quarta-feira, 30 de setembro de 2015

"A Varina" - Poema de José de Almada Negreiros



José de Almada Negreiros (Artista multidisciplinar português, 1893-1970),
Peixeiras (Tapeçaria)


A Varina


Lá na Ribeira Nova
onde nasce Lisboa inteira
na manhã de cada dia
há uma varina
e se não fosse ela
ai não sei
não sei que seria de mim!
Por ela
fiz dois versos a todas as varinas:
E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
Acho parecidos estes versos
com as varinas de Portugal.

Uma vez falei-lhe
para ouvi-la
e vê-la
ao pé.
A voz saborosa
os olhos de variar
castanhos de variar
castanhos escuros de variar
com reflexos de variar
desde a rosa
até ao verde
desde o verde
até ao mar.

Num reflexo refleti:
não dar aquele destino
ao meu destino aqui.

Lisboa, 1926
 in Poemas, Assírio & Alvim.
 

José de Almada Negreiros, Pescador (Tapeçaria)


“Do trabalho das tuas mãos comerás tranquilo e feliz.” 


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

"A Cachoeira de Paulo Afonso" - Poema de Castro Alves


 no curso do rio São Francisco.



A Cachoeira de Paulo Afonso


A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!
A briga colossal dos elementos!
As garras do Centauro em paroxismo
Raspando os flancos dos parceis sangrentos.
Relutantes na dor do cataclismo
Os braços do gigante suarentos
Aguentando a ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai no ombro! 


Castro Alves

[O poeta baiano Castro Alves publicou o poema A Cachoeira de Paulo Afonso, parte integrante da obra Os Escravos, em 1876.]




"Depois de quatorze léguas de viagem, desde a foz do Rio S. Francisco, chega-se a esta cachoeira, de que se contam tantas grandezas fabulosas.
Para bem descrevê-la, imaginai uma colossal figura de homem sentado com os joelhos e os braços levantados, e o rio de S. Francisco caindo com toda sua força sobre as costas. Não podereis ver sem estar trepado em um dos braços, ou em qualquer parte que lhe fique ao nível ou a cavaleiro sobre a cabeça.
Parece arrebentar de debaixo dos pés, como a formosa cascata de Tivoli junto a Roma. Um mugir surdo e continuado, como os preparos para um terremoto, serve de acompanhamento à música estrondosa de variados e diversos sons, produzidos pelos choques das águas. Quer elas venham correndo velocíssimas ou saltando por cima das cristas de montanhas; quer indo em grandes massas de encontro a elas, e delas retrocedendo: caindo em borbotão nos abismos e deles se erguendo em úmida poeira, quer torcendo-se nas vascas do desespero, ou levantando-se em espumantes escarcéus; quer estourando como uma bomba; quer chegando-se aos vaivéns, e brandamente e com espandanas ou em flocos de escuma alvíssima como arminhos — é um espetáculo assombroso e admirável.
A altura da grande queda foi calculada em 362 palmos. Há 17 cachoeiras, que são verdadeiros degraus do alto trono, onde assentou-se o gigante de nome Paulo Afonso. Muitas grutas apresentam os rochedos deste lugar, sombrias, arejadas, arruadas de cristalinas areias, banhadas de frígidas linfas.
S.M, o imperador visitou esta cachoeira na manhã de 20 de outubro de 1859. O presidente, Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas, teve a ideia de erigir um monumento à visita imperial."


Nota incorporada por Castro Alves no final do texto do poema. 
(Transcrita do Diário da Bahia

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes" - João Guimarães Rosa


 
 
“Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no Rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens”.

 

Frans Post, Vista de Itamaracápintado em 1637


Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto -
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe - que faz a palma,
É chuva - que faz o mar.


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

"Enquanto pasta alegre o manso gado" - Poema de Tomás António Gonzaga


Henry Herbert La Thangue (British, 1859-1929), Back from the common, Heyshott, West Sussex



Lira XIX


Enquanto pasta alegre o manso gado, 
Minha bela Marília, nos sentemos 
À sombra deste cedro levantado.

Um pouco meditemos 
Na regular beleza,
Que em tudo quanto vive, nos descobre
A sábia natureza. 

Atende, como aquela vaca preta 
O novilhinho seu dos mais separa, 
E o lambe, enquanto chupa a lisa teta.
Atende mais, ó cara, 
Como a ruiva cadela
Suporta que lhe morda o filho o corpo,
E salte em cima dela. 

