terça-feira, 31 de dezembro de 2013

"Conta e Tempo" - Poema de Frei António das Chagas


George Bernard O'Neill (Irish genre painter, 1828-1917), New Year's Day, 1889

 

Conta e Tempo


Deus pede estrita conta de meu tempo. 
E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. 
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta 
Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? 

Para dar minha conta feita a tempo, 
O tempo me foi dado, e não fiz conta, 
Não quis, sobrando tempo, fazer conta, 
Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. 

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 
Não gasteis vosso tempo em passatempo. 
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 
Quando o tempo chegar, de prestar conta 
Chorarão, como eu, o não ter tempo... 


Frei António das Chagas, in 'Antologia Poética' 
 

Henry Mosler (1841-1920), New Year's Morning, 1888


"Não te felicites pelo dia de amanhã, pois não sabes o que o hoje vai gerar."

(Textos Bíblicos, Provérbios 27,3)


segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

"Solidão" - Poema de Mia Couto


Paul Gustav Fischer, The artist painting en plein air, 1889



Solidão


Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo


in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"


Paul Gustav Fischer - Artists' wife Dagny and daughter Harriet, Date unknown


"A única coisa sem mistério é a felicidade porque ela se justifica por si só." 

(Jorge Luis Borges)


Paul Gustav Fischer - The artist's wife reading at home on Sofievej, Date unknown


"A poesia é algo tão íntimo que não pode ser definida."

(Jorge Luis Borges)


Paul Gustav Fischer - A Good Book, 1905


"Chega-se a ser grande por aquilo que se lê e não por aquilo que se escreve."

(Jorge Luis Borges)




Jorge Luis Borges
, poeta, ensaísta e escritor de contos argentino, nasceu a 24 de agosto de 1899 em Buenos Aires, na Argentina e morreu a 14 de junho de 1986 em Genebra, na Suíça. Levou ao estabelecimento do Movimento Extremista da América do Sul.

Borges cresceu no Distrito de Palermo, sede de alguns dos seus trabalhos. A sua família notabilizou-se na História da Argentina e, sendo de ascendência britânica, aprendeu primeiro o inglês e só mais tarde o espanhol. Os primeiros livros que leu foram os da biblioteca do pai e incluíam The adventures of Huckleberry Finn, os romances de H. G. Wells, The Thousand and One Nights e Don Quixote, todos escritos em inglês.
 
Em 1914, com o eclodir da I Guerra Mundial, Borges foi levado pela família para Genebra, aprendendo o francês e o alemão. Em 1921 voltou para Buenos Aires, redescobriu a sua cidade natal e reconstruiu, em poemas, o seu passado e o seu presente. Publicou o primeiro livro de poemas, Fervor de Buenos Aires, em 1923. Foi autor de vários ensaios, poemas e contos, fundou três jornais literários e publicou Carriego, em 1930.

A fase que se seguiria na vida do escritor viria a ser marcada pela ficção. Escreveu a História Universal de la infamia em 1935. Para ganhar a vida, em 1938, aceitou um cargo na biblioteca de Buenos Aires. Viria a lembrar-se deste período como "de nove anos de infelicidade".

Nos oito anos seguintes publicou as suas melhores histórias fantásticas, reunidas na obra Ficções, escrita em 1944, e um volume de traduções inglesas intitulado El Aleph and other Stories.

Com a ditadura de Juan Perón, que passou a tomar conta dos destinos do país em 1946, Borges foi despedido do cargo que exercia por expressar o seu apoio aos aliados na Segunda Guerra Mundial. Com a ajuda de amigos, publicou em 1952 uma coleção de ensaios, Otras inquisiciones (1937-52). Quando Perón foi deposto, em 1955, Borges tornou-se diretor da Biblioteca Nacional e foi também professor de inglês e de literatura americana na Universidade de Buenos Aires.

