quinta-feira, 24 de novembro de 2022

"Menina mal-amada" - Poema de Cora Coralina


Antonio Rotta (Italian painter, 18281903), The death of the chick, 1878,
 

Menina mal-amada


Fui levada à escola mal completados cinco anos.
Eu era medrosa e nervosa. Chorona, feia, de nenhum agrado,
menina abobada, rejeitada.
Ao nascer frustrei as esperanças de minha mãe.
Ela tinha já duas filhas, do primeiro e do segundo casamento
 com meu Pai.
Decorreu sua gestação com a doença irreversível de meu Pai,
desenganado pelos médicos.
Era justo seu desejo de um filho homem
e essa contradição da minha presença se fez sentir agravada 
com minha figura molenga, fontinelas abertas em todo crânio.
Retrato vivo do velho doente, diziam todos.
Me achei sozinha na vida. Desamada, indesejada desde sempre.
Venci vagarosamente o desamor, a decepção de minha mãe.
Valeu e muito minha madrinha de carregar – Mãe Didi.
Minha vida ao me arrastar pelo chão depois de vários trambolhões
na escada, galo na testa, gritaria e algumas palmadas, da bica d’água
passava para a cozinha em volta da Lizarda, criada da casa, como se dizia.
Cozinheira, dona dos torresmos que ela me dava e que me causavam
constantes diarreias e vómitos. Enquanto ia crescendo, lá pelo terreiro,
suja, desnuda, sem carinho e descuidada, sempre aos trambolhões
com minhas pernas moles.
Ganhei até mesmo um apelido entre outros, perna mole, pandorga,
chorona, manhosa.
Na cozinha Siá Lizarda explorava meus préstimos.
Me punha a escolher marinheiros do arroz, esse era beneficiado
nos monjolos das fazendas e traziam, além da marinhagem,
pedrinhas trituradas que davam trabalho lento de separar.
Também o feijão, embora mais fácil.
Eram meus préstimos em promessas de torresmos com farinha.

Mãe, lá em cima, não tomava conhecimento desses detalhes.
Sempre sozinha, crescendo devagar, menina inzoneira, buliçosa, malina.
Escola difícil. Dificuldade de aprender.
Fui vencendo. Afinal menina moça, depois adolescente.
Meus pruridos literários, os primeiros escritinhos, sempre rejeitada.
Não, ela não. Menina atrasada da escola da mestra Silvina…
Alguém escreve para ela… Luís do Couto, o primo.
Assim fui negada, pedrinha rejeitada, até a saída de Luís do Couto
para São José do Duro, muito longe, divisa com a Bahia.
Ele nomeado, Juiz de Direito.
Vamos ver, agora, como faz a Coralina…
Nesse tempo, já não era inzoneira. Recebi denominação maior,
alto lá! Francesa.
Passei a ser détraqué, devo dizer, isto na família.
A família limitava. Jamais um pequeno estímulo.
Somente minha bisavó e tia Nhorita.
Vou contando.

Minha mãe, muito viúva, isolava‑se
no seu mundo de frustrações,
ligada maternalmente à caçula do seu terceiro casamento.
Eu, perna mole, pandorga, moleirona, vencendo sozinha as etapas
destes primeiros tempos. Afinal, paramos no détraqué.

Tudo isso aumentava minha solidão e eu me fechava, circunscrita
no meu mundo do faz de conta…
E vamos trabalhar no pesado. Não ganhar pecha de moça romântica,
que em Goiás não achava casamento.
Tinha medo de ficar moça velha sem casar.
Me apegava demais com Santo Antônio, Santa Anna, padroeira de Goiás.
Minha madrinha para as dificuldades da vida.

Muito me valeu a escola.
Um dia, certo dia, a mestra se impacientou.
Gaguejava a lição, truncava tudo. Não dava mesmo.
A mestra se alterou de todo, perdeu a paciência,
e mandou enérgica: estende a mão.
Ela se fez gigante no meu medo maior, sem tamanho.
Mandou de novo: estende a mão.
Eu de medo encolhia o braço.

