segunda-feira, 22 de setembro de 2014

"Para os meus alunos" - Poema de Vítor Matos e Sá


"A walk on the beach" by Christian Schloe


Para os meus alunos


Após tantos anos a ver-vos chegar
e a deixar-vos partir
alheios ou inquietos quanto
ao parentesco das ideias e dos atos
o direito às perguntas e a fonte
das perguntas,
gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome,
saber se estive, perto ou longe,
em vossas dúvidas. É sempre
uma questão mútua de ser.
Uma presença e não
um resultado.

Mas nem sempre soubestes que crescíamos
entre ódios, fanatismos, cobardias,
com olhos vendados pelo conforto
e o medo, com ter-se ou não ter-se
vantagens, aplausos, soluções privadas.
E como foi possível ter razão
sem ter as circunstâncias.

Agora os vossos rostos passam, firmes,
entre visão e facto, entre o amor
e a chegada de todos ao amor.
Mas também morro mais depressa agora.

Por isso gostaria de chamar-vos, um a um,
pelo vosso nome. E agradecer-vos a herança
da alegria. E dizer uma vez mais que é sempre
uma questão mútua de ser. Uma presença
e não um resultado.

E os vossos rostos todos
hão de ajudar-me a envelhecer
sem angústia ou vergonha
e a estar convosco na verdade
e a buscá-la juntos e a cumpri-la.


Vítor Matos e Sá



Vítor Matos e Sá
 

Vítor Matos e Sá, nascido a 20 de dezembro de 1927, em Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique), e falecido em 1975, foi um poeta português. 
Licenciado e doutorado em Filosofia, foi docente na Universidade de Coimbra. Colaborou em Árvore, Cadernos do Meio-Dia, Távola Redonda e Eros. A sua produção integra um modelo de poesia nascida de uma preocupação especulativa e filosofante e moldada sobre a experiência existencial. 
Vítor Matos e Sá é o  pseudónimo de Vítor Raul da Costa Matos.

Vítor Matos e Sá. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-09-22].


Caetano Veloso - Livros 

 
Livros


Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor tátil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.  
 
 


 
Foto de Caetano Veloso, 2011

 
Caetano Veloso
 
Poeta, compositor e cantor brasileiro, irmão de Maria Bethânia, Caetano Emanuel Teles Viana Veloso nasceu em 1942, no estado da Baía. Desde pequeno, Caetano revelou pendores artísticos, demonstrando gosto por música, desenho e pintura. Na rádio, ouve os cantores da música brasileira em voga, como Luiz Gonzaga; na cidade, os sambas de roda e os pontos de macumba. Em 1952, faz uma gravação única, para desfrute familiar, cantando "Feitiço da Vila" (de Vadico e Noel Rosa) e "Mãezinha querida" (de Getúlio Macedo e Lourival Faissal), hit de Carlos Galhardo. Ao piano, quem o acompanha é a irmã Nicinha. Quatro anos mais tarde, fica uns tempos no Rio de Janeiro, onde frequenta o auditório da Rádio Nacional, palco de apresentações dos maiores ídolos musicais brasileiros de então. Em 1960, muda-se com a família para Salvador, onde prossegue os seus estudos.

A partir daí, intensifica-se o seu interesse por música - graças à bossa nova, particularmente ao cantor e violonista baiano João Gilberto; por cinema - graças ao Cinema Novo, particularmente ao diretor Glauber Rocha, também baiano; e por teatro. Na universidade local, a programação de eventos proporcionou-lhe um ambiente modernizador e vanguardista. Enquanto absorvia essa atmosfera, Caetano escreveu críticas de cinema para o Diário de Notícias, cuja secção cultural é dirigida por Glauber Rocha. Ele aprende a tocar viola e canta com a irmã Maria Bethânia nos bares de Salvador. Na TV, aprecia quando, às vezes, aparece um cantor novo, chamado Gilberto Gil. É numa dessas aparições que a sua mãe, a senhora Canô, o chama: "Caetano, vem ver o preto que você gosta".

