domingo, 30 de novembro de 2025

"Aqui mereço-te" - Poema de António Ramos Rosa

 
 
Gregorio Prieto (Pintor espanhol, 1897-1992), "Jardín", ca. 1944.
 

Aqui mereço-te



O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respiro é branca.
E corto o ar como um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálpebras transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra.

A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra ao horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
o incessante alimento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar da sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.

Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.

Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos da água pelas veredas,
as mãos das ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.

Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.

É este o reino de insetos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hálito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha. 


António Ramos Rosa,
in "A construção do corpo", 1969


Gregorio Prieto, Atardecer con río, 1912. Aguarela sobre papel. 



Aqui nesta cave dos soluços


Aqui nesta cave dos soluços
como um ventre vazio
deixo entrar o sol
e um mínimo inseto
me distrai


António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 1960 
 
 

sábado, 29 de novembro de 2025

"Quando eu era menino" - Poema de Friedrich Hölderlin

 


Almeida Júnior (Pintor, professor e gravurista brasileiro, 1850 -1899),
 Garoto com Banana, 1897.


Quando eu era menino


Quando eu era menino,
Um deus muitas vezes me salvava
Do tumulto e da vergasta dos homens,
E eu brincava, tranquilo e feliz,
Com as flores do bosque,
E as brisas do céu
Brincavam comigo.

E tal como tu alegras
O coração das plantas
Quando para ti estendem
Os delicados braços,

Assim também, Hélio, pai!, me encheste
De alegria a alma, e como Endimião,
Sagrada Lua,
Fui teu favorito!

Oh, deuses fiéis, todos
Vós, e amáveis!
Se soubésseis
Como vos amava este meu coração!

Então, é verdade, ainda vos não chamava
Pelos vossos nomes, nem vós
A mim me nomeáveis, como fazem os humanos,
Julgando que assim se conhecem.

Mas eu a vós conhecia-vos melhor
Do que jamais conheci os humanos,
Compreendia o silêncio do éter,
As palavras dos homens nunca as entendi.

A mim, criou-me o murmúrio
Harmonioso das árvores do bosque
E fui aprendendo a amar
No meio das flores.

E nos braços dos deuses me fiz grande.


Friedrich Hölderlin
, in "Todos os Poemas" 
Tradução de João Barrento 


[Friedrich Hölderlin, poeta lírico alemão, dos mais influentes do seu tempo, nasceu a 20 de março de 1770, na Alemanha, e morreu a 7 de junho de 1843, também na Alemanha.
Licenciou-se em Teologia, mas não pôde seguir a vida religiosa devido ao seu posicionamento filosófico e mesmo estético, que atribuía grande valor à tradição mitológica clássica.
Em 1795 apaixonou-se por Susette Gontard, a "Diotima" dos seus poemas. Este amor impossível marcou toda a sua escrita posterior. A sua obra mais conhecida é o romance Hyperion (1799). 
Hölderlin deixou uma obra que é uma constante interrogação metafísica, uma tentativa de diálogo com o transcendente.(daqui)
 
 

"Todos os Poemas seguido de Esboço de uma Poética",
de Friedrich Hölderlin. Editora: Assírio & Alvim, 2021.
 
 
Uma vida contada a verso a verso, Assírio & Alvim publica Todos os Poemas seguido de Esboço de uma Poética, volume que nos revela, pela primeira vez, «um Hölderlin de corpo inteiro».

Com tradução, introdução, comentários e notas de João Barrento, Todos os Poemas seguido de Esboço de uma Poética é um verdadeiro acontecimento editorial pois reúne, pela primeira vez e num único volume, em Portugal, a obra poética de Friedrich Hölderlin. O livro inclui ainda uma cronologia ilustrada da vida e do legado do autor alemão cuja obra permaneceu desconhecida até meados do século XIX e só viria a ser reconhecida depois da sua morte, transformando-o num dos mais influentes poetas de todos os tempos e de todos os lugares.

«Não se fecha do espírito ao homem a via sã,
É esse o fio que segue a sua vida,
Esse é da vida o dia, é da vida a manhã,
Pois o tempo do espírito é riqueza infinita.

O que faz o esplendor da natureza
É a alegria que pomos no olhar,
São os dias, a vida que sabemos amar,
Em comunhão com o espírito e a beleza.»
 
