Albert Edelfelt (1854–1905), Christ and Mary Magdalene, 1890
Cristo e Madalena
No museu de Helsínquia, uma arrependida Madalena
atira-se aos pés de um cristo mais humano do que
é habitual. Talvez por isso os olhos de madalena
procuram os olhos de cristo, e uma hipótese de
sorriso (ou será ironia?) abre-se nos lábios dele
mais húmidos que o habitual. Ao contrário de
quadros antigos, com a mesma madalena e o mesmo
cristo, esta tem uma fita a prender os louros
cabelos, veste um casaco de veludo, e o peito
mais húmidos que o habitual. Ao contrário de
quadros antigos, com a mesma madalena e o mesmo
cristo, esta tem uma fita a prender os louros
cabelos, veste um casaco de veludo, e o peito
apenas se deixa adivinhar sob uma camisa branca e
jóias de boa qualidade. Ali, no museu de Helsínquia, é
normal que esta situação não siga os modelos
canónicos: o norte não é um lugar para excessos, para
tragédias, e tanto a madalena como cristo fazem bem
em corportarem-se como burgueses. De facto, o cristo de
sandálias que estende a mão à madalena de edelfeldt,
até lhe fala com ar desprendido, como se comentasse
o tempo. Por outro lado, tudo se passa à beira de um
lago, a não ser que o que se vê seja um braço
do mar báltico, como é frequente nesta região: e
para que haveria o pintor de imaginar cenários
exóticos, quando o que interessa é dar um
fundo compreensível (percetível) ao mistério que
envolve esta cena. De facto, por que haveria cristo
de perder tempo com uma pecadora? A não ser que ela
usasse argumentos fortes na sua discussão, mais fortes
do que o banal arrependimento que, nestas situações
não parece das coisas mais consistentes. Sim: que
desgosto de amor o terá provocado?, que conflito de
cama, que suspeita de doença, que súbito cansaço
na vida de bordel? Nada que o tempo não possa curar...
a não ser que esta troca de olhares, à luz do sol,
se prolongue para lá das árvores, do céu que se
reflete na água da dureza das pedras em que
os seus joelhos se magoam, mesmo que o chão esteja
coberto das folhas mortas do outono. Então,
deixo-os sozinhos. Há conversas que não se podem
interromper, segredos que não se devem desvendar.
Nuno Júdice, 1999
In Teoria Geral do Sentimento - Poesia Reunida 1967-2000,
jóias de boa qualidade. Ali, no museu de Helsínquia, é
normal que esta situação não siga os modelos
canónicos: o norte não é um lugar para excessos, para
tragédias, e tanto a madalena como cristo fazem bem
em corportarem-se como burgueses. De facto, o cristo de
sandálias que estende a mão à madalena de edelfeldt,
até lhe fala com ar desprendido, como se comentasse
o tempo. Por outro lado, tudo se passa à beira de um
lago, a não ser que o que se vê seja um braço
do mar báltico, como é frequente nesta região: e
para que haveria o pintor de imaginar cenários
exóticos, quando o que interessa é dar um
fundo compreensível (percetível) ao mistério que
envolve esta cena. De facto, por que haveria cristo
de perder tempo com uma pecadora? A não ser que ela
usasse argumentos fortes na sua discussão, mais fortes
do que o banal arrependimento que, nestas situações
não parece das coisas mais consistentes. Sim: que
desgosto de amor o terá provocado?, que conflito de
cama, que suspeita de doença, que súbito cansaço
na vida de bordel? Nada que o tempo não possa curar...
a não ser que esta troca de olhares, à luz do sol,
se prolongue para lá das árvores, do céu que se
reflete na água da dureza das pedras em que
os seus joelhos se magoam, mesmo que o chão esteja
coberto das folhas mortas do outono. Então,
deixo-os sozinhos. Há conversas que não se podem
interromper, segredos que não se devem desvendar.