Estende a mão! Mão de Aninha, tão pequena!
A meninada, pensando nalguns avulsos para eles,
nem respirava, intimidada.
Tensa, expectante, repassada.
Era sempre assim na hora dos bolos em mãos alheias.
Aninha, estende a mão. Mão de Aninha, tão pequena.
A palmatória cresceu no meu medo, seu rodelo se fez maior,
o cabo se fez cabo de machado, a mestra se fez gigante
e o bolo estralou na pequena mão obediente.
Meu berro! e a mijada incontinente, irreprimida.
Só? Não. O coro do banco dos meninos, a vaia impiedosa.
– Mijou de medo… Mijou de medo… Mijou de medo…
A mestra bateu a régua na mesa, enfiou a palmatória na gaveta,
e, receosa de piores consequências, me mandou pra casa, toda mijada,
sofrida, humilhada, soluçando, a mão em fogo.

Em casa ganhei umas admoestações sensatas.
A metade compadecida de uma bolacha das reservas de minha bisavó,
e me valeu a biquinha d’água, o alívio à minha mão escaldada.
Ao meu soluçar respondia a casa: “é pra o seu bem, pra ocê aprender,
senão não aprende, fica burra, só servindo pro pilão”
.
Sei que todo castigo que me davam era para meu bem.
Eu não sabia que bem seria este representado por bolos na mão,
chineladas e reprimendas, sentada de castigo com a carta de ABC na mão.
O bem que eu entendia era a bolacha que me dava minha bisavó
e os biscoitos e brevidade da tia Nhorita.
Estes, entravam no meu entendimento. Do resto não tinha nenhuma noção.

Fui menina chorona, enjoada, moleirona.
Depois, inzoneira, malina.
Depois, exibida. Détraqué.
Até em francês eu fui marcada.
Sim, que aquela gente do passado,
tinha sempre à mão o seu francês.
Se souberes viver, no fim te sentirás feliz.
Envelhecer é entrar no reino da grande Paz.
Serenidade maior.
Olhar para frente e para trás,
e dizer: dever cumprido.

O que mais se pode na vida desejar?…
Sentada na margem do caminho percorrido,
ver os que passam, ansiosos, correndo, tropeçando.
E dizer baixinho:
corri tanto quanto você.
E você se quedará, um dia, como eu.
A certeza de ter vivido e vencido
a maratona da vida.

No Passado
 
Tanta coisa me faltou.
Tanta coisa desejei sem alcançar.
Hoje, nada me falta,
me faltando sempre o que não tive.

Eu era uma pobre menina mal‑amada.
Frustrei as esperanças de minha mãe, desde o meu nascimento.
Ela esperava e desejava um filho homem, vendo meu pai doente
irreversível.
Em vez, nasceu aquela que se chamaria Aninha.
Duas criaturas idosas me deram seus carinhos:
minha bisavó e minha tia Nhorita.
Minha bisavó me acudia quando das chineladas cruéis da minha mãe.
No mais, eu devia ser, hoje reconheço, menina enjoada, enfadando
as jovens da casa e elas se vingavam da minha presença aborrecida,
me pirraçando, explorando meu atraso mental, me fazendo chorar
e levar queixas doloridas para a mãe
que perdida no seu mundo de leitura e negócios não dava atenção.
Quem punia por Aninha era mesmo minha bisavó.
Me ensinava as coisas, corrigia paciente meus malfeitos de criança
e exortava minhas irmãs a me aceitarem.
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus sentidos foram se aguçando
para as pequenas ocorrências de que não participavam minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e realidades.
E fui marcada: menina inzoneira.
Sem saber o significado da palavra, acostumada ao tratamento ridicularizante,
esta palavra me doía.
Certo foi que eu engenhava coisas, inventava convivência
com cigarras,
descia na casa das formigas, brincava de roda com elas,
cantava “Senhora D. Sancha”, trocava anelzinho.
Eu contava essas coisas lá dentro, ninguém compreendia.
Chamavam, mãe: vem ver Aninha…
Mãe vinha, ralhava forte.
Não queria que eu fosse para o quintal, passava a chave no portão.
Tinha medo, fosse um ramo de loucura, sendo eu filha de velho doente.
Era nesse tempo, amarela de olhos empapuçados, lábios descorados.
Tinha boqueira, uma esfoliação entre os dedos das mãos, diziam: “Cieiro”.

Minhas irmãs tinham medo que pegasse nelas.
Não me deixavam participar de seus brinquedos.
Aparecia na casa menina de fora, minha irmã mais velha passava o braço no ombro e 
[segredava: 
“Não brinca com Aninha não. Ela tem cieiro
e pega na gente”
.
Eu ia atrás, batida, enxotada.
Infância… Daí meu repúdio invencível à palavra saudade, infância…
Infância… Hoje, será.