Borges explorou temas metafísicos nos seus primeiros trabalhos. Em 1960 escreveu El hacedor e El libro de los seres imaginários, em 1967. Mais tarde, em 1970, escreveu El informe de Brodie, onde adotou um estilo mais realista. A obra El libro de arena, publicada em 1955, marcou o retorno aos temas fantásticos.

Depois de 1961, altura em que Borges e Samuel Beckett partilharam o prestigioso prémio Formentor, as narrativas e os poemas de Borges foram reconhecidos como clássicos da literatura mundial.(Daqui)
 
 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

"NATAL DE QUEM?" - Poema de João Coelho dos Santos





NATAL DE QUEM?


Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do perú, das rabanadas.

-- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!

- Está bem, eu sei!

- E as garrafas de vinho?

- Já vão a caminho!

- Oh mãe, estou pr'a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?

- Não sei, não sei...

Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:

- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.
Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!

Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive teto nem afeto!

Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:

- Foi este o Natal de Jesus?!!!


João Coelho dos Santos
in Lágrima do Mar - 1996


João Coelho dos Santos nasceu em Lourosa, Santa Maria da Feira, a 14 de Agosto de 1939.
Aos onze anos de idade ficou órfão de Mãe. Passou a viver em Lisboa tendo estudado no Colégio “O Académico”, no Liceu Camões e na Faculdade de Direito de Lisboa.
Foi, durante quase vinte e três anos, Secretário Geral do ACP - Automóvel Club de Portugal e, durante dois mandatos, Vereador do CDS na Câmara Municipal de Lisboa. Está ligado a várias Associações Poéticas e Culturais. Atual membro de “Os Confrades da Poesia”. É autor de diversos livros de poesia, de teatro, de biografias históricas e de um didáctico.




A Arma Diabólica do Ritual
 por


"A ânsia pelo ritual e pelas cerimónias é forte e generalizada. Quanto é forte e está largamente espalhada vê-se pelo ardor com que homens e mulheres que não têm nenhuma religião ou têm uma religião puritana sem ritual se agarram a qualquer oportunidade para participarem em cerimónias, sejam elas de que espécie forem. A Ku Klu Klan nunca teria conseguido o seu êxito do pós-guerra se se aferrasse aos trajes civis e às reuniões de comissões. Os Srs. Simmons e Clark, os ressuscitadores daquela notável organização, compreendiam o seu público. Insistiram em estranhas cerimónias noturnas nas quais os trajes de fantasia não eram facultativos mas sim obrigatórios. O número de sócios subiu aos saltos e baldões. O Klan tinha um objetivo: o seu ritual simbolizava alguma coisa. Mas para uma multidão ritofaminta a significação é aparentemente supérflua. A popularidade dos cânticos em comunidade mostram que o rito, como tal, é o que o público quer. Desde que seja impressivo e provoque uma emoção, o rito é bom em si próprio. Não interessa nada o que ele possa significar. À cerimónia dos cânticos em comunidade falta todo o significado filosófico, não tem nenhuma ligação com qualquer sistema de ideias. É simplesmente ela própria e mais nada. Os rituais tradicionais da religião e da vida quotidiana sumiram-se deste mundo vastamente. Mas o seu desaparecimento causou pena. Sempre que as pessoas têm oportunidade, tentam satisfazer a sua fome cerimonial, mesmo que o rito com que a mitigam seja inteiramente destituído de significado."

 
Aldous Huxley, in "Sobre a Democracia e Outros Estudos" 
 

 Aldous Huxley
 
 
Aldous Leonard Huxley (Godalming, 26 de Julho de 1894Los Angeles, 22 de Novembro de 1963) foi um escritor inglês e um dos mais proeminentes membros da família Huxley. Passou parte da sua vida nos Estados Unidos, e viveu em Los Angeles de 1937 até a sua morte, em 1963. Mais conhecido pelos seus romances, como Admirável Mundo Novo e diversos ensaios, Huxley também editou a revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias, literatura de viagem e guiões de filmes.
Foi um entusiasta do uso responsável do LSD como catalisador dos processos mentais do indivíduo, em busca do ápice da condição humana e de maior desenvolvimento das suas potencialidades.
 
