio Leão


Johannes Vermeer also known as Jan Vermeer (Dutch painter, 1632–1675),
"
The Art of Painting" or "The Allegory of Painting Painter in his Studio", c. 1666–1668.
Kunsthistorisches Museum


A poesia que desce ao poeta

 
Poeta, ser estranho, ser enigmático entre os seres!
Vejo-o, isolado das cores, das formas e das ideias,
Isolado, nessa crepuscular solidão que o acompanha.

E é então que vejo descer sobre ele
Uma como sombra de celestiais eflúvios:
- A Poesia, a Poesia de inesperadas ressonâncias,
A grande Poesia, que é uma exalação indefinível,
Que é um som infinito, vindo de outras esferas,
Que é a comunicação miraculosa de outros seres e de outras regiões.


Múcio Leão
, in "Poesias", 1949.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

"Não nasci por acaso nestas pedras" - Poema de José Gomes Ferreira


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Porto, Avenida dos Aliados, s.d.


  Poema


(O Eugénio de Andrade espera-me num Café.
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde nasci – 
com os punhos cerrados de dor.) 


Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou musgo embalado
pela chuva da boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
– cidade de luz de granito.

Tristeza de luz viril
com punhos de grito.


José Gomes Ferreira
,
"Daqui houve nome Portugal" - Antologia de verso e prosa sobre o Porto,
organizada e prefaciada por
Eugénio de Andrade,
Editorial Inova, 1968.
 


Mota Urgeiro, Mercado da Ribeira, Porto, s.d..
 
 
"O Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspeto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada."
 
Alexandre Herculano (Escritor, historiador, jornalista e poeta português, 1810–1877)
 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

"Em uníssono" - Poema de Graça Pires



Honoré Daumier (French painter, sculptor, and printmaker, 1808–1879), The Emigrants
or The Fugitives, c. 1852–55. Oil on panel, 16.2 x 28.7 cm., Petit Palais, Paris



Em uníssono


Indagamos, em uníssono, o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.


Graça Pires,
in Continuum: Antologia poética. 
 


CONTINUUM: antologia poética. Poética Edições, 2018.


Sinopse


"A transitoriedade do ser e das coisas marca o ritmo concreto da vida, na escrita que flui numa densa e intensa formulação. As linhas do poema elevam-se em versos sucessivos e coerentes, transformando a/s mão/s que escreve/m, exaltando o/s verso/s que continuam da página do poeta para a página do leitor. Esse Outro que transporta o poema para um outro tempo, o da leitura, da compreensão das imagens antes inscritas na folha em branco do poeta. É neste movimento imparável do tempo que o abismo da criação poética se instala e repara, permitindo ao/à autor/a não só a consciência de uma solidão maior, a do ato criador, mas também a da perda irreparável de tudo, a cada instante, de tudo o que escapa, que deixa de ser para voltar a ser, em mutação permanente."

Gisela Gracias Ramos Rosa (excerto do prefácio)
 
 
"Um outro sabor senti-o pela abrangência poética da obra, conseguida através da enorme diversidade de estilos e formas de a expressar, seja por texto, por pensamentos ou por poemas, bem como a multiplicidade de temáticas escolhidas, desde a poesia lírico-amorosa, passando pela poesia recorrendo ao conteúdo sensorial, na essência de emoções (visão, voz, cheiro, sede, toque) pela poesia referindo-se à própria poesia, aludindo a termos como palavras, poemas, poetas, até à chamada poesia do conhecimento. Sobre esta última gostaria de assinalar o conteúdo intelectual de alguns dos poemas, os quais embora expressos em formas de linguagem de algum modo complexas mas sempre elegantes, desafiam o leitor para um agradável exercício de intimidade reflexiva e interrogação com contornos filosóficos."

José Gabriel Duarte (excerto do posfácio)