SINOPSE
 
«Trazer ao leitor português toda a poesia de Hölderlin significa entrar num mar desconhecido desse leitor, num território de contradições, de uma diversidade não imaginada e desigual de registos poéticos, do mais naïf e convencional ao mais elaborado e sublime, do mais heróico ao mais prosaico, do poema transbordante à brevidade do dístico epigramático. Mas é altura de esta poesia nos ser dada de corpo inteiro. Só assim se compreenderá o percurso trágico, intenso e nele mesmo tenso e contraditório desta figura singular da Poesia, corrigindo ao mesmo tempo uma certa visão, mitificada e totalmente sublimizada, de um poeta que, como tantos outros, tem lados bem mais humanos e vulneráveis do que aqueles que os chamados “grandes poemas” nos dão.» (daqui)
 

terça-feira, 25 de novembro de 2025

"O Amor aprendemos Inteiro" - Poema de Emily Dickinson

 

 
Jules Bastien-Lepage (French painter, 1848–1884), Going to School, 1882,
Aberdeen Art Gallery


O Amor aprendemos Inteiro


O Amor aprendemos Inteiro –
O Alfabeto – As Palavras –
Um Capítulo – e o Livro todo –
E da Revelação – o segredo –
Mas nos olhos Uma da Outra
Divisou-se a Ignorância –
Mais divina do que a Infância –
Uma e Outra, Crianças –
Buscando explicações –
Nenhuma entendeu – nada –
Ai! Como é largo o Saber –
E a Verdade – que complicada –


Emily Dickinson,
 in "The Poems of Emily Dickinson" 
Seleção e tradução de Adalberto Müller

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

"O passado anda atrás de nós" - Poema de Ana Martins Marques

 

 
Franz Marc (German painter and printmaker, 1880–1916),
 Jumping Dog Schlick, 1908


O passado anda atrás de nós


O passado anda atrás de nós
como os detetives os cobradores os ladrões
o futuro anda na frente
como as crianças os guias de montanha
os maratonistas melhores
do que nós
salvo engano o futuro não se imprime
como o passado nas pedras nos móveis no rosto
das pessoas que conhecemos
o passado ao contrário dos gatos
não se limpa a si mesmo
aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem
pense em como do lodo primeiro surgiu esta poltrona este livro
este besouro este vulcão este despenhadeiro
à frente de nós à frente deles
corre o cão 


Ana Martins Marques, in O livro das semelhanças
Companhia das Letras 

domingo, 23 de novembro de 2025

"Teu corpo" - Poema de Ferreira Gullar

  

Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854-1905), The Old Fisherman
("Kalastava ukko"), 1896.



Teu corpo
 

O teu corpo muda
independente de ti.
Não te pergunta
se deve engordar.

É um ser estranho
que tem teu rosto
ri em teu riso
e goza com teu sexo.
Lhe dás de comer
e ele fica quieto.
Penteias-lhe os cabelos
como se fossem teus.

Num relance, achas
que apenas estás
nesse corpo.
Mas como, se nele
nasceste e sem ele
não és?
Ao que tudo indica
tu és esse corpo
– que a cada dia
mais difere de ti.

E até já tens medo
de olhar no espelho:
lento como nuvem
o rosto que eras
vai virando outro.

E a erupção
que te surge no queixo?
Vai sumir? alastrar-se
feito impingem, câncer?
Poderás detê-la
com Dermobenzol?
ou terás que chamar
o corpo de bombeiros?

Tocas o joelho:
tu és esse osso.
Olhas a mão:
tu és essa mão.
A forma sentada
de bruços na mesa
és tu.
Quem se senta és tu,
quem se move (leva
o cigarro à boca,
traga, bate a cinza)
és tu.

Mas quem morre?
Quem diz ao teu corpo – morre –
quem diz a ele – envelhece –
se não o desejas,
se queres continuar vivo e jovem
por infinitas manhãs?


Ferreira Gullar
, Barulhos, 1997.


 
Albert Edelfelt, Old Woman with a Splint Basket, 1882.
Finnish National Gallery
 

"Nascer é uma possibilidade, viver é um risco, envelhecer é um privilégio!"
 
 


Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854-1905), Self-Portrait, 1889. 
(Self-Portrait in Dress of the 17th Century), 
Finnish National Gallery. 
 

