Os Girassóis
Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens
Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos
José Tolentino de Mendonça,
De Igual para Igual, Assírio & Alvim, 2001.
“O tempo, a sua irreversibilidade, a sua pavorosa infinitude, é a matéria de que se faz a nova recolha poética de José Tolentino Mendonça, De Igual para Igual. Talvez não a matéria, talvez apenas (e é imenso) o argumento sobre que se constrói esta breve mas intensa declinação da memória, ou dos seus filamentos suspensos do tempo. São como os fios de cabelo de um rapaz, mas estes não se perdem, reencontram-se no exercício necessário, porém insuficiente, das palavras ("um verso é sempre tão pouco / em redor do que se pode observar").
O que diz então a poesia? Duas ou três coisas, a unanimidade do amor, a secreta imanência da verdade, a incomensurabilidade do tempo. E o lugar da poesia nisto tudo, e no mundo, forma frágil e célere (oposta a "essa forma de lentidão: a leitura"), ela própria prisioneira da desolada impotência do seu gesto ("Não uses palavras / se me segredas / aquilo que no fundo das nossas mentiras / se tornou uma verdade sublime"). Porque a poesia pode não ser mais que um exercício de nomeação, de convocação do que ficou, primeiro esquecido, depois recordado, da passagem do tempo, e nisso, ela é um instrumento da mesma contingência temporal que denuncia e combate.
A poesia de José Tolentino Mendonça diz-se insuficiente, mas também necessária, quanto mais não seja para rasgar a via do reconhecimento das meras evidências: "a vida por si mesma não se pode escutar demasiado / a vida é uma questão de tempo", "o tempo era maior / do que se dizia", "tão absolutamente só / o nosso coração bate". Ela é, assim, um resíduo de pureza, de simples reminiscência, de evocação de "coisas que não precisam de nome», porventura porque são realmente inomináveis, meras cintilações alojadas no coração ("de que vale um coração / se não aspira à verdade / soberano").
Há nesta poesia uma tal intensidade, um tal despojamento, que não poucas vezes ela se aventura pelos caminhos arriscados da inocência. Mas a sua força reside precisamente aí, nesse risco assumido de um dizer simples e sem artifício, sem sonoridade nem quase espessura, um grito disfarçado de murmúrio, a romper a noite em que se aventura o coração.
"A verdade que pertence aos gestos / ao menor dos nossos gestos / antes de chegarem palavras que nos socorram / às vezes é a verdade de um amor". Para o dizer, é preciso auscultar o mais fundo de nós mesmos, esse ponto, lá, a que só alguns chegam, por vezes em um só verso, outras vezes na sua obra inteira. É um privilégio, que é mais feito de sofrimento do que de glória – mas poucos o sabem. José Tolentino Mendonça pertence ao grupo dos que buscam, e quase sempre encontram, em cada um dos seus poemas, essa verdade secreta de si mesmo”.