 


“A filosofia de uma pessoa não é melhor expressa em palavras; ela é expressa pelas escolhas que a pessoa faz. A longo prazo, moldamos nossas vidas e moldamos a nós mesmos. O processo nunca termina até que morramos. E, as escolhas que fizemos são, no final das contas, nossa própria responsabilidade.” - Eleanor Roosevelt
 
 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

"A mais bela noite do mundo" - Poema de Fernando Namora

Rio Douro, Zona Ribeirinha das cidades de Vila Nova de GaiaPortoPortugal.



A mais bela noite do mundo


 Hoje,
será o fim!

Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!

Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
- Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!

- Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!

(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).

Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua...
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.

- Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espetáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.

Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.

(Era esta a voz do papão
que acendia a vela, tinha regaço de sombra
e velava
as noites da minha rua e a minha vida
e pintava-se de belo
na máscara de papelão).

Hoje,
será o fim!

Hoje,
nem a sombra do que há de vir,
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros,
nem a fragilidade dos meus pés
feitos de barro e cansaço!
Todas as minhas revoltas domadas,
todos os meus gestos em meio
e as minhas palavras sufocadas
terão a sua hora de viver e amar!

Hoje,
nem o cadáver a sorrir na morgue,
nem as mãos que ficaram angustiosas,
arrepiadas
no seu medo de findar!

Hoje,
será a mais bela noite do mundo!


Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'


 Ribeira do Porto, Porto - Portugal





Silent Night -  André Rieu


"Por todos os caminhos do mundo" - Poema de Fernando Namora


David Roberts (Pintor romântico escocês, 1796-1864), "O Simum sobre o Deserto", 1838.



Por todos os caminhos do mundo


A minha poesia é assim como uma vida que vagueia pelo mundo,
por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
num jardim noturno,
ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.

Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.

Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.

Não sei caminhos de cor.


Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'


Fernando Namora 
Fernando Namora


Poeta, pintor, ficcionista e ensaísta, Fernando Namora (Condeixa-a-Nova, 15 de Abril de 1919 - Lisboa, 31 de Janeiro de 1989) formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra. Colaborou com várias publicações periódicas, como Sol Nascente, O Diabo, Seara Nova, Mundo Literário, Presença, Altitude, Revista de Portugal, Vértice, entre outras. Autor de várias coletâneas de poesia e de uma pouco conhecida obra como artista plástico, é sobretudo como ficcionista que o nome de Fernando Namora marca a literatura portuguesa contemporânea, tendo granjeado um sucesso a nível nacional e internacional que não é alheio ao facto de essas duas vocações, a de poeta e a pintor, estarem "presentes no olhar e no dizer do ficcionista." (cf. MENDES, José Manuel - Encontros com Fernando Namora, Porto, 1979, p. 93). Depois da publicação de dois romances, que refletem a experiência universitária coimbrã, numa já segura articulação entre a análise psicológica e a atenção às determinantes sociais e históricas da conduta do indivíduo, a publicação da novela A Casa da Malta irá inscrever este autor na corrente neorrealista, opção facilitada pelo contacto com a realidade social e humana que a experiência de médico em meios rurais lhe impunha. Entre as narrativas que marcam mais visivelmente esta intenção social contam-se o célebre volume Retalhos da Vida de um Médico e as narrativas Minas de São Francisco, A Noite e a Madrugada e O Trigo e o Joio, embora Fernando Namora tenha sempre rejeitado qualquer dicotomia entre literatura de cunho social e de cunho psicológico, considerando, pelo contrário, que "a sondagem 'psicológica' e a 'sociológica' pertencem à mesma incessante tentativa de nos conhecermos, situados na circunstância que nos molda e condiciona" (id. ibi., p. 34). Romances como O Homem Disfarçado ou Cidade Solitária situam-no já no âmbito da geração de 50, ou de uma segunda geração neorrealista, registando o influxo do existencialismo na novelística portuguesa. Em 1965, abandonou a medicina para se consagrar à literatura, tendo então aceitado o cargo de presidente do Instituto de Cultura Portuguesa, no âmbito do qual desenvolveu iniciativas de apoio aos leitorados portugueses e presidiu à publicação de uma coleção de iniciação à cultura: a "Biblioteca Breve". Convicto de que o papel do escritor deverá ser o "de consciencializar e contestar, obstando à sacralização das pessoas e das fórmulas" (id. ibi., p. 110), a obra de Fernando Namora registou até às suas últimas produções, como constantes mais salientes, "a procura de uma íntima coerência (o rasgar das máscaras), o apelo à dignificação da existência, o apelo a tudo o que possa resgatar os humilhados e os atormentados, a descida aos abismos da solitude" (id. ibi., p. 31).

