sábado, 4 de janeiro de 2025

"Vestígios" - Poema de Al Berto


Alex Colville (Canadian painter and printmaker, 1920–2013), Horse and Train, 1954.



Vestígios 


noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas – noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool – pernoita-se

onde se pode – num vocabulário reduzido e
obsessivo – até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva – vamos pela febre
dos cedros acima – até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial 


Al Berto, Horto de Incêndio
Assírio & Alvim, 1997
 

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