"Não quero ter razão, quero ser feliz. E, para ser feliz, há que ser justo."
 
 

sábado, 22 de novembro de 2025

"Canção da mirada secreta" - Poema de Lya Luft


William Mainwaring Palin (English painter and decorative artist, 1862-1947), 
The Promenade, Caudebec-en-Caux, 1909.


Canção da mirada secreta 
 

Foram-se os amores que tive
ou me tiveram. Partiram
num cortejo silencioso e iluminado.
A solidão me ensina
a não acreditar na morte
nem demais na vida: cultivo
segredos num jardim
onde estamos eu, os sonhos idos,
os velhos amores e os seus recados,
e os olhos deles que ainda brilham
como pedras de cor entre as raízes. 


Lya Luft, em "Secreta mirada", 1997.
 
 

William Mainwaring Palin, Jeux d’enfants dans un Salon, s.d.


"A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias."

Lya Luft, 
em Perdas e ganhos, 2003.
 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

"Retrato" - Poema de Almeida Garrett



Alexander Roslin (Swedish painter, 1718-1793),
Double portrait of Roslin and his wife, 1767.



Retrato
(Num Álbum)



Ah! despreza o meu retrato
Que lhe eu queria aqui pôr!
Tem medo que lhe desfeie
O seu livro de primor? 
Pois saiba que por despique
Eu sei também ser pintor:
Com esta pena por pincel,
E a tinta do meu tinteiro,
Vou fazer o seu retrato
Aqui já de corpo inteiro.

Vamos a isto. – Sentada
Na cadeira moyen-âge,
O cabelo en châtelaines,
As mangas soltas. – É o traje.

Em longas pregas negras
Caía o veludo e arraste;
De si com desdém régio
Com o pezinho o afaste...

Nessa atitude! Está bem:
Agora mais um jeitinho;
A airosa cabeça a um lado
E o lindo pé no banquinho.

Aqui estão os contornos, são estes,
Nem Daguerre lhos tira melhor.
Este é o ar, esta a pose, eu lho juro,
E o trajar que lhe fica melhor.

Vamos agora ao difícil:
Tirar feição por feição;
Entendê-las, que é o ponto,
E dar-lhe a justa expressão.

Os olhos são cor da noite,
Da noite em seu começar,
Quando inda é jovem, incerta,
E o dia vem de acabar;

Têm uma luz que vai longe,
Que faz gosto de queimar:
É uma espécie de lume
Que serve só de abrasar.

Na boca há um sorriso amável.
Amável é... mas queria
Saber se é todo bondade
Ou se meio é zombaria.

Ninguém mo diz? O retrato
Incompleto ficará,
Que nestas duas feições
Todo o ser, toda a alma está.

Pois fiel como um espelho
É tudo o que nele fiz;
E o que lhe falta – que é muito,
Também o espelho o não diz.
 
 
Alexander Roslin (Swedish painter, 1718-1793), A portrait of Roslin's wife,
 Marie-Suzanne Giroust-Roslin, 1770.


"É instrutivo ver os vários retratos que fazem de nós pela vida fora. Com traços lisonjeiros ou desagradáveis, entram-nos sempre pelos olhos dentro como estranhos, a perturbar uma paz que tinha um rosto habitual, familiar, a que estávamos acostumados. À imagem tranquila, sobrepõem-se outras inquietantes que não servem no cartão de identidade, e, contudo, nos identificam publicamente mais até do que a que nele figura. É que não se trata de neutras fotografias. São perfis apaixonados, justos ou injustos, com as virtudes e os defeitos cruamente patenteados. Quem um dia nos lembrar, é por eles que nos lembra. Somos o que nós sabemos, e parecemos o que os outros dizem de nós."

Miguel Torga, Diário XV

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

"Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)" - Texto de Miguel Torga



Ernesto Condeixa (Pintor português, 1858–1933), A caminho da fonte, 1894.
Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado



Um Reino Maravilhoso 
(Trás-os-Montes)


Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
- Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso. 
A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.
Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.
Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.
A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão.
Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.
Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.
Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.
Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. 

O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei.

Miguel Torga, Excerto do livro "Portugal", 1950.
 