Em 1963, Caetano Veloso entra na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Finalmente conhece Gilberto Gil, a quem é apresentado pelo produtor Roberto Santana, Gal Costa (ainda Maria da Graça, na época) e Tom Zé. O primeiro trabalho musical surge no seguimento desses contactos. Ainda neste ano, Caetano compôs a banda sonora da peça "O boca de ouro", de Nelson Rodrigues, do diretor baiano Álvaro Guimarães, que o convida também para compor a banda de "A exceção e a regra", de Bertolt Brecht. Estes trabalhos foram as primeiras expressões artísticas do cantor e tiveram um papel decisivo na sua decisão de se tornar cantor-compositor.

No ano seguinte, em junho, no programa televisivo "Nós, por exemplo", com Caetano, Gil, Bethânia, Gal e Tom Zé, entre outros, o cantor integra os eventos de inauguração do Teatro Vila Velha. Uma agradável mistura de canções e textos, o programa "Nós, por exemplo" acabará por influenciar a conceção de espetáculos semelhantes que virão a ser feitos no Rio de Janeiro e em São Paulo pouco depois.

O ano de 1965 estabelece um marco de particular importância para Caetano: em Salvador, conhece João Gilberto - para ele um dos artistas mais importantes do Brasil e uma das principais referências do seu trajeto artístico. Abandona a faculdade e acompanha sua irmã Bethânia, chamada ao Rio para substituir Nara Leão no espetáculo "Opinião". Gil, Gal e Tom Zé também se transferem para o Sul do Brasil. Em maio, Caetano grava o seu primeiro single, com dois temas, "Cavaleiro" e "Samba em paz", ambos de sua autoria, pela RCA. A sua irmã, Maria Bethânia, lança "É de manhã", um original de Caetano. Ainda nesse ano, a colaboração de Caetano com Gil, Gal, Bethânia e Tom Zé continuou no espetáculo "Arena canta Bahia".

Em 1966, concorre, como compositor, ao Festival Nacional da Música Popular, em São Paulo, com o tema "Boa palavra", interpretado por Maria Odette. A canção consegue o quinto lugar. Ainda neste ano, recebe o prêmio de melhor letra no 2.º Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, com a canção original "Um dia".

Em julho de 1967, assina com a Philips e lança o LP de estreia, Domingo, dividido com Gal Costa; do repertório, constam "Coração vagabundo" e "Avarandado", entre outras. O disco mostra uma filiação do artista ao estilo da bossa-nova; no texto na contracapa, um aviso: "Minha inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui". O movimento tropicalismo estava já em marcha, revolucionando as estéticas artísticas e culturais da sociedade brasileira. No ano seguinte, edita o seu primeiro LP individual, de título homónimo. Deste disco destacam-se alguns grandes sucessos como "Alegria, alegria", "Tropicália", "Soy loco por ti, América" (de Gil e Capinan), "No dia que eu vim-me embora" e "Superbacana". A carreira de Caetano estava definitivamente lançada no trilho do sucesso. Todavia, ainda neste ano, em plena ditadura no Brasil, Caetano é preso, na companhia de Gilberto Gil, por alegado desrespeito ao hino e à bandeira brasileira. Ambos são libertados poucos meses depois.

A carreira de Caetano é prosseguida com variadas gravações e participações especiais das quais se destacam Caetano Veloso (1969), Araçá Azul (1973), Muitos Carnavais (1977), Bethânia e Caetano (1978), Outras Palavras (1981), Totalmente Demais (1986), Caetanando (1987),Livro (1997). Publicou os livros Alegria, Alegria (1977) e Verdade Tropical (1997), narrando neste último alguns acontecimentos da sua vida. Contracenou em vários filmes e realizou, em 1986, O Cinema Falado. É considerado um autor original e decisivo na moderna evolução da música brasileira, principalmente ao nível da criação literária.

No ano 2000 ganhou o prémio grammy para o melhor disco na categoria de world music, com o seu álbum Livro.

Posteriormente, edita, entre outros, o disco Noites do Norte (2001), um álbum que regista um som simples e grandioso, reeditado ao vivo no mesmo ano, o disco Eu Não Peço Desculpa (2002), com Jorge Mauttner, o livro Letra Só (2003), a coletânea de êxitos Antologia (2003) e o álbum (2006), que revela uma fase musical mais rebelde e provocadora..

