sábado, 4 de janeiro de 2025

"Vestígios" - Poema de Al Berto


Alex Colville (Canadian painter and printmaker, 1920–2013), Horse and Train, 1954.



Vestígios 


noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas – noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool – pernoita-se

onde se pode – num vocabulário reduzido e
obsessivo – até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva – vamos pela febre
dos cedros acima – até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial 


Al Berto, Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

"Impressionista" - Poema de Adélia Prado


 
Elias Muukka (Finnish painter, 1853–1938), "Uthus på Övre Knapans"
(Outhouse at Övre Knapans), 1888. [Önningeby artists' colony]
 


Impressionista 


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo
moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


Adélia Prado
, in Reunião de Poesia.
Edições BestBolso, Rio de Janeiro 2020, página 34.
 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

"Não sei ser triste a valer" - Poema de Fernando Pessoa


 
Jimmy Ernst (American painter born in Germany, 1920–1984), Surreal, 1942.


Não sei ser triste a valer


Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.

Está bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar. 

3-4-1931

Fernando Pessoa
, Poesias Inéditas, 1930-1935.
 (Nota prévia de Jorge Nemésio.) 
Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990). - 41.
 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

"Depois" - Poema de Manuel António Pina



Jean Metzinger (French painter, theorist, writer, critic and poet, 1883 - 1956),
  L'Oiseau bleu (The Blue Bird), c. 1912–1913, oil on canvas, 230 x 196 cm.
 


Depois


Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?

Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.


Manuel António Pina,
"Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", 1999.