quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"Vejo o teu rosto quotidiano" - Poema de António Ramos Rosa


Marie Bashkirtseff (Russian painter, 1858-1884), Reading a Book, 1882 



Vejo o teu rosto quotidiano 


Vejo o teu rosto quotidiano 
como se a penumbra 
tivesse olhos 
ou como se as raízes pudessem ver 
através da sombra

Estou no húmus da casa 
no húmus do silêncio 
e vejo através das vértebras 
de uma luz subterrânea 
o teu rosto de terra

Há sempre muros e muros 
e o nevoeiro dos dias 
mas tu és uma chama 
sobre a mesa posta

Vem a noite e as serpentes 
envolvem as lâmpadas 
e reduzem o espaço 
Cada um procura 
na palma das mãos 
os grãos verdes do mar 
O monstro vago da noite 
desfoca o nosso olhar 
e os joelhos vacilam 
O teu rosto persiste 
como se o teu torso fosse 
o tronco de uma árvore 


António Ramos Rosa, in "O Teu Rosto"
Pedra Formosa Edições, 1994


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