Fernando Namora. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-12-25]


"Isle of Graia Gulf of Akabah Arabia Petraea", 1839, lithograph of a trade caravan by Louis Haghe 
 (Belgian lithographer and watercolourist, 1806 – 1885) from an original by David Roberts.
 

David Roberts, Departure of the Israelites, 1829, Birmingham Museum and Art Gallery


David Roberts, The Great Sphinx and Pyramids of Gizeh (Giza), 17 July 1839.
 

David Roberts (Scottish painter, 1796-1864) Esq. in the Dress He Wore in Palestine, 1840
by Robert Scott Lauder (Scottish painter, 1803–1869). Scottish National Gallery
 
 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

"Viver sem Sofrimento" - Camilo Castelo Branco


Paul Gustav Fischer, (Dinamarca, 1860-1934) Sledging (Copenhagen)




 Viver sem Sofrimento 


Os prazeres ardentes são momentâneos, e custam graves inconvenientes. O que devemos cobiçar é viver sem sofrer muito. Aquele que sofre foge-lhe uma parte da existência. O mal é nocivo à plenitude da vida por que é sempre causa do aniquilamento. Quando o sofrimento nos ameaça, e receamos que as forças defensivas nos faleçam, suspendem-se os outros movimentos do nosso coração, e então pouco há que esperar de nós, por que se torna incerto o nosso destino. O bem-estar de grande número de indivíduos, que vivem retirados das agitações, depende mais da sua disposição habitual de pensamento que da influência de causas exteriores. A crise moral pode surpreendê-los e magoá-los momentaneamente; mas a força dos acontecimentos é meramente relativa. Os sofrimentos são mais ou menos intensos, conforme a época em que nos oprimem. O que ontem poderia aniquilar-me, levemente me incomoda hoje. Cinco minutos de reflexão me bastam. A maior parte dos objetos encerram e presentam, indiretamente pelo menos, as propriedades oportunas. Pô-las em ação é no que assenta a indústria da felicidade. Há aí que farte instrumentos fecundos de prazeres úteis; ponto é saber meneá-los. Quem não sabe trabalhar com eles, fere-se. Discernir, isto é, refletir é o que mais importa...

Camilo Castelo Branco, in 'Cenas Inocentes da Comédia Humana (1863)'




Galeria de Paul Gustav Fischer
Paul Gustav Fischer, Autumn day in Fiolstræde, Copenhagen


Paul Gustav Fischer, Bredgade, Copenhagen 


Paul Gustav Fischer, Vinterdag in Kongens, Nytorv


Paul Gustav Fischer, Fire


Paul Gustav Fischer, Accident


Paul Gustav Fischer, Vesterbrogade


Paul Gustav Fischer, Jacobsen Square, Copenhagen


Paul Gustav Fischer, Waiting for the Tram, 1907


Paul Gustav Fischer, At the tram stop, 1927


Paul Gustav Fischer, Copenhagen Tram



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

"A Riqueza de Espírito no Estado de Doença" - de Virginia Woolf



Paul Gustav Fischer - A Winter's Day on Kongens Nytorv, Copenhagen, 1888. 