Cora Coralina (1889-1985),
in "Vintém de cobre: meias confissões de Aninha" 
(Editora Global, 1ª edição em 1983)


"Vintém de Cobre - Meias confissões de Aninha" de Cora Coralina
Editora Global (10ª Edição)
 
 
[No tempo do mil-réis, o vintém de cobre era a moeda mais desvaliosa, aquela que mal comprava um doce. Por modéstia e também um pouco por malícia (talvez muita malícia), Cora Coralina batizou com o nome da velha moeda as suas quase memórias, ou meias-confissões, como ela prefere, redigidas em versos. É um livro tumultuado, aberrante, da rotina de se fazer e ordenar um livro. Tumultuado, como foi a vida daquela que o escreveu. Vida tumultuada, cheia de esbarrões do destino que, em vez de provocar desânimo, despertaram no espírito de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas (nome verdadeiro de Cora Coralina) uma fibra de guerreira e uma sabedoria simples, por vezes meio marota, feita de respeito e piedade pelo ser humano, sobretudo pelos que sofrem, mas também com um fundo de ironia mansa e de malícia sem maldade, um humor típico da gente do interior, um sarcasmo angelical (se é que há sarcasmo entre os anjos), mistura de humildade franciscana e revolta diante das estúpidas repressões da sociedade e da dureza dos costumes antigos, sob os quais se criou, foi educada e que lhe deixou marcas tão profundas na alma: Na casa antiga, castigos corporais e humilhantes, coerção,/ atitudes impostas, ascendência férrea, obediência cega./ Filhos foram impiedosamente sacrificados e despojados./ E para alguma rebeldia indomável, lá vinha a ameaça terrível, impressionante/ da maldição da mãe, a que poucos resistiam./ Do resto prefiro não esmiuçar. 
Os poemas de Vintém de Cobre são todos escritos neste tom simples e comunicativo, num lirismo quase de toada sertaneja, ricos de experiência humana. Talvez por pudor, ou autodefesa, nunca revelam toda a dureza dos factos. Ficam nas meias-confissões. E por malícia são chamados de vintém de cobre quando, na realidade, constituem a mais pura e autêntica moeda de ouro.] (daqui)

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

"Viver" - Poema de Carlos Drummond de Andrade

 

Jean Dubuffet (French painter and sculptor, 1901–1985), Vicissitudes (Les Vicissitudes), 1977


Viver


Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?


Carlos Drummond de Andrade
,
in 'As Impurezas do Branco', 1973
 

 "As impurezas do branco" de Carlos Drummond de Andrade
Capa: warrakloureiro. Editora: Companhia das Letras 
 
 
Publicado pela primeira vez em 1973, "As impurezas do branco" é um livro singular na vasta e aclamada carreira do autor mineiro Carlos Drummond de Andrade. O poeta se mostra permeável ao concretismo, à poesia de tonalidade menos cultivada - estamos na década que assistiria ao aparecimento da “geração mimeógrafo” -, à espacialidade da página em branco. 
Atento aos acontecimentos do seu tempo, o poeta observa, com ironia e até alguma malandragem carioca, o quotidiano do Brasil e do mundo. Grandes notícias, fait divers, o verão na Cidade Maravilhosa, papel da publicidade em nossas decisões - nada escapa ao crivo crítico e debochado do poeta mineiro. (daqui)
 
 

Jean Dubuffet, Garden with Melitaea (Jardin aux Mélitées), 4 September 1955,
Collection Fondation Dubuffet, Paris
 
 

Arte Bruta


Art brut
é um termo francês que se traduz como 'arte bruta', inventado pelo artista francês Jean Dubuffet para descrever a arte que é feita fora da tradição académica. Dubuffet, o mais importante artista francês surgido após a Segunda Guerra Mundial, no meio da sua carreira interessou-se pela arte dos doentes mentais, após estudar A Arte do Insano (1922) com o psiquiatra suíço Hans Prinzhorn. Dubuffet aplicou o nome Art Brut (Arte Bruta) aos desenhos, pinturas e rabiscos do psicótico, do ingénuo e do primitivo, obras que ele considerava as formas mais puras da expressão criativa. Com a descoberta dos primeiros cubistas de esculturas primitivas da Oceânia e de África, o estudo de Dubuffet desse tipo de arte deu-lhe a inspiração que buscava para a sua própria arte, pois representava para ele a expressão mais autêntica de emoção e dos valores humanos.