Repara, como cheia de ternura 
Entre as asas ao filho essa ave aquenta, 
Como aquela esgravata a terra dura,
E os seus assim sustenta; 
Como se encoleriza,
E salta sem receio a todo o vulto,
Que junto deles pisa. 

Que gosto não terá a esposa amante, 
Quando der ao filhinho o peito brando, 
E refletir então no seu semblante!
Quando, Marília, quando 
Disser consigo: “É esta
De teu querido pai a mesma barba,
A mesma boca, e testa.”


Tomás António Gonzaga,
in Marília de Dirceu, Parte I (1792)


Tomás António Gonzaga

Tomás António Gonzaga  (Miragaia, Porto, 11 de agosto de 1744 — Ilha de Moçambique, 1810), cujo nome arcádico é Dirceu, foi um jurista, poeta e ativista político português das Américas. Considerado o mais proeminente dos poetas árcades, é ainda hoje estudado em escolas e universidades por seu "Marília de Dirceu" .
Tomás Gonzaga foi para o Brasil com 7 anos de idade. Fez seus primeiros estudos com os jesuítas. Em Portugal, formou-se em Coimbra e escreveu o Tratado de Direito Natural, tese com a qual se candidatou à carreira universitária. Foi magistrado em Portugal, retornando ao Brasil com 38 anos, na condição de Ouvidor de Vila Rica. Datam dessa época, as Liras de Marília de Dirceu (1ª parte), inspiradas em Maria Joaquina Dorotéia de Seixas, noiva do poeta. Em 1789, foi preso por implicações na Inconfidência Mineira. Remetido para a prisão da Ilha das Cobras, escreve, no cárcere, a segunda parte das Liras. Em 1792, parte, degredado, para Moçambique, onde reconstrói a vida e morre.
Sua principal obra são as Liras de Marília de Dirceu, inspiradas em seu romance com Maria Dorotéia. Esta obra apresenta-se dividida em duas partes distintas: a primeira discorre sobre a iniciação amorosa, o namoro, a felicidade do amante, os sonhos de uma família, a defesa da tradição e da propriedade, sempre numa postura patriarcal:

“Irás a divertir-te na floresta,
sustentada, Marília, no meu braço;
aqui descansarei a quente sesta
dormindo um leve sono em teu regaço
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas
toucarei teus cabelos de boninas,
nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!”

A segunda parte, sob a influência dos sofrimentos provocados pela cadeia, mostra-nos uma série de reflexões que abordam desde a justiça dos homens até os caminhos do destino e a eterna consolação no amor que sente por Marília:

“Nesta triste masmorra,
de um semivivo corpo sepultura,
inda, Marília, adoro
a tua formosura.
amor na minha ideia te retrata;
busca, extremoso, que eu assim resista,
à dor imensa, que me cerca e mata.”

As Cartas Chilenas, por outro lado, completam a obra de Gonzaga. São poemas satíricos em forma de carta que circulavam em Vila Rica às vésperas da Inconfidência, eram assinadas por Critilo e endereçados a Doroteu. A autoria das Cartas foi motivo de longas discussões entre os historiadores; só recentemente definiu-se a questão: Critilo, morador em Santiago do Chile (na verdade, Vila Rica), narra os desmandos e arbitrariedades do governador chileno, Fanfarrão Minésio, um político sem moral (na realidade, Luís da Cunha Meneses, governador de Minas Gerais até pouco antes da Inconfidência).


TEXTO I
Cartas Chilenas (fragmento)

“Escuta a história de um modesto chefe
Que acaba de reger a nossa Chile:
Tem pesado semblante, a cor é baça
O corpo de estatura um tanto esbelta,
Feições compridas e olhadura feia,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta,
Nariz direito e grande, fala pouco
Em rouco, baixo som de mau falsete,

Sem ser velho, já tem cabeço ruço
E cobre este defeito a fria calva
A força de polvilho, que lhe deita.

Ainda me parece que estou vendo
No gordo rocinante escarranchado
As longas calças pelo umbigo atadas.
Amarelo colete e sobre tudo
Vestida uma vermelha e justa farda.
De cada bolso da fardeta, pendem
Listadas pontas de dois brancos lenços;
Na cabeça vazia se atravessa
Um chapéu desmarcado, nem sei como
Sustenta o pobre só do laço o peso.

[Tomás Antônio Gonzaga]


TEXTO II - LIRA A

“Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que vivia de guardar alheio gado
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!”

[Tomás Antônio Gonzaga]


LIRA B

“Eu, Marilia, não fui nenhum vaqueiro,
fui honrado pastor da tua aldeia;
vestia finas lãs e tinha sempre
a minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado,
nem tenho a que me encoste um só cajado.