Trás-os-Montes e Alto Douro

Uma das onze províncias tradicionais portuguesas criadas em 1936, mas formalmente extintas em 1976, a região de Trás-os-Montes e Alto Douro situa-se no Nordeste de Portugal continental, correspondendo aos distritos de Vila Real e Bragança, bem como a quatro concelhos do distrito de Viseu e a um concelho do distrito da Guarda.

Faz fronteira com a Espanha, a norte e a leste, e confina com as províncias da Beira Alta, a sul, e do Douro Litoral e do Minho, a oeste.

O relevo desta região é formado por um conjunto de altas plataformas onduladas cortadas por vales e bacias muito profundas. O seu clima é mediterrânico com influência continental, mais agreste e frio nas áreas planálticas, mais quente nas áreas profundas encaixadas do Douro.

Além da vinha - em especial a vinha da Região Demarcada do vinho do Porto, onde a paisagem se individualiza com as suas imensas encostas e quintas -, produz culturas como o centeio, a cevada e a batata.

Esta região apresenta, nos seus principais pratos típicos, o pão e as bolas; bacalhau, alheiras, presunto, cabrito e vitela, com destaque para a posta mirandesa; peixes de rio, como a truta; grelos, feijão, cogumelos e castanhas; folares, queijadas e bolos de mel, entre outros.

Trás-os-Montes e Alto Douro foi desde muito cedo objeto de explorações mineiras. O ouro foi o primeiro metal a ser explorado, depois o estanho e o chumbo. Deficientemente servida por vias de comunicação, esta zona não tem sido um polo atrativo para a implantação de indústrias.

A região de Trás-os-Montes é uma das mais ricas em achados arqueológicos de toda a ordem e de todas as épocas. São de assinalar as estações do paleolítico da serra do Brunheiró e Bóbeda, bem como dólmenes e povoados do período Neoeneolítico. A famosa ponte de Trajano, por seu turno, é um dos melhores exemplares da arquitetura romana em Portugal.

Esta região possui um folclore muito rico, patente, por exemplo, nos seus dialetos (sendinês, mirandês, guadramilês e riodonorês). A música tradicional é uma das mais relevantes do país. São de um lirismo extremamente sóbrio e penetrante, quer os hinos sagrados e cânticos de trabalho, quer os poemas de amor e de morte em que se expande a alma do povo duriense e transmontano.

Trás-os-Montes e Alto Douro tem sido cenário e temática, berço e musa inspiradora de algumas individualidades notáveis, como, por exemplo, Guerra Junqueiro (1850–1923), Miguel Torga (1907–1995), Trindade Coelho (1861–1908) e Camilo Castelo Branco (1825–1890), entre outros. (daqui)

 
Miguel Torga (daqui)
 

Miguel Torga  
[S. Martinho de Anta/Vila Real, 1907 - Coimbra, 1995]  

Miguel Torga é o nome literário do médico Adolfo Rocha. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista e contista.

Cultivou a escrita autobiográfica num extenso Diário (escrito entre 1932 e 1994) e nos seis Dias de A Criação do Mundo (publicados em 1937, 1938, 1939, 1974 e 1981), obra que o autor viria a definir como «crónica, romance, memorial e testamento». Nela narra-se a luta do menino orgulhoso contra a pobreza de um Trás-os-Montes rural que o quer escravizado, a recusa em ser criado de burgueses (Porto, 1917) e a rápida desistência de candidato a seminarista (Lamego, 1918), aspiração logo abandonada por quem já na altura manifestava relutância por qualquer género de gregarismo.

A fase crucial da sua puberdade, com a descoberta da humilhação pessoal e do instinto sexual, decorre no Brasil (1920-1925), a capinar, laçar cavalos e apanhar café na Fazenda de Santa Cruz, Minas Gerais, propriedade de um tio paterno.

Completou o Liceu em Coimbra, em apenas três épocas, e graças às mesadas que o tio ia enviando do Brasil, compensação pelo duro trabalho já realizado para ele, completou o curso de Medicina nesta cidade (1928-1933), com vinte e seis anos. Aparecem também descritos nesta obra os seus primeiros contactos com o mundo literário, nomeadamente representado pelo grupo coimbrão da revista Presença (1927-1940), de cujo grupo fundador fez parte e que se traduziram na aparição do seu primeiro livro poético, Ansiedade (1928) – expurgado, como boa parte da sua poesia da juventude, na Antologia de 1981 –, e na afirmação de uma personalidade humana marcada por um «individualismo feroz» que o levaria à polémica dissidência na revista, provocando também a cisão do grupo fundador, e à criação da revista Sinal em 1930, ano da publicação de Rampa, o seu segundo poemário.