Originalmente inspirado na arte infantil do pintor suíço Paul Klee, a partir dos anos 1940, as pinturas de Dubuffet imitaram a sinceridade e a ingenuidade que ele associava à verdadeira arte bruta. A primeira dessas obras mostra uma visão infantil da humanidade e da civilização, com cores alegres e desenhos ingénuos. Obras posteriores, mais passionais e primitivas, às vezes patéticas, às vezes obscenas, incorporam formas derivadas do graffiti e da arte psicótica; pintadas em um empasto espesso ou construídas com colagens, essas obras densamente detalhadas e intensamente expressivas transmitem uma sensação de vida abundante e força bruta.

Embora a categoria de Arte Bruta de Dubuffet abarque qualquer pintura ou escultura criada fora dos limites da cultura contemporânea ou tradicional - e, portanto, livre da manipulação ou influência cultural - ele pessoalmente estava principalmente interessado numa subcategoria específica desta arte bruta: a saber, as obras dos pacientes dos hospitais psiquiátricos.

O fascínio de Dubuffet pela arte insana baseou-se na sua suposta pureza criativa e na inspiração que deu ao seu próprio trabalho. Em suma, ele acreditava que apenas a Art Brut era imaculada do contacto com os valores culturais prevalecentes, e esse expressionismo espontâneo inspirou os seus próprios desenhos infantis, com sinais originais que foram a base concetual para a sua estrutura do estilo primitivo executada sem qualquer sentido de composição ou características estéticas claras. A sua escultura também foi baseada em esforços semelhantes de artistas da Art Brut. No papel machê (papier mâché), nas tábuas de madeira e em uma variedade de "objetos encontrados" ao estilo dos readymades de Marcel Duchamp, Dubuffet também misturou graxa, areia e gesso com tinta brilhante para criar um meio "bruto" adequado. Ironicamente, elogiando os artistas do Art Brut pela originalidade e ausência de imitação, Dubuffet imitou o seu trabalho tantas vezes que foi acusado de plágio.

Materiais usados pelos artistas da Art Brut não são necessariamente materiais de arte. Estes artistas raramente faziam pinturas a óleo ou esculturas diretas de bronze ou argila. Demonstrando uma desenvoltura incomum e robusta, eles usam tudo o que conseguem, seja lama, sangue, giz, cera ou uma simples caneta de tinta. Esse imediatismo do material expõe a necessidade intensa de criar e, além disso, ilustra que as obras feitas são em grande parte extensões da identidade reflexiva em curso.(Daqui)

 

Jean Dubuffet, Restaurant Rougeot, March 1961
 

"Eu não tenho enredo de vida? Sou inopinadamente fragmentária. Sou aos pouco. Minha história é viver."
 
 
 
 
 
"Nunca lerás o que escrevo. E quando eu tiver anotado o meu segredo de ser – jogarei fora como se fosse ao mar. Escrevo-te porque não chegas a aceitar o que sou. Quando destruir minhas anotações de instantes, voltarei para o meu nada de onde tirei um passado que só se renova com paixão no estranho presente. Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelos caminhos."
 
 
'Água Viva' de Clarice Lispector
Editora: Relógio D'Água
 
 
 «De facto, "Água Viva" não se parece com nada que tivesse sido escrito na época, no Brasil ou em qualquer outro lugar. Os seus parentes mais próximos são visuais ou musicais, uma semelhança que Clarice enfatiza ao transformar a narradora, uma escritora, nas versões iniciais, numa pintora; na altura, ela mesma dava os primeiros passos na pintura.
(…) Clarice compara o livro a aromas (“O que estou fazendo ao te escrever? estou tentando fotografar o perfume”), a sabores, (“Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas”) e ao tato, embora a sua metáfora mais insistente seja em relação ao som: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? Improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia.” Isto é música abstrata, “uma melodia sem palavras”.
Livre dos constrangimentos de um enredo ou de ter de contar uma história, "Água Viva" é, todo ele, a crista da onda.» (daqui)
 
 

domingo, 13 de novembro de 2022

"Elegia dos Amantes Lúcidos" - Poema de Natália Correia



 Lyon, Musée des Beaux-Arts


Elegia dos Amantes Lúcidos 
 
 
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!

Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exata dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino

E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o teto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum inseto

Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge

Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!

Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?

Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
Uma inflação de deuses que não pode parar
Como um pássaro cego à nora da intriga
Que é a morte no centro connosco a circular.

Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
Duma gota de orvalho que se há de
Negar à minha sede desértica e futura.

Como o brilho dum sol partido ao meio
Damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade.

Aqui pousou um pássaro de lume
Que deixou um voo subterrâneo
Na repetida vibração do gume
Que cada hora traz à lâmina do crânio.

Teus dedos num relógio como a picada duma abelha
A fabricar o mel da estação perdida!
Que quanto a primavera um rouxinol na telha
É toda a melodia que traz na unha a vida.

O navio tem dois extremos ermos:
Os cabelos para Vénus e os pés para Marte.
Mas a viagem é o mar com a terra a ver-nos.
E com lenços à vista ninguém parte.

Ah, se ao menos eu pudesse agora erguer-me
Como uma pedra pelas minhas mãos futuras
E ficasse para sempre a aquecer-me
Ao sol que cega efémeras criaturas!

Se soltasses as aves da rotina
E de um jorro de deuses abrisses a comporta
E reclinada em tua espádua genuína
Eu entrasse num céu sem ter que achar a porta!

Se tu viesses cavaleiro branco
Orvalhado pela manhã do meu instinto.
E ficasses a chamar-me como um canto
No porvir do nosso último recinto!

Se ficássemos espuma de Maio cor-de-rosa
Nas praias donde Maio se retira,
Enrolados nos panos duma paisagem silenciosa
Que fosse a pura sonoridade da ausência duma lira!

Ah, as sementes que te exigem em declive
Entre abismos onde nunca te despenhas
E esfumados voos em que te embebes e revives
O que de ti já pousou no cume das montanhas!

Inútil decifrarmos este oráculo de ave absorta
Na incontinência do voo que a abrasa.
Se houver um palácio sem porta, talvez seja a porta.
Se houver uma casa sem teto, talvez seja a casa. 


Natália Correia
(1923-1993), in "Passaporte".
Lisboa, Editora Gráfica Portuguesa, 1958
 
["Passaporte" é um dos primeiros e mais raros livros de poesia de Natália Correia, ligado à «tendência surrealista da poesia portuguesa», como assinala Maria Helena Ribeiro da Cunha (professora, crítica literária e pesquisadora de vasta erudição em relação aos estudos da Literatura Portuguesa, 1930-2020)  na rubrica que lhe dedicou na «Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa». 
"Passaporte" contém os poemas: Passaporte, Boletim Meteorológico, Discurso Directo, Biografia Encomendada pela Insónia, Êxodo, O Poema, Metamorfoses necessárias para a Reconquista do Mundo, A Demiurgia do Riso, Ricochete, Homenagem a Titus Lucretius Carus, Poema destinado a haver Domingo, Nictofagia, Projecto de Bodas, Elegia dos Amantes Lúcidos, Ultrabiográfico, Mar Uterino, Pranto.]
 


 "Passaporte" - Poemas de Natália Correia,
Editora Gráfica Portuguesa, 1958, 1ª ed.
 

«Romântica foi-o também decerto Natália Correia, mesmo pelo meio do onirismo surrealista ou da sua acalorada defesa dos direitos da mulher, na sua fascinação pelo andrógino, na expressão do eros total, no culto da mãe, na religação às suas ilhas de bruma e misticismo, até em muitas das suas veementes tomadas de posição no Parlamento ou em praça pública, no pequeno ecrã da televisão.
O relevo, quase excessivo, da mulher política obscureceu por vezes, o talento real e a sensibilidade da escritora. É bom que lhe façamos justiça e olhemos fundo para a sua obra, rio luminoso, por vezes em chamas, que traz consigo muito do que Natália viveu, leu, sonhou, quis construir e deixou incompleto, como quase todos os artistas da paixão.
O lado narcísico da sua personalidade, que convive com toda essa força e generosidade, também lá está, debruçado sobre o espelho da palavra.» 
 
Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), Breve perfil de Natália em sua obra
 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

"Por causa das roupas" - Poema de Laura Riding



João Marques de Oliveira (Porto, 1853-1927), Interior - Costureiras trabalhando, 1884, 
 
[Descrição: No interior de uma sala com janela aberta para a paisagem, estão representadas três mulheres jovens, sentadas, envolvidas na atividade da costura. No 1º plano, um tapete de motivos geométricos, de cor ocre vermelho e azul, cobre parte do soalho. À esquerda, uma mesa coberta com toalha dum branco luminoso, sobre a qual está pousada uma garrafa de vidro onde se reflete a luz; na parede ocre por trás da mesa, várias pinturas suspensas. Ainda do lado esquerdo, uma das figuras femininas sentada de costas para o observador trabalha com a máquina de costura que tem diante de si. As outras mulheres estão representadas, uma à direita, de perfil e voltada para a esquerda e outra, ao centro, voltada para o observador e a três quartos para o lado direito. A meio da parede de fundo, uma porta aberta para a paisagem onde se prolonga o espaço do quadro. A luz que entra pela porta é um elemento estruturante da composição.] (daqui)
 

Por causa das roupas

 
Sem costureiros para conectar
A boa vontade do corpo
Ao propósito da mente,
Devíamos ser dois mundos
Em vez de um mundo e sua sombra,
A carne.

A cabeça é um mundo
E o corpo um outro -
O mesmo, mas algo mais lento
E mais deslumbrado e anterior,
A divergência sendo corrigida
No vestido.

Há um cheiro de Cristo
No tecido: abaixo do queixo
Não se quer mal algum.
Igual, imune
À prova capital, o saber floresce
Do seio protegido da luz, e as coxas
São humildes.

A união da matéria com a mente
Pelo método da indumentária
Não destrói nossa nudez
Nem abafa a sineta do pensamento.
O momento apenas une-se à sua hora
Muda.

No íntimo existe o brilho do conhecimento
E por fora existe o sombrio da aparência.
Mas ao vestir o manto e a touca
Só com mãos e face aparecendo,
Internalizamos o sombrio e brilhamos
Suavemente.

Por causa disso, pela graça neutra
Da agulha, nos apossamos de nossos triunfos
E de nossas derrotas
Numa conjugação equilibrada e única:
Hesitamos entre senso e insensatez,
E vivemos. 


Laura Riding
, "Mindscapes - poemas"
Seleção, tradução e introdução de Rodrigo Garcia Lopes,
São Paulo: Iluminuras, 2004.
 

terça-feira, 8 de novembro de 2022

"A espantosa realidade das coisas" - Poemas de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa


Raffaello Gambogi (Italian painter, 1874-1943), Regata a Antignano.
 
 
A espantosa realidade das coisas 


A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade. 

7-11-1915 

Alberto Caeiro
, “Poemas Inconjuntos”. 
In Poemas de Alberto Caeiro.  Fernando Pessoa
(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) 
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 83.

[“Poemas Inconjuntos”. 1ª publ. in Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.]
 
 

 Raffaello Gambogi, Le paysan dans le pré, oil on canvas.


Todas as opiniões que há sobre a Natureza


Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das coisas
Nunca foi coisa em que pudesse pegar, como nas coisas.
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das coisas sem ciência?
Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas. 

29-5-1918 
 
Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”. 
 In Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa
(Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) 
Lisboa: Presença, 1994. - 143. 
 
 

 Raffaello Gambogi, Rest, 1900, Ateneum
 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

"Páscoa" - Poema de Adélia Prado


 
 

Páscoa


Velhice
é um modo de sentir frio que me assalta
e uma certa acidez.
O modo de um cachorro enrodilhar-se
quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.
Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos.
A segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, pra chorar.
Eu, que fui louca e lírica,
não estou pictural.
Peço a Deus,
em socorro da minha fraqueza,
abrevie esses dias e me conceda um rosto
de velha mãe cansada, de avó boa,
não me importo. Aspiro mesmo
com impaciência e dor.
Porque sempre há quem diga
no meio da minha alegria:
“põe o agasalho”
“tens coragem?”
“por que não vais de óculos?”
Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,
quero o que desse modo é doce,
o que de mim diga: assim é.
Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,
ganhar uma poesia em pergaminho.
Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 41
 
 

Adélia Prado fala sobre sua obra, feminismo e o momento político do Brasil
(aqui)

Adélia Prado é uma das escritoras mais aclamadas da literatura brasileira desde sua estreia, em 1976, com o livro de poemas Bagagem. Esse título carrega, em especial, o sentido de sua herança cultural, sua bagagem de vida. Afinal, à época, Adélia já tinha quarenta anos, idade pouco usual para estrear em literatura, era professora, graduada em Filosofia, casada e mãe de cinco filhos em Divinópolis, interior de Minas Gerais, onde nasceu no dia 13 de dezembro de 1935, filha do ferroviário João e da dona de casa Ana.