Nuno Júdice, 1999
In Teoria Geral do Sentimento - Poesia Reunida 1967-2000,
Assírio & Alvim, Lisboa: 2000, pp.925-26
Antologia de poemas dedicados a Madalena de Helena Barbas (Ler)
Fra Angelico (born Guido di Pietro; c. 1395–1455), Crucifixion with the Virgin,
Antologia de poemas dedicados a Madalena de Helena Barbas (Ler)
Fra Angelico (born Guido di Pietro; c. 1395–1455), Crucifixion with the Virgin,
Saint John and Mary Magdalene, Monastery of San Marco in Florence
Appearance of Jesus Christ to Mary Magdalene, 1835, by Alexander Andreyevich Ivanov.
In John 20:1–13, Mary Magdalene sees the risen Jesus alone and he tells her
"Don't touch me, for I have not yet ascended to my father." (Noli me tangere)
"Madalena – História e Mito"
"Madalena – História e Mito"
por
Helena Barbas
Helena Barbas
- Introdução
"Primeiro que tudo é preciso esclarecer que a Verdade sobre Maria Madalena é que não há verdade nenhuma. Todos os mistérios com que os romances mais recentes pretendem envolver a figura são o segredo da mera ignorância dos seus autores, ou da exploração da total ausência de factos e artefactos históricos.
Em 1988, quando fiz tese de doutoramento sobre Maria Madalena na Literatura e artes portuguesas (F.C.S.H. – U.N.L.), terminei com uma frase que me surgiu arrogante e subitamente se tornou vaticinadora. Que a figura de Madalena preenchia as necessidades psicológicas típicas de um mito, que talvez estivesse a começar a encontrar o seu momento de efetivação. E assim parece estar a acontecer.
Mas os mitos também nascem, crescem e morrem. E porque o nosso tempo é de velocidades, o auge da recuperação presente de Madalena pode também corresponder ao princípio do seu fim, pelas tentativas de atribuir uma consistência física e real a uma entidade que só funcionará fora delas.
O mito, feito a partir da história, desembaraça-se dela. Sobrevive e alimenta-se da capacidade de significação infinita dos símbolos profundos a que recorre para se manifestar. Quando se procura explicá-lo, ou circunscrevê-lo a eventos concretos, está-se a cortar-lhe as asas, a reduzi-lo – a forçá-lo a regressar à tal história da qual se libertou.
Quando se tenta reencaixar a figura de Maria Madalena no contexto de onde terá saído – atribuir-lhe um corpo, um bilhete de identidade, uma relação familiar concreta, uma descendência – está a matar-se o mito e a empobrecer a figura. Ficamos, pois, também todos nós mais pobres.
Assim, o objetivo deste livro não é explicar quem foi de facto Maria Madalena há dois mil anos, mas tentar perceber e mostrar como, durante dois mil anos, um nome de uma figura que nem sequer se sabe se existiu foi, sucessivamente, atraindo a si acontecimentos e narrativas que levaram à criação, primeiro de uma lenda, depois de uma biografia imaginária.
Essa biografia é resultado das várias leituras da personagem que foram sendo feitas ao longo dos séculos por centenas de escritores e artistas plásticos, dedicados às práticas sagradas e profanas. Procurarei, a partir de textos abrigados pelas tradições portuguesa e espanhola, detetar quais os modos particulares que reveste a figuração e o mito ibéricos de Maria Madalena.
O momento primeiro em que o nome de Maria de Magdalo nos aparece é nos Evangelhos. Referida no texto tido por sagrado que inspirou e inspira religiões e seitas, foi vasto o seu público e ficou garantida a sua permanência. Olharemos para esses livros como meras narrativas literárias, parte das proto-histórias das quais omito se libertou (cap. 1.1).
No Novo Testamento – no romance de Jesus Cristo – Maria aparece como uma pecadora convertida que segue Jesus até casa de Simão, lhe unge os pés e os limpa com seus belos e longos cabelos. É também a primeira testemunha da Ressurreição – sozinha, ou na companhia de outras mulheres. E acaba por tornar-se suficientemente fascinante para se autonomizar face aos outros actores do drama evangélico.
Também não se pode esquecer que Madalena aparece referida noutras obras, como os Evangelhos Apócrifos que sempre tão bem a trataram (cap. 1.2) e que nos Evangelhos Gnósticos se encontra um atribuído a Maria (cap. 1.3). A si vai chamar também episódios da vida de outras mulheres além das que seguem o rasto de Cristo.
Encontram-se outros vestígios mais antigos, arcaicos, que deixaram igualmente a marca de um gesto insólito em narrativas judaicas. Veremos o que Madalena herda através de algumas das mais célebres cenas e mulheres da Bíblia (cap. 1.4) e os seus comentários. A sua grandeza e fama, porém, Maria deve-as a Jesus Cristo. Os vários tipos possíveis de relacionamento entre ambos estão actualmente a sustentar muita literatura espúria.
A hipótese de uma relação amorosa entre Madalena e Jesus não é novidade – na vertente profana alimentou autos e dramas na Idade Média; na vertente mística foi alimentada pelas reflexões dos Padres da Igreja, pelos comentários de Hipólito e Orígenes ao Cântico dos Cânticos de Salomão que a relacionam com a Sulamita. (cap. 1.5).
É a partir destas referências que se vão elaborar as primeiras lendas – resumidas e condensadas na Legenda Aurea de Jacopo da Varazze – (cap. 2) e se consolidam os elementos base para a construção do que se entende ser a Vita de Madalena. Aqui se incluem a polémica medieval sobre as relíquias, bem como a aceitação da sua viagem até Marselha – os modos da apropriação da Santa e dos seus restos mor tais por via francesa (cap. 2.2).
Madalena gálica vai ser aceite também em Portugal (cap. 2.3) logo desde o Flos Sanctor um publicado em 1513, um manual das vidas e milagres dos santos em português vernáculo – traduzido do castelhano – para ser usado pelos pregadores nos seus sermões.
Veremos como as narrativas interagem com a pintura, o teatro e a poesia (cap. 2.4). Pelo século XVI dá-se uma grande transformação na abordagem e representações de Madalena, principalmente em consequência das Reforma e Contra-Reforma, concentradas nas propostas do Concílio de Trento (cap. 3). Rebenta também neste momento a grande querela francesa sobre os enigmas da identidade da(s) Maria(s) evangélica(s) (cap. 3.1).
Em Itália é escrita uma nova versão da lenda – a Rosa Aurea – que vai tentar desligar Madalena da vida de Cristo, censurar e rasurar todos os momentos em que entram em diálogo – inclusive os presentes nos textos canónicos (cap. 3. 2). É também neste texto que Madalena passa a estar associada ao Graal.
A partir de todas estas contribuições torna-se possível delinear uma «biografia imaginária» de Maria Madalena, conjugando todos os episódios e todas cenas que os séculos lhe foram atribuindo (cap. 4), já que o próprio das lendas é absorverem si todos os esforços – tanto os de acrescentamento quanto os de rasura – engordar e enriquecer-se à conta deles.
Destas caracterizações exteriores e psicologizantes (cap. 4.1) começa a delinear-se uma identidade, e uma individualidade (cap.4.2) para a personagem. A partir do literário, vários autores tentam submeter Madalena ao ideário pre-tarquizante do tempo (cap. 5). Têm que se confrontar com as decisões saídas de Trento (cap. 5.1) e obedecer aos decretos (5.2).
O amor de Madalena é reconduzido ao profano (cap. 5.2.1), a sua imagem começa a invocar metáforas nacionais, torna-se Leonor (cap. 5.2.2). Enquanto mito amoroso começa a aproximar-se da figura de Inês de Casto (cap. 5.3.2). Em termos internacionais a ópera italiana recupera a castelã medieval. Exibe uma personagem algo libertina (cap. 6) que nos chega por via das traduções.
O esforço francês para criar uma epopeia magdaleniana tem eco em dois poemas nacionais diretamente inspirados por Camões. Provam estes que, literária e pictoricamente, o problema da identidade de Madalena fica resolvido desde os primórdios. O seu peso como figura, as ações e gestos que lhe são atribuídos, exigem que seja uma única personagem. Só assim pode transformar-se, inclusive, em heroína épica (cap. 7) da demanda amorosa, uma nova Inês.