O Diário inicia-se em 1932 precisamente com uma nota da sua passagem pela Universidade («Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela nem ela repara em mim»), indício do desprezo por uma instituição elitista envelhecida e politicamente servil. É nesta altura que lança novos livros poéticos (Tributo, 1931 e Abismo, 1932), época marcada, aliás, pela sua participação em movimentos sediciosos e pelo relacionamento com intelectuais de notória filiação antiditatorial. Em 1934, após breves períodos de exercício da medicina em S. Martinho de Anta e em Vila Nova de Miranda do Corvo (Coimbra), Adolfo Rocha irá perfilhar o pseudónimo Miguel Torga (A Terceira Voz), identificando-se com aquele arbusto espontâneo, resistente e florido em chão agreste e com uma tradição combativa e heterodoxa espanhola (Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes, Miguel de Unamuno).

A Guerra Civil de Espanha (1936-1939) – cujos avatares e desenlace foram seguidos neste lado da fronteira com angustiada aflição pelos intelectuais partidários da República – constituiu sem dúvida um abalo afetivo e um reativo para a revolta e a definitiva conformação do ideário democrático do poeta, assim como um motivo inspirador de boa parte dos seus Poemas Ibéricos (1952, 1965), essa lição de amor peninsular, e do conto «Requiem» (Pedras Lavradas, 1951), da mesma maneira que a subsequente repressão exercida pelo regime de Franco seria denunciada nas páginas de intervenção cívica de Fogo Preso (escritas entre 1945 e 1976 e publicadas nesta última data por óbvios motivos de censura), e a indeterminação submissa de parte do povo peninsular no relato «O Covarde» (Pedras Lavradas).

Entretanto, a sua atividade literária não decresceu: a coletânea poética O Outro Livro de Job e a fundação da revista Manifesto são anteriores à primeira viagem à Europa, em 1937. É durante este percurso que constatará a degradação da Espanha em guerra, esmagada já sob um regime de terror que glorifica Franco em retratos e dísticos estampados nos muros das cidades.

De novo em Portugal, cursa em 1938, com trinta e um anos, a especialidade de otorrinolaringologia, com Ferreira da Costa. Estabelecido em Leiria, publica a denúncia dos horrores presenciados na Europa das Ditaduras em O Quarto Dia. O volume é logo apreendido (1939) e o autor detido pela PIDE, sob uma vaga acusação de comunismo que incluía a suspeita de receção de dinheiro de Moscovo para a compra de instrumental cirúrgico. Transferido para o Limoeiro e para o Aljube de Lisboa e libertado, sem julgamento, poucos meses depois, publicou o célebre Bichos (1940), livro que integra contos parcelarmente concebidos na cadeia.

Os magistrais Contos da Montanha – que o autor deu a lume um ano antes da saída das narrativas que conformam Rua (1942) –, interpretados pelos órgãos de repressão cultural como denúncia local das penosas condições de vida do nordeste, foram igualmente apreendidos em Coimbra – o médico tinha aberto o consultório que viria a ser centro de conspiração contra o regime no Largo da Portagem – por ordem do censor Salvação Barreto. O escritor iludiu a proibição enviando um maço de provas tipográficas para o Rio de Janeiro, de modo que o livro regressou ao país e circulou clandestinamente até 1969. O poema dramático Sinfonia (1947) – publicado após os dramas naturalistas Terra Firme e Mar (1941) e a parábola dramática O Paraíso (1949) – sofreu idêntica punição.

A esposa, a lusista belga Andrée Crabbé Rocha, com quem casara civilmente em 1940, foi expulsa, devido às suas atitudes democráticas, da Faculdade de Letras de Lisboa, onde era assistente, em Junho de 1947. O médico, por sua vez, era demitido, sem qualquer justificação, do Serviço de Saúde da Casa dos Pescadores da Figueira da Foz.