A Riqueza de Espírito no Estado de Doença 


Considerando como a doença é comum, como é tremenda a mudança espiritual que traz, como é espantoso quando as luzes da saúde se apagam, as regiões por descobrir que se revelam, que extensões desoladas e desertos da alma uma ligeira gripe nos faz ver, que precipícios e relvados pontilhados de flores brilhantes uma pequena subida de temperatura expõe, que antigos e rijos carvalhos são desenraizados em nós pela ação da doença, como nos afundamos no poço da morte e sentimos as águas da aniquilação fecharem-se acima da cabeça e acordamos julgando estar na presença de anjos e harpas quando tiramos um dente, vimos à superfície na cadeira do dentista e confundimos o seu «bocheche... bocheche» com saudação da divindade debruçada no chão do céu para nos dar as boas-vindas - quando pensamos nisto, como tantas vezes somos forçados a pensar, torna-se realmente estranho que a doença não tenha arranjado um lugar, juntamente com o amor, as batalhas e o ciúme, por entre os principais temas da literatura. 


Virginia Woolf, in "Acerca de Estar Doente"



Virginia Woolf by George Charles Beresford 1902


Virginia Woolf foi uma escritora inglesa nascida a 25 de janeiro de 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina, e falecida a 28 de março de 1941. O pai, Sir Leslie Stephen, era crítico literário. Virginia Stephen, nome de solteira, passou a infância numa mansão londrina com os três irmãos e tratada por sete criados, convivendo com personalidades como Henry James e Thomas Hardy. Virginia tinha 13 anos quando a mãe morreu e 22 quando chegou a vez do pai falecer. Os quatro irmãos foram então viver para Bloomsbury, um bairro londrino da classe média-alta. A irmã mais velha, Vanessa, de 25 anos, tomou conta dos restantes três.
Em sua casa foi formado o Grupo de Bloomsbury, onde se reuniam regularmente personalidades como os poetas T. S. Elliot e Clive Bell, o escritor E.M. Forster entre outros artistas e intelectuais. Os quatro irmãos, entretanto, viajaram pela Grécia e Turquia, mas pouco depois do regresso morreu Tholby, em novembro de 1906. Virginia sofreu a primeira de muitas grandes depressões. Casou em 1912 com o crítico literário Leonard Woolf, que viria a ser o seu companheiro de toda a vida.
The Voyage Out, de 1915, marca o início da sua carreira de romancista, mas só dez anos depois, com Mrs Dalloway, considerado o seu primeiro grande romance modernista, chegou o reconhecimento como escritora reputada. Orlando, obra de 1928, confirmou as qualidades de Virgina Woolf. Esta obra tem um protagonista andrógino, inspirado na sua amiga Vita Sackville-West, com quem manteve uma longa relação íntima. Após obras como A Room of One's Own (Um Quarto Que Seja Seu), onde defende a independência das mulheres, The Waves (As Ondas) e The Years (Os Anos), em 1938 lançou um romance polémico, Three Guineas (Os Três Guineus), na sequência da morte de um sobrinho na Guerra Civil espanhola. Neste livro, Virginia Woolf defende que a guerra é a expressão do instinto sexual masculino. A 28 de março de 1941, pouco depois de ter lançado Between the Acts, Virginia Woolf suicidou-se, atirando-se a um rio com os bolsos cheios de pedras. Foi a segunda tentativa em poucos dias, interrompendo assim uma carreira marcada pela obtenção de diversos prémios literários, dos quais, contudo, só aceitou um, o Fémina, de França.
Paralelamente à atividade de escritora, Virginia, em conjunto com o marido, fundou e manteve uma editora, destinada a publicar textos experimentais, textos de amigos e traduções de russo. Intitulada Hobart Press, a editora funcionava em moldes caseiros, depois de em 1917 Leonard ter oferecido à esposa uma pequena tipografia.

