quarta-feira, 14 de setembro de 2016

"Vivemos de Matar" - Texto de Rafael Chirbes


Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958), The Crab 
 


Vivemos de Matar


Os vivos alimentam-se e engordam às custas dos mortos. É a essência da natureza. Basta ver os documentários sobre a vida selvagem na televisão, aves corpulentas arrancando com o bico as tripas das vítimas, disputando-as entre si; a leoa de focinho enterrado na carne ensanguentada da zebra. Mas nem é preciso ir tão longe: as prateleiras dos supermercados são deprimentes cemitérios: paletes de cordeiro morto, ossos e costeletas de boi esfaqueado, vísceras de vaca sacrificada, lombo de porco eletrocutado, tudo isso em embalagens fabricadas com restos de árvores abatidas. Vivemos do que matamos. Vivemos de matar, ou do que nos é servido morto: os herdeiros consomem os despojos do predecessor, e isso nutre-os, fortalece-os no momento de levantar voo. Quanto maior a quantidade de carne consumida, mais alto e majestoso o voo. E mais elegante, claro. Nada que seja alheio às regras da natureza. 

Rafael Chirbes, in "Na Margem"


Charles Spencelayh, No pedigree


"Podemos muito bem perguntar-nos: o que seria do homem sem os animais? Mas não o contrário: o que seria dos animais sem o homem?"



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