As dificuldades financeiras, contudo, não vergaram a exemplar combatividade do autor: entre 1943 e 1950 publicou várias coletâneas poéticas (Lamentação, 1943; Libertação, 1944; Odes, 1946; Nihil Sibi, 1948). Estamos perante a época da mais fecunda criação: nela editaram-se os romances O Senhor Ventura (relato das aventuras de um emigrante português na China, 1943) e Vindima (denúncia da exploração do vindimador no Douro, 1945), a sua obra prima, Novos Contos da Montanha (1944), a peça O Paraíso e o livro de ensaios Portugal (1950), em paralelo com a publicação dos sucessivos volumes do Diário.

Em 1950 foi levantada ao escritor a proibição de saída do país, reiniciando assim as suas viagens a Espanha e a outros países da Europa, coroadas pelo regresso ao Brasil da sua meninice em 1954 (data da aparição da coletânea poética Penas do Purgatório), um ano antes do nascimento de Clara, a sua única filha, e da publicação de Traço de União, volume ensaístico sobre as relações culturais luso-brasileiras. Na altura desta deslocação como convidado ao Congresso de Escritores de São Paulo, a sua obra gozava já do reconhecimento internacional patenteado nas traduções em castelhano, francês, inglês, romeno...

O ano de 1950 marca também a publicação de Cântico do Homem, o poemário de maior empenhamento social do autor e uma das referências culturais do povo português, que começava a ver em Torga um símbolo cívico de oposição ao salazarismo. Oito anos mais tarde foi publicado o livro considerado cimeiro da poética torguiana: Orfeu Rebelde.

Em 1960 foi proposto pela Universidade de Montpellier para Nobel da Literatura. Novamente candidato ao Nobel em 1978, foi objeto nesta data de uma homenagem nacional, comemoração do cinquentenário da sua estreia nas letras.

A escrita do Diário seria continuada até poucos meses antes da sua morte. Nele, e juntamente com a expressão do processo de auto-conhecimento pautado pela constatação da contingência humana e a obsidiante sombra da morte, insere-se a crónica político-social da intra-história da nação e a análise do papel de Portugal na Europa contemporânea. A fase histórica mais notavelmente referenciada é a relativa ao Portugal submerso durante o regime do Estado Novo, com o qual Torga manteve o seu teimoso e continuado braço de ferro como franco-atirador espiritual em prol dos direitos humanos, e à revelação dos seus nefastos efeitos de asfixia e alienação no povo.

Encontram-se referências à participação do escritor em comícios de apoio à candidatura pessoal de Humberto Delgado (Coimbra, Maio, 1968); à assinatura de manifestos coletivos de protesto que caíram indefetivelmente nas mãos da PIDE (Coimbra, Novembro, 1965); à reação de sereno alívio perante a morte do tirano – cuja tipologia psicológica é interpretada com implacável acerto – e à nomeação de Américo Tomás como Presidente da República (Setembro, 1968); à constatação das contradições internas do regime, manifestas numa guerra colonial «fantasma» ao mesmo tempo que não hesita em convocar caricatas eleições legislativas (Outubro, 1969); à consciência do perigoso nacionalismo insurgente verificado nas suas visitas a Angola e Moçambique em 1968; à desconfiança que lhe inspira a Revolução do 25 de Abril mercê do seu antimilitarismo; à inquietação pela perda das marcas da lusitanidade em Macau e Goa, verificada na sua viagem de 1987; à satisfação evidenciada na data da dissolução do Conselho da Revolução, cuja presença tutelar se manteve até Outubro de 1982.

Nas suas páginas, o escritor, encarnação do velho anarquista, manifesta a sua oposição franca a qualquer instituição que prive o indivíduo da liberdade. É esta atitude que explica a sua indignação perante os falhanços sócio-económicos dos sucessivos governos do após 25 de Abril ou a crítica à inconsciência e à corrupção instaladas na classe política, a sua firme oposição à precipitada adesão à Comunidade Europeia, emoldurada pelos lúcidos avisos premonitórios da irresponsabilidade oficial na assinatura do tratado de Maastricht – verdadeiro atentado contra a independência da nação e o último combate que enfrentou a sua rebeldia. Em paralelo manifesta-se o ensaísmo literário e o artista que, cumprindo o preceito socrático, empreende um caminho de autognose expressado em prosa e versos.