Da sua carreira constam também as participações na banda sonora dos filmes Habla Con Ella, de Pedro Almodóvar, onde o cantor aparece cantando "Cucurucucu Paloma", e Frida, filme galardoado com o Óscar de Melhor Banda Sonora, com a interpretação do tema "Burn it Blue", por Caetano e Lila Downs. (Daqui)
 
 

domingo, 21 de setembro de 2014

"Arte Poética" - Poema de Rosa Alice Branco


Portrait of Rosamund Hussey by James Jebusa Shannon
painted shortly after 1900.



Arte Poética


Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.
O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que 
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!


Rosa Alice Branco
Soletrar o Dia. Obra Poética
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2002


Leonard Cohen - First We Take Manhattan

"O Pecado da Gula" - Poema de Rosa Alice Branco





O Pecado da Gula


Ontem à tarde saí. 
Queria passear as lembranças 
que um dia de chuva faz crescer em nós. 
Há dias que o vento rondava a casa 
cheio de segredos incompletos 
a roçar-me a orelha. E eu não resisto 
ao sabor do vento 
e a uma boa história para enganar o frio. 


É fácil perdermo-nos nas ruas. 
Nunca se regressa pelos mesmos caminhos 
mas todos parecem iguais 
com o cheiro da chuva a deixar o alcatrão 
e a subir na memória 
de outras ruas. 
Mas há só um caminho que trilhamos. O corpo 
é uma bússola fiel que segue pela estrada 
enquanto o pó se levanta 
muito para além dos nossos passos. 


Rosa Alice Branco, in 'Animal Volátil'



Rosa Alice Branco, mestre em Filosofia do Conhecimento pela Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre a perceção visual em Berkeley, nasceu em 1950. Ensina psicologia da perceção na Escola Superior de Artes e Design. Participou no Grupo de Estudos de Semiótica e Poética do Porto, tendo sido um dos responsáveis pela revista Figuras e pertence à direção da revista Limiar. A sua poesia, refletindo sobre paradoxos filosóficos e linguísticos, ocupa um lugar único na poesia portuguesa contemporânea mais recente.

Rosa Alice Branco. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014.

Bibliografia: 

  • Animais da Terra, Limiar (1988)
  • O Desenvolvimento da Filosofia do Sugerir: a Percepção como Operação Interpretativa, tese de -mestrado (1990)
  • Monadologia Breve, Limiar (1991)
  • O Que falta ao Mundo para ser Quadro, Limiar (1993)
  • A Mão Feliz. Poemas D(e)ícticos, Limiar (1994)
  • O Único Traço de Pincel, Limiar (1997)
  • Da Alma e dos Espíritos Animais, Campo das Letras (2001)
  • Soletrar o Dia, Quasi Edições (2002)
  • Animal Volátil, Edições Afrontamento (2005) - juntamente com Casimiro de Brito
  • O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos, Quasi Edições (2009)
  • Gado do Senhor, & Etc. (2011)


Leonard Cohen - Almost Like the Blues


O músico e escritor canadiano Leonard Cohen (Montreal, 21 de setembro de 1934) cumpre hoje 80 anos, nas vésperas de editar o álbum «Popular Problems», que aborda preocupações e dilemas do mundo atual. 

Considerado um dos maiores escritores de canções da segunda metade do século XX, Leonard Cohen celebra os 80 anos de vida, e mais de quarenta de música, com um álbum que fala de guerras, religião, amor e morte. 

«Popular Problems», 13º disco de carreira, «reflete o mundo em que vivemos», afirmou Leonard Cohen esta semana em Londres, num encontro com jornalistas, explicando que o álbum reúne «uma ampla paleta de géneros», como gospel, country e blues. 

Apesar da idade, o músico tem estado mais ativo desde 2008, ano em que encetou uma nova digressão internacional, depois de uma ausência de 15 anos, e editou o álbum «Old Ideas» (2012). 

Sobre o novo álbum, marcado por uma característica voz cavernosa e grave, Leonard Cohen afirmou que é atravessado por um sentimento que é identificável por todos: «Toda a gente sofre e toda a gente luta por ser alguém, por ser reconhecido. É preciso perceber que a luta de um é igual à luta de qualquer outro; e o sofrimento também. Creio que nunca se chegará a uma solução política se não se perceber esta ideia». 

«Popular Problems» inclui temas como «Almost like the blues», «Born in chains», que admitiu ter demorado décadas a concluir, e «A Street», escrito logo após os atentados de 11 de setembro de 2011 em Nova Iorque, mas só agora revelado. 