Virginia Woolf. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-12-18].



Paul Gustav Fischer - At Frederiksberg Rundel


Paul Gustav Fischer, Self-Portrait in Nytorv during Winter, 1909


Paul Gustav Fischer (Copenhaga, Dinamarca,1860/1934) era filho de um pintor que mais tarde abandonou a pintura e teve sucesso como fabricante de tintas e vernizes. Paul Fischer começou desde cedo a pintar com seu pai que lhe instrui os segredos da pintura. Teve pouca instrução artística formal, frequentando apenas, durante dois anos, a Real Academia de Arte da Dinamarca. Dedicou-se à pintura de género, naturalista – seus primeiros quadros retratavam a vida da cidade. Passou quatro anos em Paris, onde adquiriu maior sensibilidade para cores mais ricas, e onde também deu preferência à pintura de cenas urbanas.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"Morte" - Poema de José Duro


Ruth Kligman (Newark, 1930-2010)
 
 
 
Morte

 
Ó morte vai buscar a raiva abençoada
Com que matas o mal e geras novos seres...
Ó morte vai de pressa e traz-me os poderes,
Que eu canso de viver, quero voltar ao nada.

Escorre-me da boca a voz que'inda murmura,
Arranca-me do peito o coração enxangue,
Que eu hei de dar-te em troca os restos do meu sangue
Para o negro festim da tua fome escura...

Ó Santa que eu adoro, ó Virgem d'olhar triste,
Bendita sejas tu, ó morte inexorável,
Pelo mundo a chorar, desde que o mundo existe...

Dá-me do teu licor, quero beber a esmo...
Que eu vivo ao abandono e sou um miserável
Aos tombos pela Vida, em busca de mim mesmo!

 
José Duro, in Fel.
 
 
José Duro
 
 
O poeta decadentista José Duro nasceu em 1875, em Portalegre, e morreu em 1899, em Lisboa.
Viveu uma adolescência triste e conturbada, marcada pela tuberculose, doença que o fez sempre viver entre a vida e a morte. Foi aluno da Escola Politécnica de Lisboa e desde cedo começou a frequentar as altas rodas literárias, onde escritores como Victor Hugo, Cesário Verde, Antero de Quental e Charles Baudelaire eram reconhecidos como as grandes personagens literárias da época. Também os jovens simbolistas de Coimbra, como António Nobre, se lhe afiguravam dignos de admiração. De todos estes escritores e poetas, José Duro recebeu profundas influências, as quais se manifestam sob diversas formas na sua escrita.
A obra de José Duro reflete o seu estado de espírito sombrio, que a doença agravava, bem como a sua inserção nas estéticas decadentistas do final do século - das quais terá realizado, porventura, a concretização mais negativista em Portugal. A prostituição, a morte, a tuberculose e o desespero são os temas fulcrais da sua poesia. (Daqui)
 
 
 Red, Black & Silver, obra atribuída ao pintor Jackson Pollock.
[Ruth Kligman, a namorada de Jackson Pollock, afirmou que 
o artista pintou “Red, Black and Silver” em 1956.]
 
 
Mistério envolve pintura de Pollock
 
Há quase 60 anos, uma pequena pintura com redemoinhos e manchas vermelhas, pretas e prateadas simboliza a inimizade entre duas mulheres: Lee Krasner, a viúva de Jackson Pollock, e Ruth Kligman, sua amante. Até sua morte, em 2010, Kligman insistia que a pintura era uma carta de amor para ela, criada por Pollock no verão de 1956, poucas semanas antes de ele morrer em um acidente de carro. Porém, um grupo de especialistas reunido pela fundação criada por Krasner rejeitou a pintura ao autenticar e catalogar as obras de Pollock.

