sábado, 25 de janeiro de 2025

"Não, não queremos cantar" - Poema de José Gomes Ferreira


 Harold Harvey (Newlyn School painter, 1874–1941), Mousehole Harbour, Cornwall, 1922.
 

Não, não queremos cantar


 
Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.

Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos...

Aos gritos, sim, aos gritos.

E não há melhor orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas...

... Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.


José Gomes Ferreira, in Poesia I, 1948.
Poema VII da série Heroicas (1936-1937-1938)
 
 
 Harold Harvey, Newlyn Harbour: Mending the Nets.

Redes

Na Foz são os pescadores que fazem as redes, sentados no areal, com a primeira malha metida no dedo grande do pé, na mão direita a agulha com o fio e na mão esquerda o muro. As melhores redes eram as de ticum e o melhor ticum o que se vendia em Lordelo.

As redes são muito variadas. Há as redes da pescada; as robaleiras para o robalo na restinga e fora da barra; os quartos para o sável; e para a solha que vive na areia e cor da areia, uma rede especial, a feiticeira, com duas ordens de malhas. A rede, quando vem do mar, é lavada; seca e encascada. Depois remenda-se e mete-se nos cestos. Há também diferentes linhas e espinéis, para a faneca, para o robalo, que gosta das águas remexidas e dos sítios onde rebenta a onda, para a enguia, que é tão voraz que nem precisa de anzol, apanha-se com engodo, e até para o congro, no mar alto, tendo-se o cuidado de levar um machado, porque esses peixes, quando grandes, são terríveis, e mesmo dentro do barco, levantam-se para os homens como feras.

Barcos, houve na Foz catorze catraias (já não há nenhuma), batéis para a sardinha, que levavam quatro homens e seis peças, botes para a faneca e gamelas para o serviço do rio. Tenho por estas quatro tábuas com o fundo chato uma especial predileção. Foi nelas que aprendi a gingar, o que se faz só com um remo e certo movimento de pulso, e foi nelas também que aprendi a nadar à força, porque se voltam na ressaca com uma extrema facilidade.

Quanto a quinhões, era assim: vendido o peixe, metade do dinheiro que a mulher do pescador ganhava com a canastra tomava conta dele o arrais, que o dividia em quinze partes para os homens, uma para o moço e duas para a embarcação. Assim, até os que por sorte não apanhavam peixe tinham um quinhão garantido do mealheiro comum. Ficava ainda uma pequena parte nas mãos do arrais para o tempo de Inverno, quando se não podia ir ao mar. 

Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.

 
 Harold Harvey, Newlyn Harbour.

 
 Harold Harvey, Mousehole, Undated.

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