Adélia Prado publicou oito livros de poesia: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981), O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010) e Miserere (2013), além de nove livros em prosa: os romances Solte os cachorros (1979) – primeiramente catalogado como livro de contos –, Cacos para um vitral (1980), Os componentes da banda (1984), O homem da mão seca (1994) e Manuscritos de Felipa (1999); as crónicas reunidas em Filandras (2001), publicadas anteriormente no jornal O Tempo; a novela Quero minha mãe (2005); e as histórias infantis Quando eu era pequena (2006) e Carmela vai à escola (2011).

Carlos Drummond de Andrade foi quem impulsionou o lançamento de Adélia Prado, no Rio de Janeiro, pela editora Imago. O poeta recebeu o manuscrito da autora, confiado ao crítico mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, e publicou um texto muito elogioso em sua coluna no Jornal do Brasil, eis um trecho: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei, não dos homens, mas de Deus” (Drummond, 2015).

Dois meses após o lançamento do livro, a escritora Olga Savary publicou uma resenha atestando o seguinte: “acho que Bagagem [...] vai dar o que falar. Há muito não aparece poesia tão vigorosa, telúrica, intensa, com tanta garra e força primitiva, tão seiva, sangue, suor e sexualidade” (2000). Com efeito, longe da agitação das capitais, a poesia de Adélia, imbuída de um tom narrativo, encena o quotidiano de pessoas comuns em constante tensão com o passado – “Você conversa com uma tia, num quarto./ Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:/ ‘Assim também, Deus me livre’./ De repente acontece o tempo se mostrando,/ espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos” (Prado, 2015).

Já o crítico Antonio Hohlfeldt situou a aparição da poeta como causadora de certo desconforto entre alguns críticos, sobretudo por Adélia representar a figura da mulher de uma maneira que “quebra, aparentemente, toda a dicção libertária, feminina e feminista, então vigente. [...] Não fazia experimentalismos formais, insistia numa poesia de ideias” (2000). Nos anos 1970, a poesia brasileira estava dividida: “[...] de um lado, os variados experimentalismos formais a partir do Concretismo e do Tropicalismo, desde os anos 1950 e, de outro, a busca a partir da década seguinte, [...] da retomada da poesia político-ideológica” (Hohlfeldt, 2000). No entanto, a poesia de Adélia não se apresenta filiada a nenhuma dessas vertentes, e nem por isso sua poesia se quer reacionária, pois segundo Augusto Massi, a poesia voltava a se debruçar sobre temas excluídos, como o sonho e o erotismo. Nesse sentido, “Adélia representava um último desdobramento do modernismo, cujas linhas de força convergem para a retomada do quotidiano, da oralidade, da cultura popular e para o desejo de encurtar o caminho até o leitor, trazendo a linguagem poética para o centro da vida” (Massi, 2015).

A propósito, já em seu livro de estreia, a escritora nos apresenta direta e indiretamente certas filiações: Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, São João da Cruz, Santa Tereza D’Ávila, Augusto dos Anjos, Alphonsus de Guimaraens, Jorge de Lima, além de Guimarães Rosa e de seu livro sagrado, reverenciados nestes versos de Bagagem: “Porque tudo que invento já foi dito/ nos dois livros que eu li:/ as escrituras de Deus,/ as escrituras de João./ Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão” (2015).

Paralelamente a sua poesia, Adélia sempre publicou narrativas. A primeira delas é Solte os cachorros, título que remete à expressão popular brasileira “soltar os cachorros”, que significa falar o que bem entender com seu interlocutor de maneira reativa. A voz dessa narrativa tecida em fragmentos soa como o desabafo de uma mulher madura: “Quem dá o grito primal paga caro o analista, quem dá o grito vai preso, quem escreve feito eu esgota o zumbido de seu ouvido, mata um a um os marimbondos, com agulha fina, nos olhos. Não posso ver trouxa frouxa, amarro até ficar dura.” (Prado, 2006).