Para ter que te dar, é que eu queria
de mor rebanho ainda ser o dono;
prezava o teu semblante, os teus cabelos
ainda muito mais que um grande trono.
Agora que te oferece já não vejo,
além de um puro amor, de um são desejo.

[Tomás Antônio Gonzaga]
(Daqui)

"Corre, já entre Serras Escarpadas" - Poema de António Dinis da Cruz e Silva


Bacia hidrográfica do Rio da Prata com a localização do Rio Tietê.



Corre, já entre Serras Escarpadas


Corre, já entre serras escarpadas, 
Já sobre largos campos, murmurando. 
o Tieté, e, as águas engrossando, 
soberbo alaga as margens levantadas. 

Penedos, pontes, árvores copada: 
quanto topa, de cólera escumando, 
com fragor espantoso vai rolando 
nos vórtices das ondas empoladas. 

Mas quando mais caudal, mais orgulhoso, 
as margens rompe, cai precipitado, 
atroando ao redor toda a campina. 

O próprio retrato é dum poderoso, 
pois quanto mais sublime é seu estado 
mais estrondosa é a sua ruína. 


in 'Antologia Poética'





Poeta portuguêsAntónio Dinis da Cruz e Silva  nasceu em 1731, em Lisboa, e faleceu em 1799, no Rio de Janeiro. Oriundo de uma modesta família lisboeta, estudou nos  Oratorianos e licenciou-se em Leis na Universidade de Coimbra. Foi juiz de fora em Castelo de Vide, em 1759, e juiz auditor militar em Elvas, em 1764. Foi depois nomeado desembargador da Relação do Rio de Janeiro, tendo mais tarde regressado a Portugal como juiz da Relação do Porto. Voltou ao Brasil em 1790 para julgar os implicados na revolução de Tiradentes, na qual estava implicado o poeta Tomás António GonzagaCláudio Manuel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto.
Poeta do Neoclassicismo foi um dos fundadores da Arcádia Lusitana ou Ulissiponense, em 1756, adotando o pseudónimo de Elpino Nonacriense. Admirador da ideologia pombalina, exaltou literariamente, em 1755, o marquês em Falso Heroísmo.
A sua obra, constituída por géneros diversos, da ode ao drama lírico e à sátira, obedece aos preceitos antibarrocos, imitando os poetas neoclássicos franceses. Na sua poesia notam-se as recordações que a passagem pelo Brasil, enquanto desembargador e juiz da rebelião da Inconfidência Mineira, lhe deixaram. Para além do género dramático, também fez, segundo parece, uns estudos mineralógicos, que integram a sua extensa obra só postumamente publicada na totalidade. 
Na sua escrita, cheia de artificialismo estético, interessou-se pela descrição da realidade e pelas diversas sensações que esta desperta, negando qualquer manifestação lírica pessoal.
Além de poemas vários, escreveu o Hissope, poema heroico-cómico, considerado um dos melhores exemplos do Neoclassicismo português. (Daqui)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

"O Poema Original" - Ary dos Santos





O Poema Original


Original é o poeta 
que se origina a si mesmo 
que numa sílaba é seta 
noutra pasmo ou cataclismo 
o que se atira ao poema 
como se fosse ao abismo 
e faz um filho às palavras 
na cama do romantismo. 
Original é o poeta 
capaz de escrever em sismo. 

Original é o poeta 
de origem clara e comum 
que sendo de toda a parte 
não é de lugar algum. 
O que gera a própria arte 
na força de ser só um 
por todos a quem a sorte 
faz devorar em jejum. 
Original é o poeta 
que de todos for só um. 

Original é o poeta 
expulso do paraíso 
por saber compreender 
o que é o choro e o riso; 
aquele que desce à rua 
bebe copos quebra nozes 
e ferra em quem tem juízo 
versos brancos e ferozes. 
Original é o poeta 
que é gato de sete vozes. 

Original é o poeta 
que chega ao despudor 
de escrever todos os dias 
como se fizesse amor. 

Esse que despe a poesia 
como se fosse mulher 
e nela emprenha a alegria 
de ser um homem qualquer. 


Ary dos Santos, in 'Resumo' 


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

"Mãe!" - Poema de Almada Negreiros


Almada Negreiros, Maternidade, 1935



Mãe!