Há ainda o tema «Nevermind», que conta com uma voz feminina a cantar em árabe, representando «os oprimidos» e as vítimas anónimas dos conflitos armados. 

Questionado se uma canção pode oferecer soluções para problemas políticos, Leonard Cohen respondeu: «Eu penso que a canção é, ela mesma, uma espécie de solução». 

Leonard Cohen publicou o primeiro álbum, «Songs of Leonard Cohen», em 1967, já depois de ter feito trinta anos e de ter revelado a faceta literária, em particular com o livro de poesia «Let us compare mythologies» (1956) e o romance «O Jogo preferido» (1963). (Daqui) 

"Dizer Não" - Texto de Vergílio Ferreira




Dizer Não


Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros. 

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios. 

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude. 

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação. 

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo. 

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela. 

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos. 

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor. 

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue. 

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal. 

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade. 


Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'




"É mais importante escrever um livro do que governar um império... e mais difícil também."

(Robert de Musil)


Robert de Musil


Robert Musil (Klagenfurt, 6 de novembro de 1880 — Genebra, 15 de abril de 1942) foi um escritor austríaco, um dos mais importantes romancistas modernos.
Ao lado de Franz Kafka, Marcel Proust e James Joyce forma o grupo dos grandes prosadores do século XX
Da sua obra destaca-se o monumental O Homem sem Qualidades, um anti-romance ou um não-romance que é acima de tudo uma grande reflexão sobre a época de Musil. Seu livro de estreia, o romance de formação O Jovem Törless, publicado em 1906, também é popular na atualidade.

Principais obras:
O Homem sem Qualidades, 1930, 1933, 1943, publicado em dois volumes.
O Jovem Törless, 1906.


"Saudade" - Poema de António Franco Alexandre


James Jebusa Shannon, White Lilies


Saudade 


Tal como és, assim te quero, e sempre
diverso cada dia do que foste;
cada imperfeito gesto que inventares
me fará desejar-te em outro verso.

Da arte do soneto feito mestre
no concurso sem regra da floresta,
na mais pequena folha te descubro
e no caule do vento é que te perco.

Da turva luz já retirei o emblema
que me sirva de rosto permanente
e venha o cabeçalho do poema;

e pedirei à noite que me empreste
um farrapo do manto incandescente
de que se veste, agora, para ter-te.


António Franco Alexandre

[António Franco Alexandre (Viseu, 1944) é um matemático, filósofo e poeta português.]


James Jabusa Shannon, Springtime, 1896


"O amor é de todas as paixões a mais forte, pois ataca simultaneamente
 a cabeça, o coração e os sentidos."

(Voltaire)


James Jabusa Shannon, Reverie 


"Quem ama extremamente, deixa de viver em si e vive no que ama." 



Self-portrait of James Jebusa Shannon (American Painter, 1862-1923)


sábado, 20 de setembro de 2014

"Amar é arriscar. Tudo." - Texto de José Luís Nunes Martins


Ilustração de Carlos Ribeiro


Amar é arriscar. Tudo.


O amor é algo extraordinário e muito raro. Ao contrário do que se pensa não é universal, não está ao alcance de todos, muito poucos o mantêm aqui. Chama-se amor a muita coisa, desde todos os seus fingimentos até ao seu contrário: o egoísmo.

A banalidade do gosto de ti porque gostas de mim é uma aberração intelectual e um sentimento mesquinho. Negócio estranho de contabilidade organizada. Amar na verdade, amar, é algo que poucos aguentam, prefere-se mudar o conceito de amor a trocar as voltas à vida quando esta parece tão confortável.

Amar é dar a vida a um outro. A sua. A única. Arriscar tudo. Tudo. A magnífica beleza do amor reside na total ausência de planos de contingência. Quando se ama, entrega-se a vida toda, ali, desprotegido, correndo o tremendo risco de ficar completamente só, assumindo-o com coragem e dando um passo adiante. Por isso a morte pode tão pouco diante do amor. Quase nada. Ama-se por cima da morte, porquanto o fim não é o momento em que as coisas se separam, mas o ponto em que acabam.

Não é por respirar que estamos vivos, mas é por não amar que estamos mortos.

