sábado, 2 de junho de 2012

"Quando nos apaixonamos" - Crónica de Miguel Esteves Cardoso


Eugene de Blaas (Italian painter, 1843-1931), The Seamstress



Quando nos apaixonamos


Quando nos apaixonamos, ou estamos prestes a apaixonar-nos, qualquer coisinha que essa pessoa faz – se nos toca na mão ou diz que foi bom ver-nos, sem nós sabermos sequer se é verdade ou se quer dizer alguma coisa — ela levanta-nos pela alma e põe-nos a cabeça a voar, tonta de tão feliz e feliz de tão tonta. E, logo no momento seguinte, larga-nos a mão, vira a cara e espezinha-nos o coração, matando a vida e o mundo e o mundo e a vida que tínhamos imaginado para os dois. Lembro-me, quando comecei a apaixonar-me pela Maria João, da exaltação e do desespero que traziam essas importantíssimas banalidades. Lembro-me porque ainda agora as senti. Não faz sentido dizer que estou apaixonado por ela há quinze anos. Ou ontem. Ainda estou a apaixonar-me. 

Gosto mais de estar com ela a fazer as coisas mais chatas do mundo do que estar sozinho ou com qualquer outra pessoa a fazer as coisas mais divertidas. As coisas continuam a ser chatas mas é estar com ela que é divertido. Não importa onde se está ou o que se está a fazer. O que importa é estar com ela. O amor nunca fica resolvido nem se alcança. Cada pormenor é dramático. De cada um tudo depende. Não é qualquer gesto que pode ser romântico ou trágico. Todos os gestos são. Sempre. É esse o medo. É essa a novidade. É assim o amor. Nunca podemos contar com ele. É por isso que nos apaixonamos por quem nos apaixonamos. Porque é uma grande, bendita distração vivermos assim. Com tanta sorte. 


Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público (14 Fev 2012)'


Miguel Esteves Cardoso

Miguel Esteves Cardoso nasceu em Lisboa em 1955. É crítico, escritor e jornalista português. Mas é também letrista, tradutor, ensaísta, autor de programas de rádio, dramaturgo, entrevistador e tem um grande sentido de humor.
Teve uma educação privilegiada e foi um aluno brilhante com um talento invulgar para a escrita. Estudou no Reino Unido, mais concretamente na Universidade de Manchester, onde se licenciou em Estudos Políticos, e prosseguiu na mesma universidade para o doutoramento em Filosofia Política com uma tese sobre A Saudade, o Sebastianismo e o Integralismo Lusitano. Em 1982 regressou a Portugal e entrou para o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, como investigador auxiliar. Foi ainda professor auxiliar de Sociologia Política no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, co-fundador do Gabinete de Filosofia do Conhecimento, visiting fellow do St. Antony's College, em Oxford, e fez um pós-doutoramento em Filosofia Política, sob orientação de Derek Parfit e de Joseph Raz.
A partir do contacto estreito com as bandas pós-punk e new wave da editora Factory quando esteve no Reino Unido, MEC (como ficou conhecido), escrevia crónicas sobre música pop, publicadas nos jornais Se7e, O Jornal ou Música & Som. Participou na Fundação Atlântica, a primeira editora portuguesa independente, produzindo discos de nomes como Sétima Legião, Xutos e Pontapés, Delfins, Paulo Pedro Gonçalves, Anamar, entre outros. Fez letras de músicas e foi ainda autor e co-autor de diversos programas de rádio como Trópico de Dança, Aqui Rádio Silêncio, W, Dançatlântico e A Escola do Paraíso, todos na Rádio Comercial.
Começou a dedicar-se à crítica literária e cinematográfica e a ser presença assídua na rádio e na televisão. Marcava a diferença pela sua aparência invulgar de jovem intelectual com intervenções imprevisíveis e desconcertantes, irónicas e irreverentes. Tornou-se colaborador do Expresso, onde as suas crónicas satíricas A Causa das Coisas e Os Meus Problemas, conheceram o acompanhamento regular de muitos leitores e o sucesso junto dos jovens.
Monárquico e antieuropeísta convicto, apresentou-se como candidato a deputado ao Parlamento Europeu, em 1987, como independente nas listas do Partido Popular Monárquico, não conseguindo a eleição. Simultaneamente, é incentivado a integrar a Companhia de Teatro de Lisboa, o que o leva à dramaturgia. Publicou então Carne Cor-de-Rosa Encarnada (encenada por Carlos Quevedo), Os Homens (encenado por Graça Lobo) e traduziu várias peças de Samuel Beckett.
Em 1988 fundou, com Paulo Portas, O Independente. Um semanário que pretendia revolucionar o jornalismo português. Foi um contraponto conservador e elitista, mas simultaneamente libertário e culto, à imprensa esquerdista que prevalecia na época. MEC ocupava-se da parte cultural, no destacável Vida e fazia dupla com Paulo Portas em entrevistas a algumas figuras marcantes da política e cultura portuguesa.
Em 1991, deixou a direção d'O Independente para criar a Revista K, projeto que não durou mais que dois anos. Mas a dedicação à literatura foi-se intensificando, até que acabou por afastá-lo do jornalismo ativo.
O amor é fodido é o título do seu primeiro romance, publicado em 1994 e foi um best-seller.
Na televisão, colaborou com Herman José, como guionista do programa Humor de Perdição e em vários talk-shows, entre eles o popular A Noite da Má-Lingua na SIC, com a moderação de Júlia Pinheiro e na companhia de Manuel Serrão, Rui Zink, Rita Blanco, Alberto Pimenta, Luís Coimbra, Constança Cunha e Sá e Graça Lobo, eram satirizadas figuras e situações da vida pública portuguesa e internacional.
No final dos anos 90, por motivos que nunca revelou, abandonou os ecrãs televisivos. Publicou mais dois romances, A Vida Inteira e O Cemitério de Raparigas e continuou a escrever crónicas em jornais, primeiro n'O Independente, mais tarde no Diário de Notícias. Em 1999, criou também um blogue chamado Pastilhas, que abandonou em 2002.
Em 2006 retomou a sua colaboração com o Expresso. Em 2009 lançou o livro Em Portugal não se come mal. (Daqui)


"A vida come-se quando é boa; come-nos quando é má. E às vezes, quando menos esperamos, também comemos com ela".

(Miguel Esteves Cardoso)
 

 
  Portrait of a Young Lady with Veil 
 

"Vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele." 

(Victor Hugo)




"Quem não compreende um olhar, tão pouco compreenderá uma longa explicação..."

(Mário Quintana)


Eugene de Blaas, Venetian Lovers, 1906 


"O amor eterno é o amor impossível. Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam."
 
(Eça de Queirós)
 

Eugene de Blaas 


(...) “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. (...)
 

 Cecília Meireles, Obra Poética, Rio de Janeiro, Nova Aguillar


Eugene de Blaas 

 
"Sem um amor não vive ninguém. Pode ser um amor sem razão, sem morada, sem nome sequer. Mas tem de ser um amor. Não tem de ser lindo, impossível, inaugural. Apenas tem de ser verdadeiro." - Miguel Esteves Cardoso
 
 

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