Em novembro, parece que a disputa que viveu mais que as duas mulheres pode finalmente chegar ao fim. Os responsáveis pelo espólio de Kligman afirmaram que testes forenses – comparando amostras dos mocassins que Pollock estava usando quando morreu, seus tapetes e o quintal de sua casa – haviam ligado a pintura de Pollock a sua casa. Porém, ao invés de resolverem uma disputa, as descobertas simplesmente deram início a outro problema, que coloca as formas tradicionais de determinar se uma obra é verdadeira contra as tecnologias mais novas.

De um lado está Francis V. O’Connor, um imponente conhecedor de arte do velho mundo que acredita que a erudição e o olho treinado sejam essenciais para determinar a autenticidade de uma obra. O’Connor, um dos editores do catálogo definitivo de Pollock e membro do já desfeito comitê de autenticação da Fundação Pollock-Krasner, afirmou que "Red, Black and Silver" não parece ter sido pintada por Pollock. Do outro lado está Nicholas D. K. Petraco, detetive aposentado de Nova York e perito forense, que examinou a pintura a pedido dos responsáveis pelo espólio de Kligman. Aproximando-se da tela como quem olha para um corpo na cena de um crime, Petraco afirmou que não tinha dúvidas de que a pintura tivesse sido feita na casa de Pollock e estivesse ligada a Pollock. "Já vi casos de pessoas que passaram 20 ou 30 anos na cadeia com menos provas do que temos aqui", afirmou.

Porém, a ciência tem limites. Tintas e papéis podem ajudar a estabelecer a data de um trabalho, ao passo que cabelos e fibras são capazes de determinar onde a obra foi feita. Porém, a origem da obra também precisa ser averiguada. Os conhecedores afirmam que a verdadeira autoria não pode ser estabelecida sem que um especialista avalie a composição e as pinceladas que revelam a verdadeira "assinatura" do artista.

A diferença de opinião pode valer milhões. Sem ser autenticada, "Red, Black and Silver" seria listada como "atribuída a Pollock" e teria um valor inferior a 50 mil dólares, afirmou Patricia G. Hambrecht, da casa de leilões Phillips, que recebeu a pintura em consignação. Se for confirmada a autoria de Pollock, o valor estimado saltaria para mais de um milhão de dólares, afirmou.

O relato de Kligman a respeito da pintura data do verão de 1956, quando ela tinha 26 anos e vivia na casa de Pollock, em East Hampton, Nova York, depois que Krasner, que pegou os amantes na cama, foi embora para a Europa. Pollock passava por graves problemas com o alcoolismo e não pintava havia dois anos. Conforme Kligman descreveu em uma nova introdução para a edição de 1999 de seu livro de memórias, "Love Affair: A Memoir of Jackson Pollock" (Caso de amor: Memórias de Jackson Pollock, na tradução), o artista estava no quintal da casa quando ela trouxe as tintas e pincéis que ele usou. Quando ele terminou de pintar, teria dito: "Aqui está sua pintura, um Pollock só seu". Quando examinou a obra, Petraco, o detetive, procurou sinais de poeira, cabelo, fibras e outros detritos na superfície e abaixo da tinta. O argumento decisivo, segundo ele, foi a descoberta de um pelo de urso polar. Um tapete de urso polar que ficava na sala em 1956 ainda estava no sótão da casa de East Hampton.

O’Connor afirmou que pode até ser que a obra tenha sido feita no quintal do artista, mas ele é incapaz de dizer quem a pintou. Exatamente o que aconteceu entre duas pessoas que já morreram em uma tarde há 57 anos talvez seja algo que nem a ciência nem a técnica serão capazes de dizer.     
 
Por Patricia Cohen em 08/12/2013 (Daqui)
 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"Poema de Natal" - Vinicius de Moraes





Poema de Natal


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar nossos mortos
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos-
Por isso precisamos de velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai-
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte-
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


Vinicius de Moraes,
 in "Antologia Poética"




“Não gosto de minha voz. Eu a tenho sob protesto. Há, entre mim e minha voz, uma incompatibilidade irreversível”.