De pouco vale viver uma vida inteira se não sentirmos que o mais valioso que temos, o que somos, não é para nós, serve precisamente para oferecermos. Sim, sem porquê nem para quê. Sim, de mãos abertas. Sim... porque, ainda além de tudo o que aqui existe, há um mundo onde vivem para sempre todos os que ousaram amar...

José Luís Nunes Martins, in 'Filosofias - 79 Reflexões'


Justin Timberlake - Mirrors


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

"Viver tranquilamente" - Texto de José Luís Nunes Martins


Ilustração de Carlos Ribeiro

 
Viver tranquilamente


Ter a morte por perto assusta, mas permitir que esse medo seja tão incapacitante que só a própria morte lhe possa pôr fim é algo tremendamente absurdo.

Aquilo de que verdadeiramente a maior parte das pessoas tem medo é de viver uma vida sem sentido. Passar o seu tempo, o único tempo que tem, a fazer escolhas erradas. A verdade da vida parece bem mais evidente perante a consciência do seu/nosso fim iminente.

Saibamos escutar os conselhos tranquilos e sábios dos mais velhos, sem cair na tentação de os confrontar com a sua própria vida; talvez tenha sido precisamente por terem escolhido mal para si que, agora, nos podem ajudar a não fazermos o mesmo.

Aprender a procurar a tranquilidade e a vivê-la é algo extremamente simples e valioso. Trata-se de aceitar com um sorriso o que a vida nos dá, apreciar o pouco que seja, em vez de andarmos alienados a sonhar com coisas tontas. A nossa ansiedade, raiva e frustração são sinais de que algo de essencial está errado entre nós e o mundo, e talvez não seja o mundo.

Nada na vida é garantido e isso torna-a ainda mais bela. Um dom.

Devíamos deixar que a paz nos guiasse por entre os nossos dias e noites. Afinal, a felicidade não está nos sonhos, mas sim na capacidade que temos de aceitar e admirar calmamente o fragmento de vida que nos anima.

Quem assim sabe viver talvez possa encarar a morte como apenas mais um momento mau entre duas tranquilidades.

José Luís Nunes Martins, in 'Filosofias - 79 Reflexões'


José Luís Nunes Martins (2013). Filosofias. 79 reflexões.
Lisboa: Paulus Editora, 248 páginas.
Ilustração de Carlos Ribeiro

José Luís Nunes Martins escreve todas as semanas no jornal i. Este livro condensa as suas melhores crónicas semanais. É uma verdadeira reunião de "filosofias", com reflexões, sempre belas e profundas, sobre temas variados como o amor e o ódio, a vida e a morte, a alegria e a tristeza, a sociedade e a esperança. Todas as crónicas são ilustradas.

Algumas das reflexões podem ser encontradas na página correspondente no Facebook: FILOSOFIAS. 79 Reflexões.

José Luís Nunes Martins
Portugal
n. 1971
Filósofo 

"A Leitora" - Poema de António Ramos Rosa


Sir James Jebusa Shannon (1862 - 1923, Anglo-American artist),
Mother and Child (also known as Lady Shannon and Kitty), 1900



A Leitora 


A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.


António Ramos Rosa
in "Volante Verde"


Galeria de James Jebusa Shannon

Self-portrait of James Jebusa Shannon, circa 1919

 
James Jebusa Shannon, St. Michael of Belgium, 1914
 
 
James Jebusa Shannon, Young Woman In Blue
 
 

James Jebusa Shannon, Flora

 
James Jebusa Shannon, The Flower Girl
 


James Jebusa Shannon, The Doll 
(also known as Kitty in Fancy Dress), 1895 

 
James Jebusa Shannon, Lady Barber Seated with Yorkshire 

 
James Jebusa Shannon,The Bathers, Date unknown
 


James Jebusa Shannon, Contes de la Jungle 
(also known as Jungle Tales), 1895


James Jebusa Shannon, On the Dunes


"Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia."

(Agostinho da Silva)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

"Já estou a ficar velho" - Poema de António Franco Alexandre


Steven Kenny (n. 1962, Peekskill, Nova Iorque), 
Man with Blinders, 2012, oil on panel, 12.75 x 14 inches



Já estou a ficar velho


Já estou a ficar velho, ainda que tenha 
esta figura fixa sem idade, 
e me mantenha em forma o aparelho 
a que todos aqui somos sujeitos: 
a correria cega, a suspensão elástica, 
o salto em trave e trampolim de folhas, 
e outras altas artes de ginástica. 
Mas eu bem sei sentir além da aparência, 
e já me aconteceu, ao visitar o canto 
onde o mundo se acaba em chão de areia, 
ali ver o meu fim anunciado. 
Quando em tranquilo pouso assim medito, 
peso, e calculo tudo aquilo 
que não fiz, e não tive, e não alcanço 
com o rosto extravagante que me deram, 
já tudo bem pensado considero 
se não devo encontrar algum consolo 
na ciência que conduz o feiticeiro, 
e acreditar também, como me diz, 
que é, esta vida, emaranhada teia 
de mal fiado, mal dobado fio, 
e a morte tão somente um singular casulo 
de onde sairei transfigurado. 
Mas não sei de que valha imaginar 
um outro ser incólume e perfeito 
que da minha substância seja feito 
e tome, noutro mundo, o meu lugar; 
se me não lembra, como serei eu? 
Se for quem sou, ainda que mude a capa, 
há de voltar aqui, onde hoje estou, 
viver o mesmo instante, e ver 
escapar-lhe das mãos o que me escapa; 
veloz embora, e exímio no salto, 
o que hoje perco, há de então perdê-lo, 
e faltar-lhe outra vez o que me falta.


António Franco Alexandre, 
in 'Aracne'

[António Franco Alexandre (Viseu, 1944) é um matemático, filósofo e poeta português.]


Steven Kenny, The Lantern, oil on linen 30 x 24 in.



Steven Kenny, The Crux III (Doves)


"My paintings most often focus on the human figure paired with elements found in nature. These surreal, symbolic juxtapositions are intended to work on at least two levels.

The first alludes to the fact that we are an integral part of the natural world and subject to its laws. This seems like an obvious statement until we step back and objectively assess our symbiotic relationship with each other and the Earth. Depending on your perspective, these relationships fall somewhere on the scale between harmonious and dysfunctional.

The second turns the lens around to look inward upon the stewardship of our own emotional, intellectual and psychological landscapes. The same pictorial subject matter allows me to make references to our individual journeys of self-exploration and discovery. Again, depending on who is holding the compass, we are either lost or on the right path.

At the very least, I desire to create images of beauty and mystery that allow the viewer to find their own personal significance in them."


Steven Kenny


Steven Kenny, The Shadow, 2010, oil on canvas, 30 x 30 inches


Steven Kenny, Tethered Fulcrum, 2010, oil on linen, 16 x 40 inches
(www.stevenkenny.com)


Coldplay - Magic (Official video) 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Primeiro Amor" - Poema de Adília Lopes


Pintura de Oliveira Tavares
 


Primeiro Amor

Gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado Os pestíferos de Jaffa
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele assim fina
devia ter uma letra muito melhor do que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita


Adília Lopes


Adília Lopes


Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, (Lisboa, 20 de Abril de 1960) é uma poetisa, cronista e tradutora portuguesa.

"Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu. Como uma papoila é poppy. E muitos outros nomes que eu não sei. A Adília Lopes é água no estado gasoso, a Maria José é a mesma água no estado sólido. Eu sou uma mulher, sou portuguesa, sou lisboeta, sou poetisa, sou linguista (todos somos), sou física, sou bibliotecária, sou documentalista, sou míope, nasci a 20 de Abril de 1960, sou solteira, não tenho filhos, sou católica, tenho os olhos castanhos, meço 1,56 m, neste momento peso 80 Kg, uso o cabelo curto desde 1981, o cabelo é castanho escuro com muitos cabelos brancos.(…) É claro que o poeta é sempre o idiota da família, o maluquinho."

Adilia Lopes (Daqui)


Galeria de Oliveira Tavares
Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


Oliveira Tavares


"Quero tornar-me aquilo que sou: uma criança feita de luz."

(Katherine Mansfield)


Katherine Mansfield em 1912


Katherine Mansfield, pseudónimo de Kathleen Mansfield Beauchamp (Wellington, Nova Zelândia; 14 de outubro de 1888 - Fontainebleau, França, 9 de janeiro de 1923) foi uma proeminente escritora neozelandesa de histórias curtas.