quarta-feira, 14 de maio de 2025

"Joana Madalena" - Poema de Péricles Eugênio da Silva Ramos


Joseph Clark (English painter, 1834-1926), Teasing the kitten, 1876.
 
 
 
Joana Madalena 

1

Cega, chuleava roupa.
Não via, mas chuleava.
E tinha noventa
anos. E era
cega.

Hoje talvez enxergue;
mas as cinzas não trabalham.

2

És a lua de ontem,
minha avó.
Ausente à vista, certa na memória;
tranquila na lembrança
como o pão e a roupa,
os livros que me deste.

E és um presente ao homem,
àquele que hoje sou,
feito de velhos dias:

com teus lençóis sem mancha
nas tardes de Lorena —
onde há lençóis, nuvens lavadas
em céus também lavados.

3

Tarde adentro a voz se ouvia
na varanda,
tarde adentro
(a tarde era profunda):
"O fim é que é triste.
Um belo romance, A Filha do Diretor do Circo.
Como a Dejanira lia bonito!
Leia um pouco, meu neto."
E o menino lia.

Colibris revoavam no alpendre,
das canangas e dos manacás e dos bambus do Japão
subia um meigo aroma,
e havia em tudo um sabor de fonte e de jambo,
e tudo era idílico e doce,
mesmo a voz das corruíras pelas calhas,
mesmo o coaxar das rãs na terra húmida.
Crescia o musgo nas paredes
e havia papoulas e jasmins-do-cabo e rosas-chá
e flores de araruta como borboletas brancas:
tudo tão distante...

Ó minha avó, ó lua de ontem,
ensinarei teu nome aos pássaros em fuga.


Péricles Eugênio da Silva Ramos,
in 'Lua de Ontem', 1960. 


Joseph Clark (English painter, 1834-1926), Helping Grannie, 1878. 


"No homem cuja infância conheceu carinhos, há sempre um fundo de memória 
que pode ser despertado para a ternura."

George Eliot, Scenes of Clerical Life - Página 145,
 William Blackwood and Sons, 1858. 
 

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