Depois de 1981, em que lhe é atribuído o «Prémio Montaigne» da Fundação Alemã F.V.S., recebe o «Camões» (1989, na primeira convocatória), o «Vida Literária» da A.P.E. (também na sua primeira convocatória, 1992). Nesta mesma data é designado Personalidade do Ano 1991 pela Associação de Imprensa Estrangeira em Portugal e é-lhe outorgado o «Prémio de Literatura Écureuil», do Salão do Livro de Bordéus.

A partir de 1986, em que foi detetada uma doença incurável num corpo já combalido e foi submetido a mais outra intervenção cirúrgica, passou períodos internado no Hospital da Universidade e no I.P.O. de Coimbra, onde acabaria por entregar, impoluto, o seu «branco penacho de poeta» numa manhã invernal, a de 17 de Janeiro de 1995, com 87 anos. Foi nestes locais que redigiu, em parte, o vol. XVI do Diário, corajoso livro viril de adeus e exaltação do ato de viver, pautado por uma ironia sadia e sempre iluminado pela esperança no Homem, valores que levaram a Associação Internacional de Críticos Literários a laureá-lo em 1994.

O seu multitudinário funeral – de Coimbra ao cemitério da sua terra natal – foi clara expressão da dor do povo, enquanto a imprensa nacional e estrangeira, consciente da importância histórica da perda, divulgou a notícia da morte, acompanhada de depoimentos e comentários bibliográficos.

A publicação do Cântico em Honra de Miguel Torga, em 1996, supõe a continuidade da admiração, agora expressa por 85 poetas contemporâneos portugueses. Está traduzido em alemão, castelhano, chinês, francês, inglês, japonês, norueguês, polaco, romeno, servo-croata e sueco. 

 
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Lisboa, 1997.
  

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

"As Três Parcas" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


 
Bernardo Strozzi (Italian Baroque painter and engraver, 1581–1644),
The Three Fates (Parcas - Controladoras do destino)
 

As Três Parcas


As três Parcas que tecem os errados
Caminhos onde a rir atraiçoamos
O puro tempo onde jamais chegamos
As três Parcas conhecem os maus fados.

Por nós elas esperam nos trocados
Caminhos onde cegos nos trocamos
Por alguém que não somos nem amamos
Mas que presos nos leva e dominados.

E nunca mais o doce vento aéreo
Nos levará ao mundo desejado
E nunca mais o rosto do mistério

Será o nosso rosto conquistado
Nem nos darão os deuses o império
Que à nossa espera tinham inventado.


Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Mar Novo, 1958.


domingo, 16 de novembro de 2025

"Quieta" - Poema de Saúl Dias (Pseudónimo de Júlio Maria dos Reis Pereira)

Quieta


Passaste 
subtil 
na tarde quieta.

O ar anil 
ondulou… 
Como uma seta 
uma ave baixou 
da velha torre 
e pousou quieta.

Eu era o esteta 
procurando 
entre fórmulas mil 
o ancoradouro, a meta…

Inúteis tentativas!…

Tudo passou… 
Tudo queimou 
o tempo vil…

Só perdurou 
o ar anil 
da tarde quieta.


Saúl Dias,
in "Obra Poética", Portugália, 1962

(Pseudónimo de Júlio Maria dos Reis Pereira
 

sábado, 15 de novembro de 2025

"A senhora de Idade" - Poema de Fernanda de Castro

 


José Malhoa (Pintor, desenhador e professor português, 1855–1933),
A Mulher do Gato, s.d., Museu de José Malhoa.


A senhora de Idade

A Senhora de idade,
de tão bons sentimentos,
tão bonitas maneiras,
vive dos rendimentos. 
Vive, não, sobrevive.
A roupa está no fio,
tem, porém, o seu brio,
não se queixa a ninguém. 
Vive triste, sozinha,
e pouco sai de casa
porque o barulho a arrasa.
Depois, sair com quem? 
Não tem filhos, é viúva
e teme a solidão,
receia o vento, a chuva.

Apetece-lhe, às vezes,
ver os barcos no rio,
os pombos no Rossio,
mas não, custa-lhe a andar,
o calçado está caro
e cada mês que passa
o dinheiro é mais raro. 
Mas de que vive então?
De alguns copos de leite,
de chá e de tisanas,
de pão e duma sopa,
a mesma, quase a mesma,
semanas e semanas.

