sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Opiário" - Poema de Álvaro de Campos


William Brymner (1855–1925), Portrait of a Gentleman, 1909 (watercolor)


Opiário

                                                           Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro 

 É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure,
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde —
Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me com a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Queria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pela coleira!

Porque isto acaba mal e há de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há de me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma haverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que com os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Prá cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh’alma!
  
 No Canal de Suez, a bordo.
 
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 135.
1ª publ. in Orpheu, nº1. Lisboa: Jan.-Mar. 1915 




Opiário, poema escrito à maneira decadente, algures entre António Nobre e Mário de Sá-Carneiro, precede no Orpheu 1 a Ode Triunfal, poema directamente inspirado pela Vanguarda futurista. Estas «duas composições de Álvaro de Campos publicadas por Fernando Pessoa» (na menção que figura na revista) são a primeira aparição pública de Álvaro de Campos, que reincidirá no Orpheu 2 com a Ode Marítima, e constituem um fulcro do escândalo gerado pela revista.

Segundo a Carta sobre a Génese dos Heterónimos, o Opiário foi escrito depois da Ode Triunfal «para completar o número de páginas» da revista. Acrescenta: «Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver». A ideia era dar «o Álvaro em botão», o de «antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência», (Correspondência, II: 344). Historicamente ulterior à Ode Triunfal, é, pois, heteronimicamente anterior. E cumpre a função de dar a metamorfose de Álvaro de Campos, por assim dizer, ao vivo

Aqui, está ainda na sua fase de poeta decadente, cuidadosamente vestido, como um dandy, de «casaca característica» e monócolo, «monárquico, mas não católico», capaz de dizer: «ver passar a Vida faz-me tédio» (Orpheu, 72). A ideia que preside ao específico modo de apresentação pública dos dois Álvaro de Campos – o de antes e o de depois de ter conhecido o Mestre – pode ser encontrada num texto daquela época: «O dinamismo [Futurismo, Vorticismo, etc.] é uma corrente decadente, e o elogio e a apoteose da força, que o caracteriza, é apenas aquela ânsia de sensações fortes, aquele entusiasmo excessivo pela saúde que sempre distinguiu certas espécies de decadentes» (Páginas  Íntimas, 177). ora, uma ânsia equivalente a esta vem expressa de um modo enfático na estrofe final de Opiário: «E afinal o que quero é fé, é calma, / E não ter estas sensações confusas. / Deus que acabe com isto! Abra as eclusas – / E basta de comédias na minh’alma!» (Orpheu 76), que, aliás, se deve ler seguida da datação: «1914, Março. No canal de Suez, a bordo». 

De facto, a «ânsia de sensações fortes», a vontade de libertação da prisão de tédio e absurdo, assim gritada,  é sublinhada pelo facto contextual do poeta estar a escrever confinado na sua cabine, a bordo, em pleno canal de Suez, ou seja, num compartimento que está no interior de um navio, por sua vez ladeado pelas paredes de um estreito (obra de engenharia de grande dimensão, por isso tão afim da personagem de Álvaro de Campos), num espaço que é, assim, triplamente fechado. 

É o facto de ser tão opressivo o clima criado por este poema que torna especialmente brilhante, por contraste, a irrupção de energia que ocorre desde os primeiros versos «febris» da Ode Triunfal, datada de Londres, três meses mais tarde. A sua sucessão no Orpheu 1 corresponde, pois, aos dois actos de um monólogo, lírico primeiro, épico depois. E a ode Triunfal, se bem que mantenha o mesmo entusiasmo quase em todos os versos, não consegue esquecer as suas ainda tão recentes «sensações confusas», e termina com um verso que contém, em síntese, o Sensacionismo – o querer «ser toda a gente e toda a parte» ou o «Sentir tudo de todas as maneiras» de Passagem das Horas  – e o Decadentismo daquele que sabe muito bem não passar de um operador de ilusões – «Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!».

De todo o modo, Álvaro de Campos já existe inteiro em Opiário, como se prova pela fluidez da oralidade e o uso de expressões como «Leve o diabo a vida e a gente tê-la!» ou «Que um raio as parta!» (Orpheu 74), o encadeamento sintáctico dos versos, ou ainda a violenta auto-ironia: «Meu coração é uma avozinha que anda / Pedindo esmola às portas da Alegria» (Orpheu 73) ou «Se ao menos por fora fosse tão / Interessante como sou por dentro!» (Orpheu 75). Tudo associado a uma paródia do Decadentismo (de que é sinal também a dedicatória a Sá-Carneiro), visível na montagem de dois discursos, um imitando essa poética, outro rindo-se dela: «Vou cambaleando através do lavor / Duma vida-interior de renda e laca. / Tenho a impressão de ter em casa a faca / Com que foi degolado o Precursor.» (Orpheu 71).

BIBL.: Joaquim-Francisco Coelho, «Sobre o Tédio da Vida no Opiário», in Colóquio/Letras 107, Jan. 1989.  

- Fernando Cabral Martins (Daqui - Opiário - modernismo.pt


Sem comentários: