Eu que me aguente comigo
Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.
Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.
Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.
Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Joseph Petkovsek, Autorretrato, 1898
Joseph Petkovsek, pintor esloveno, 7 Março de 1861, Verd, † 22 Abril de 1898, Ljubljana.
Jožef Petkovšek, Perice ob Ljubljanici
"Existe
uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só
vive de detalhes e as manias têm uma força enorme: são elas que nos
sustentam."
Raul Brandão, Húmus
Raul Brandão, Húmus
Sem comentários:
Enviar um comentário