Edith Martineau (British watercolour painter, 1842-1909), 'At the Well', 1890
O talento na juventude e na velhice
Nada menos exato do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes reciprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso não quer dizer que se seja necessariamente intolerante e retrógado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e contribuiram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a mocidade literária, negando embora sistematicamente o passado, é nele que se inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.
(...) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços; nem só a reflexão dos velhos; não está apenas na audácia de uns, nem apenas na experiência dos outros; realiza-se pela magnífica integração das virtudes contrárias, sem a qual não seria possível, em todo o seu esplendor, a marcha da humanidade. Que se ganha em cavar um abismo entre mocidade e velhice, se uma é, fatalmente, o prolongamento da outra; se o que passa de mão em mão é, afinal, o mesmo facho aceso, como na corrida ritual da Grécia antiga; e se, bem vistas as coisas, não está de nenhum modo provado que os novos sejam intelectualmente os mais novos, e os velhos os mais velhos?
(...) Como admitir o divórcio entre novos e velhos - invenção antinatural dos conventículos literários de todos os tempos -, se os velhos têm nas novas gerações, penhor radioso do futuro, o instrumento de compreensão e de difusão da sua obra, e se os novos devem aos velhos a formação do seu espírito, a educação da sua sensibilidade e a opulenta capitalização de riquezas da língua em que se expressam?
A paz entre idades sucederá um dia, decerto, à paz entre as nações - quando a velhice egoísta reconhecer, finalmente, que não deve menosprezar os moços, antes facilitar-lhe o caminho da vida, e quando, por seu turno, a juventude impaciente chegar à convicção de que não é atropelando nem injuriando que se vence, e de que, quando os jovens se instalaram no planeta - já os velhos o habitavam.
Escritor português, nasceu em 1876, em Lagos, e faleceu em 1962, em Lisboa. O polígrafo Júlio Dantas cultivou os mais variados géneros literários, como o romance, a poesia, o teatro e conto, tendo-se também dedicado ao ensaio. Alcançou os seus maiores êxitos no teatro, com obras como A Severa, A Ceia dos Cardeais, Rosas de Todo o Ano e O Reposteiro Verde. O facto de ter sido invetivado no conhecido Manifesto Anti-Dantas, de José de Almada-Negreiros, é sinal da sua notoriedade de homem público. (Daqui)
(Júlio Dantas)
(Júlio Dantas)
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