Um outro caminho que reforça a recondução ao profano é o seguido pela literatura edificante (cap. 8) que procura domar Madalena tornando-a doméstica. Tudo isto a desaguar nas paródias à personagem e seus gestos: Madalena torna-se lavadeira, Leonor a caminhar «descalça pela calçada» (cap. 9).
Nos países protestantes, após a Reforma, Madalena devém símbolo da distância entre o homem e Deus. Desce até ao Sul representada como figuração da Melancolia (cap. 10). Uma herdeira da acédia, a exibição do sofrimento causado pela influência astrológica do planeta Saturno, vai transformar-se no «mal-de-vivre» e no «spleen». O espelho é o das vaidades e o crânio um espelho funesto (cap. 10.1).
Madalena converte-se na cortesã francesa ou pré-rafaelita (cap. 12). Mantém a qualificação que quase nunca a abandona – a prostituta. Carregada agora com a doença da melancolia é fácil aos nossos autores simbolistas recuperarem-na – junto com Salomé – como exemplo da figura das mulheres fatais (cap. 12.1).
Madalena fica posta em sossego durante as duas Grandes Guerras. É resgatada pelo revivalismo hippy dos anos de 1960, pelos novos feminismos, como exemplo de um poder matriarcal perdido e recuperável. Regressa em 1970 como Superstar (cap. 13), diva na ópera-rock e no cinema (cap. 13.1).
Já no século XXI há um segundo surto desencadeado pelo polémico best-seller mundial, o Código Da Vin (2003), que sobre ela dirigiu os olhos do mundo. As lendas são recuperadas e deturpadas (cap. 13.2), Madalena é associada ao Graal e aos Templários (cap. 13.3).
Rebenta a quarta querela da identidade com as pseudo-descobertas de novas relíquias (cap. 13.4) e interessantes consequências científicas. Em Portugal, caminha da lenda a uma reformulação do mito. Surge na pintura de Paula Rego que lhe chama «Bruxa Branca» e exibe-se como eremita mística em Barahona Possolo. No teatro vão ainda ecoar as paródias, surgindo negra e pulverizada.
No geral encontramos a reescrita de ecos antigos também na poesia. Na prosa, José Saramago transforma-a numa nova Diotima. Já no século XXI, por interferência das novas importações (cap. 14.1) surge-nos um ensaio. No teatro Madalena é reconduzida ao seu esplendor gnóstico (cap. 14.1.1) por Armando Nascimento Rosa; encontra uma atualização verdadeiramente inédita do seu mito no romance de Rui Zink (cap. 14.1.1).
Em 2007 estreia-se a versão portuguesa de Jesus Cristo Super Star. Em todos os momentos irão ser dados exemplos da sua representação literária e pictórica e dos modos como foi sendo recebida em Portugal, na Península. Madalena chega-nos por importação – de França, de Itália por via de Espanha.
Far-se-á, pois, uma pequena resenha das grandes diferenças que por tal apresenta relativamente às tradições estrangeiras. Maria de Magdalo é uma figura do nosso património coletivo, exibe as marcas das mudanças e evolução dos modos de pensamento e filosofias, da história psicológica do Ocidente, pertence ao campo da História das Ideias, exige uma abordagem Comparatista.
Enquanto mito, desempenha uma função no mínimo terapêutica, e não deverá ser tratada de ânimo leve. Diz-nos Jung que, quando há coincidência em testemunhos vindos de origens diversas, quando o tema renasce após séculos de aparente desgaste, é prova que se pode estar em presença de um Arquétipo. Assim, o tema de Madalena pertencerá ao depósito das imagens proto-arcaicas do inconsciente coletivo cuja manifestação, e leitura, relevam da ordem da linguagem do sonho e/ou do sagrado."
Helena Barbas, in Madalena – História e Mito, 2008, ensaio
Artemisia Gentileschi, Mary Magdalene, c.1616-17, Pitti Palace in Florence.
Museo del Prado, Madrid
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