Mãe! a oleografia está a entornar o amarelo do Deserto por cima da 
minha vida. O amarelo do Deserto é mais comprido do que um dia todo! 
Mãe! eu queria ser o árabe! Eu queria raptar a menina loira! 
Eu queria saber raptar. 
Dá-me um cavalo, mãe! Até a palmeira verde está esmeralda! E o anel?! 

A minha cabeça amolece ao sol sobre a areia movediça do Deserto! 
A minha cabeça está mole como a minha almofada! 

Há uns sinais dentro da minha cabeça, como os sinais do Egípcio, 
como os sinais do Fenício. Os sinais destes já têm antecedentes e eu 
ainda vou para a vida. 

Não há muros para que haja estrada! Não há muros para pôr cartazes! 
Não está a mão de tinta preta a apontar — por aqui! 
Só há sombras do sol nas laranjeiras da outra margem, e todas as noites 
o sono chega roubado! 

Mãe! As estrelas estão a mentir. Luzem quando mentem. Mentem 
quando luzem. Estão a luzir, ou mentem? 
Já ia a cuspir para o céu! 

Mãe! a minha estrela é doida! Coube-me nas sortes a Estrela-doida! 

Mãe! dá-me um cavalo! Eu já sou o galope! Há uma palmeira, Mãe! 
O que quer dizer um anel? Tem uma esmeralda. 

Mãe! eu quero ser as três oleografias! 



in 'Antologia Poética'

domingo, 20 de setembro de 2015

"Família" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Família


Três meninos e duas meninas, 
sendo uma ainda de colo. 
A cozinheira preta, a copeira mulata, 
o papagaio, o gato, o cachorro, 
as galinhas gordas no palmo de horta 
e a mulher que trata de tudo. 

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, 
o cigarro, o trabalho, a reza, 
a goiabada na sobremesa de domingo, 
o palito nos dentes contentes, 
o gramofone rouco toda a noite 
e a mulher que trata de tudo. 

O agiota, o leiteiro, o turco, 
o médico uma vez por mês, 
o bilhete todas as semanas 
branco! mas a esperança sempre verde. 
A mulher que trata de tudo 
e a felicidade. 


 in 'Alguma Poesia'


Almada Negreiros, Duplo Retrato, 1934-36,
óleo sobre tela, 146 cm x 101 cm


"Interroguei-me muitas vezes se uma pessoa tem justificação para negligenciar a sua própria família para lutar por oportunidades para os outros."

in Manuscrito (1975)

"Da Condição Humana" - Poema de Ary dos Santos


António da Silva Porto (Pintor português, 1850–1893), Carro de bois, s/d
 
 

Da Condição Humana


Todos sofremos. 
O mesmo ferro oculto 
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta 
O mesmo sal nos queima os olhos vivos. 
Em todos dorme 
A humanidade que nos foi imposta. 
Onde nos encontramos, divergimos. 
É por sermos iguais que nos esquecemos 
Que foi do mesmo sangue, 
Que foi do mesmo ventre que surgimos.


Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'




"A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace."
 


terça-feira, 15 de setembro de 2015

"Canção da Saudade" - Texto de Almada Negreiros


Almada Negreiros, Acrobatas, 1947, Guache sobre papel, 51 × 63,5 cm
 


Canção da Saudade


Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, 
e amo-a a fantasiá-la viva na minha idade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Diz onde vives, diz onde moras, diz se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim do dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemitérios - as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente


in Frisos - Revista Orpheu nº1




"Lisboa é a nitidez através do ar. Lisboa é a cor manchada dos muros. Lisboa é o musgo novo a nascer sobre o musgo seco. Lisboa é o desenho de fendas, como relâmpagos, a escorrerem pela superfície dos muros. Lisboa é a imperfeição criteriosa. Lisboa é o céu refletido."


"Na hora de pôr a mesa, éramos cinco" - Poema de José Luís Peixoto


Vicki Shuck, "Afternoon at Springhouse Cellar"



na hora de pôr a mesa, éramos cinco


na hora de pôr a mesa, éramos cinco: 
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs 
e eu. depois, a minha irmã mais velha 
casou-se. depois, a minha irmã mais nova 
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, 
na hora de pôr a mesa, somos cinco, 
menos a minha irmã mais velha que está 
na casa dela, menos a minha irmã mais 
nova que está na casa dela, menos o meu 
pai, menos a minha mãe viúva. cada um 
deles é um lugar vazio nesta mesa onde 
como sozinho. mas irão estar sempre aqui. 
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. 
enquanto um de nós estiver vivo, seremos 
sempre cinco. 


 in 'A Criança em Ruínas'


Vicki Shuck, "Window Seat"


"Porque é que é sempre nos momentos em que estamos mais cansados ou mais felizes que sentimos mais a falta das pessoas de quem amamos? O cansaço faz-nos precisar delas. Quando estamos assim, mais ninguém consegue tomar conta de nós. O cansaço é uma coisa que só o amor compreende. A minha mãe. O meu amor. E a felicidade. A felicidade faz-nos sentir pena e culpa de não a podermos participar. É por estarmos de uma forma ou de outra sozinhos que a saudade é maior."