Vai à missa, ao domingo,
e às vezes, quando há sol
ou cheira a maresia,
compra um fruto, uma flor,
para ter companhia. 
Que lhe resta, coitada,
à Senhora de idade?
Resta-lhe pouco ou nada,
porém resta-lhe tudo: 
Uma grande saudade,
um sofrimento mudo
que é reserva e pudor,
às vezes uma flor,
e a sua dignidade. 


Fernanda de Castro, in Urgente, 1989,
Lisboa, Guimarães Editores, 1ª Edição. 
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

"No entardecer da terra" - Poema de Fernando Pessoa



Edward Cucuel (American Impressionist artist, 1875-1954), In Autumn Sunlight.


No entardecer da terra



No entardecer da terra
O sopro do longo Outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, quem dera
volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

s. d. 

Fernando Pessoa, Poesias.
(Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) 
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 91. 
[1ª publ. in Ilustração Portuguesa, 2ª série, nº 83. Lisboa: 28-1-1922.] 


 
 
"Enquanto durar o outono, não terei mãos, telas e cores suficientes para pintar as coisas bonitas que vejo."
 
  

Edward Cucuel, Autumn Sun, 1918.
 

"Repara que o outono é mais estação da alma do que da natureza."

Carlos Drummond de AndradeFala, amendoeira, 1957.
 
 
Fala, amendoeira de Carlos Drummond de Andrade
Companhia das Letras

Fala, amendoeira é uma reunião de crónicas originalmente publicadas no jornal Correio da Manhã, em que o poeta mantinha uma coluna desde 1954. Em texto introdutório, Drummond escreve uma espécie de tratado do género: “Este ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. [...]”. 

Porque a crónica vive em grande parte desses contrastes, daquilo que poderia ter sido (antigamente, num tempo ameno, na infância do autor, numa era de ouro) e aquilo que de fato é (a vida em cidades que crescem e se transformam desordenadamente, o próprio envelhecimento do autor, as atordoantes mudanças de costumes a cada passagem de geração). Não foi à toa que, à época da publicação do volume, Rubem Braga saudou o Drummond cronista. Como o autor capixaba, o mineiro investia com o arsenal clássico: memória, comentários sobre a mudança do tempo e dos costumes, críticas municipais, um pouco de vida literária e outros textos de circunstância.

O Drummond de Fala, amendoeira é um dos grandes artífices da crónica. Injeta a medida certa de lirismo, é um observador astuto e mescla comentário com um pouco de ficção. Quanto à linguagem, estes textos são puro Drummond: calorosos e informais, suavemente cultivados e ligeiramente emburrado. Uma leitura sempre fluente e prazerosa. (daqui)
 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

"Cavalo à solta" - Poema de Ary dos Santos



Max Kurzweil
(Austrian painter and printmaker, 1867–1916), A Dear Visitor, 1894.
 

Cavalo à solta 

 
Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve
breve instante da loucura.

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.
 
Minha laranja amarga e doce
minha espada,
poema feito de dois gumes
tudo ou nada.
Por ti renego, por ti aceito
este corcel que não sossego
à desfilada no meu peito.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.


Ary dos Santos, in "As Palavras das Cantigas"


"Cavalo à Solta"
Voz de Fernando Tordo
  
 
Cavalo à Solta  é uma música da autoria de José Carlos Ary dos Santos e de Fernando Tordo, interpretada, originalmente, por este último, no Festival RTP da Canção 1971, tendo ficado em 3º lugar, com 42 pontos. No entanto, mantém-se como uma das músicas mais marcantes da música portuguesa. (daqui)
 

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

"Este homem que esperou" - Poema de António Ramos Rosa



Pere Borrell del Caso (Catalan Spanish painter, illustrator and engraver, 1835–1910),
Querol River, Sant Martí River ("
Riu de Querol, al pont de Sant Martí"), s.d.
 

Este homem que esperou


Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra duma árvore
mudar a direção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra


António Ramos Rosa
,
Viagem através duma nebulosa, 1960

 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

"Vénus" - Poemas de Camilo Pessanha



Raphaelle Peale (American painter of still-life, 1774–1825),
Venus Rising From the Sea - A Deception (After the Bath), ca. 1822,
The Nelson-Atkins Museum of Art.


Vénus

I

À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!

Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, múrmura de gozo.

O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co'a salsugem.

II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'