Em prosa, Adélia Prado mantém os temas recorrentes de sua poesia: a vida provinciana, a família e a religiosidade. Sua maneira de abordar os pensamentos dos personagens é extremamente pessoal, embora nos remeta a Clarice Lispector, sobretudo pelo uso da metalinguagem, recurso em que a própria linguagem é utilizada como tema e conteúdo. Em Manuscritos de Felipa, Adélia homenageia essa escritora através das confabulações da protagonista: “Estou cheia de amor, por isso não excluo esta palavra excrescente, armário maior que o cómodo. Agora imitei a Lispector. Meu aperto é que urge ser eu mesma, não posso ficar imitando, ainda que enquanto humanos somos um só, senão como ia entender livro dela que parece tudo, menos livro?” (1999). De passagem, vale dizer que Clarice esteve presente no lançamento de Bagagem, cerca de um ano antes de seu falecimento.

Um ponto de grande destaque na trajetória de Adélia Prado foi o monólogo Dona Doida: um interlúdio, encenado, em 1987, por Fernanda Montenegro, a atriz mais consagrada do Brasil. O espetáculo foi organizado em blocos por Naum de Souza, “nos quais se apresenta perfeitamente o ser que está dentro da poesia de Adélia”. Esse espetáculo é emblemático pelo facto de lançar luz a um dos pontos mais significativos de sua literatura: seu caráter dramático, litúrgico e oral, como bem enfatizado por Fernanda Montenegro: “Há poetas que devem ser lidos em silêncio, ou melhor, todos os poetas devem ser lidos em silêncio. Mas alguns são muito vigorosos quando verbalizados, ditos em voz alta” (Montenegro, p. 13). Por isso, ao longo de sua vida literária, Adélia disseminou sua palavra ao ler seus poemas em centenas de eventos pelo país, mantendo sua tradição pela liturgia, pelo culto e canto. Gravou os registos O escritor por ele mesmo: Adélia Prado (1999), pelo Instituto Moreira Salles, em K7, e os CDs O tom de Adélia (2000) e O sempre amor (2003), pelo selo Karmin, de Belo Horizonte.

Independentemente da forma empregada por Adélia, seus assuntos são sempre os mesmos. Em entrevista, ela foi categórica: “Nunca vou falar de outra coisa a não ser morte, amor e Deus. Só me ocupo disso. Considero que nesta trindade cabem o Afeganistão, as torres gémeas, a política, a velhice, a mística, a raiva, o medo, o humano, enfim” (Prado, 2001). No entanto, a cada título da autora esses temas são encenados por outras vozes que estabelecem novos diálogos com a tradição, a cultura popular e com sua própria obra. (Daqui)

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

"A dois passos" - Poema de Rui Caeiro



Thomas Pollock Anshutz
(American painter and teacher, 1851-1912), 
A Rose (Rebecca H. Whelen), 1907, Metropolitan Museum of Art 
 
 

A dois passos


Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso – esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno – estava-se bem.


Rui Caeiro
, “Do inferno – cinco aproximações” 
in Telhados de Vidro n.º 12, Lisboa, Averno, maio 2009
 
["A dois passos", de Rui Caeiro, por Carla Andrino (ouvir aqui)
 
 

terça-feira, 1 de novembro de 2022

"Poema de Finados" - Manuel Bandeira


 
Ferdinand Georg Waldmüller (Austrian painter and writer, 1793-1865), On All Souls' Day, 1839, 
 

Poema de Finados

 
Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai. 

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão. 

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.
 

Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa. 
Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar, 1967, p.265. 
 


Franz Skarbina (German impressionist painter, draftsman, etcher and illustrator, 1849-1910), 
All Souls' Day (Hedwig Cemetery), 1896.
 

Dia dos Fiéis Defuntos, Dia de Finados ou Dia dos Mortos é celebrado pela Igreja Católica no dia 2 de novembro.
Desde o século II, alguns cristãos rezavam pelos falecidos quando visitavam os túmulos dos mártires. No século V, a Igreja dedicava um dia do ano para rezar por todos os mortos já esquecidos. O abade Odilo de Cluny, no final do século X, pedia aos monges que orassem pelos mortos. 
Desde o século XI os Papas Silvestre II, João XVII  e Leão IX  obrigavam a comunidade a dedicar um dia aos mortos. 
No século XIII essa data passa a ser oficialmente celebrada em 2 de novembro, um dia após a Festa de Todos os Santos
A doutrina católica evoca algumas passagens bíblicas para fundamentar sua posição (cf. Tobias 12,12; 1,18-20; Mt 12,32 e II Macabeus 12,43-46) e é suportada por uma prática de quase dois mil anos. (Daqui)