Miguel Esteves Cardoso, Último Volume
 
 

domingo, 13 de setembro de 2015

"A Vida Vazia da Cidade" - Texto de Leon Tolstoi


John Singer Sargent, Le verre de porto (A Dinner Table at Night), 1884



A Vida Vazia da Cidade


Instalámo-nos, portanto, na cidade. Aí toda a vida é suportável para as pessoas infelizes. Um homem pode viver cem anos na cidade, sem dar por que morreu e apodreceu há muito. Falta tempo para o exame de consciência. As ocupações, os negócios, os contactos sociais, a saúde, as doenças e a educação das crianças preenchem-nos o tempo. Tão depressa se tem de receber visitas e retribuí-las, como se tem de ir a um espectáculo, a uma exposição ou a uma conferência. 
De facto, na cidade aparece a todo o momento uma celebridade, duas ou três ao mesmo tempo que não se pode deixar de perder. Tão depressa se tem de seguir um regime, tratar disto ou daquilo, como se tem de falar com os professores, os explicadores, as governantas. A vida torna-se assim completamente vazia. 
 



Elton John - Sacrifice


"Para se ser feliz com os outros, não devemos perguntar-lhes o que têm para oferecer."



sábado, 12 de setembro de 2015

"No Fim do Verão" - Poema de Eugénio de Andrade


Jorge Pinheiro (n.1931), O Jogo da Macaca I, 2004, Óleo sobre tela, 140x180 cm


No Fim do Verão


No fim do verão as crianças voltam, 
correm no molhe, correm no vento. 
Tive medo que não voltassem. 
Porque as crianças às vezes não 
regressam. Não se sabe porquê 
mas também elas 
morrem. 
Elas, frutos solares: 
laranjas romãs 
dióspiros. Sumarentas 
no outono. A que vive dentro de mim 
também voltou; continua a correr 
nos meus dias. Sinto os seus olhos 
rirem; seus olhos 
pequenos brilhar como pregos 
cromados. Sinto os seus dedos 
cantar com a chuva. 
A criança voltou. Corre no vento. 


Eugénio de Andrade, in 'O Sal da Língua'


Jorge Pinheiro, O corvo, Óleo sobre tela, 1989


“Não tenho a certeza de nada, mas a visão das estrelas faz-me sonhar.” 


sexta-feira, 11 de setembro de 2015

"Identidade" - Poema de Miguel Torga


Vladimir Kush, The Dark Side of the Moon



Identidade


Matei a lua e o luar difuso. 
Quero os versos de ferro e de cimento. 
E em vez de rimas, uso 
As consonâncias que há no sofrimento. 

Universal e aberto, o meu instinto acode 
A todo o coração que se debate aflito. 
E luta como sabe e como pode: 
Dá beleza e sentido a cada grito. 

Mas como as inscrições nas penedias 
Têm maior duração, 
Gasto as horas e os dias 
A endurecer a forma da emoção. 


in 'Penas do Purgatório' 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"Vejo o teu rosto quotidiano" - Poema de António Ramos Rosa


Marie Bashkirtseff (Russian painter, 1858-1884), Reading a Book, 1882 



Vejo o teu rosto quotidiano 


Vejo o teu rosto quotidiano 
como se a penumbra 
tivesse olhos 
ou como se as raízes pudessem ver 
através da sombra

Estou no húmus da casa 
no húmus do silêncio 
e vejo através das vértebras 
de uma luz subterrânea 
o teu rosto de terra

Há sempre muros e muros 
e o nevoeiro dos dias 
mas tu és uma chama 
sobre a mesa posta

Vem a noite e as serpentes 
envolvem as lâmpadas 
e reduzem o espaço 
Cada um procura 
na palma das mãos 
os grãos verdes do mar 
O monstro vago da noite 
desfoca o nosso olhar 
e os joelhos vacilam 
O teu rosto persiste 
como se o teu torso fosse 
o tronco de uma árvore 


António Ramos Rosa, in "O Teu Rosto"
Pedra Formosa Edições, 1994