quinta-feira, 3 de setembro de 2020

"Debaixo duma Árvore" - Poema de Júlio Dantas


Alberto Virgílio da Rocha Portugal Correia de Lacerda (Pintor português, 1889-1975),
Caminho de Colares (Sintra), Óleo sobre tela, 1937


Debaixo duma Árvore


Enzinhas que entouçais o tronco tosco
Soltai folhas, fazei-me a cama de ouro,
Que um desgraçado vem chorar convosco.

Enquanto eu aqui seja, vos agouro,
Tereis água de lágrimas bastante,
Porque sobram motivos do meu choro.

O pensamento dói-me a cada instante:
Nem confortos me abrandam, que ao enfermo
Todo o conforto lhe é mortificante.

Trago comigo um mal que não vê termo;
Convosco desabafo o meu desgosto,
Porque o mundo não pode compreender-mo.

Tudo o que tenho na lembrança posto,
Mal me alembro, desfaz-se, freixo rude,
E em lágrimas me tomba pelo rosto.

Mas como foi que eu escolher vos pude
Para contar-vos íntimas moléstias,
A vós, cheias de seiva e de saúde?

As vossas grenhas verdes, o sol veste-as;
E na sombra do chão áspero e duro,
Nomes escreve com douradas réstias.

o musgo sobe ao tronco bem seguro;
Trucilam tordos, palram estorninhos
Em cada galho musculoso e escuro.

Antes eu conte às pedras dos caminhos
Meu desgosto: são pálidas como eu;
As lástimas espantam vossos ninhos.

Como do ninho o tordo não vê céu,
De ouvir contar angústias tão escuras,
Não vá ele cuidar que anoiteceu...

O melhor confidente de amarguras
E o que nada diz e tudo escuta,
Vidrado o olhar por nossas desventuras:

E vós quase assim sois, enzinha bruta!
Meu coração, o mundo contrafez-mo;
É ele que a si fala e a si se escuta:

Quando vos falo a vós, falo a mim mesmo.


Júlio Dantas (1876-1962), in "Nada",
 Editor: António Maria Pereira, 1896


Alberto Virgílio da Rocha Portugal Correia de Lacerda, 
Autorretrato a óleo de 1958


Alberto Virgílio da Rocha Portugal Correia de Lacerda nasceu no Forte de São Julião da Barra (Oeiras) em 12.10.1889.

Foi um pintor notável, do movimento realista, discípulo de Carlos Reis. Formado pela Academia de Belas Artes, iniciou a sua vida profissional como professor do Liceu de Santarém.

Foi professor também nos Liceus Garrett (mais tarde Mª Amália Vaz de Carvalho) e Passos Manuel, em Lisboa, e também na Escola Afonso Domingues, de que foi também diretor. Foi também professor e diretor da Escola Industrial e Comercial da Figueira da Foz, cidade onde se manteve até 1929 e onde viria a construir uma casa, em Tavarede, para onde foi viver após a sua reforma.

Regressado a Lisboa, foi nomeado Professor Metodólogo de Desenho e Pintura das Escolas Técnicas Industriais e Diretor da Escola Machado de Castro. Nessa qualidade, e no seguimento da reforma educativa de 1930-31, fundou as escolas industriais de Peniche, Castelo Branco e Barreiro.
Foi agraciado em 1957 com a Ordem da Instrução Pública, no grau de Oficial.

Alberto de Lacerda pintou sempre ao longo de toda a sua vida, apesar das suas inúmeras responsabilidades docentes, e foi frequentador das tertúlias intelectuais de Lisboa do seu tempo, nomeadamente as do Café Nicola e do Café do Gelo, este hoje desaparecido.

A sua obra integra-se no movimento realista e denota uma observação minuciosa e um realismo implacável, como afirma o Fernando de Pamplona na sua obra Um século de pintura e escultura em Portugal (1830-1930).

De carácter discreto, reservado e individualista, Alberto de Lacerda nunca quis dar grande divulgação ao seu trabalho, recusando-se normalmente a participar em exposições. Quis sempre preservar a sua independência artística e poucas vezes vendeu um quadro, preferindo oferecê-los aos seus amigos e outras pessoas que respeitava e admirava.

Alberto de Lacerda encontra-se representado em vários museus e instituições por todo o país. Não deve ser confundido com seu primo o poeta Alberto de Lacerda (1928-2007).

Casou em Lisboa em 3.10.1931 com uma sua colega de Belas Artes, Mariana da Anunciação Leoni Pereira, de uma família do Cartaxo, dali natural, de quem se viria no entanto a divorciar nove anos mais tarde.

Alberto de Lacerda faleceu em Cascais em 10.1.1975 e encontra-se sepultado no Cemitério de Tavarede. (Daqui - Genealogias)

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