(Nelson Rodrigues) 


Nelson Rodrigues (Recife, 23 de agosto de 1912 — Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1980) foi um jornalista e escritor brasileiro, e tido como o mais influente dramaturgo do Brasil. 


"Em Louvor da Miniblusa" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Émile Friant (1863-1932), The Study, 1885
 

Em Louvor da Miniblusa
 
 Hoje vai a antiga musa
celebrar a nova blusa
que de Norte a Sul se usa
como graça de verão.
Graça que mostra o que esconde
a blusa comum, mas onde
um velho da era do bonde
encontrará mais mensagem
do que na bossa estival
da rola que ao natural
mostra seu colo fatal,
ou quase, pois tanto faz,
se a anatomia me ensina
a tocar a concertina
em busca ao mapa da mina
que ora muda de lugar?
Já nem sei mais o que digo
ao divisar certo umbigo:
penso em flor, cereja, figo,
penso em deixar de pensar,
e em louvar o costureiro
ou costureira — joalheiro
que expõe a qualquer soleiro
esse profundo diamante
exclusivo antes das praias
(Copas, Leblons, Marambaias
e suas areias gaias).
Salve, moda, salve, sol
de sal, de alegre inventiva,
que traz à matéria viva
a prova figurativa!
Pode a indústria de fiação
carpir-se do pouco pano
que o figurino magano
reduz a zero, cada ano.
Que importa? A melhor fazenda
o mais cetínio tecido,
que me bota comovido
e bole em cada sentido,
ainda é a doce pele,
de original padronagem,
pois adere a cada imagem
qual sua própria tatuagem
que ninguém copiará.
Miniblusa, miniblusa,
garanto que quem te acusa
a cuca há de ter confusa.
És pano de boca? O palco
tão redondo quão seleto
que abres ao avô e ao neto
(à vista, apenas), objeto
é de puro encantamento.
No cenário em suave curva
nosso olhar jamais se turva,
falte embora rima em urva,
pois é pelúcia-piscina
onde a ilha umbilical
vale a urna de São Gral,
o Tesouro Nacional,
vale tudo... e lembra a drósera,
flor carnívora exigente
que pra devorar a gente
não cochila certamente.
Drósera? Drupa, talvez,
carnoso fruto de vida,
drusa tão bem inserida
na superfície polida
que a blusa desvesteveste.
Ai, blublu de semiblusa,
de Ipanema ou Siracusa,
que me perco na fiúza
de capturar o mistério
— Quid mulieris... ? — do corpóreo.
Mas chega de latinório,
vaníloquo verbolório
e versiconversa obtusa
de tudo que a musa canta,
pois mais alto se alevanta
o sem-véu da miniblusa.


Carlos Drummond de Andrade,
in 'O Poder Ultrajovem'


Galeria de Émile Friant



Émile Friant, Self -portrait, 1878



Émile Friant, Studio Visit1906, Private collection


Émile Friant, Portrait de Mme Petitjean, 1883 


Émile Friant, Portrait de madame Coquelin Mère, collection privée


Émile Friant, Portrait de sa mère épluchant un navet, devant une fenêtre, 1887


Émile Friant, La Porte Saint-Georges, 1878



Émile Friant, Voyage a l'Infini, 1889 


domingo, 8 de dezembro de 2013

"A Secreta Viagem" - Poema de David Mourão Ferreira


Édouard Manet, Boating, 1874, óleo sobre tela, 97 x 130 cm
Metropolitan Museum of Art, New York


A Secreta Viagem


No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos! 


David Mourão-Ferreira
, in "A Secreta Viagem"
 
"Os homens, enquanto não forem completos e livres, 
hão de sonhar sempre de noite."

(Paul Nizan) 




Paul Nizan (Tours, 1905 - Audruicq, 1940) 
Romancista, ensaísta, jornalista, tradutor e filósofo francês.


"A viagem é uma sucessão de irreparáveis desaparições."

(Paul Nizan)