Imagem de Sarolta Bán
Rodando
Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiura das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só plateia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.
Adélia Prado
(Extraído do livro "Filandras",
Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 119.) (Daqui)
Adélia Luzia Prado Freitas (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935) é uma escritora brasileira. Formou-se em Filosofia em 1973, dirigiu um grupo de teatro amador, exerceu o cargo de professora durante 24 anos, até que a carreira de escritora se tornou a atividade central.
O seu primeiro livro de poemas chama-se Bagagem (1976) e foi apadrinhado por Carlos Drummond de Andrade. A partir dessa altura, começou a escrever e a publicar mais obras. Em 1978 editou o seu primeiro livro em prosa, intitulado Soltem os Cachorros.
Entre outras obras da autora encontram-se: Terra de Santa Cruz (poesia, 1981), A Faca no Peito (poesia, 1988), Poesia Reunida (antologia, 1991), O Homem da Mão Seca (prosa, 1994), Prosa Reunida (antologia, 1999) e Filandras (prosa, 2001).
Seus textos retratam o quotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único.
Em termos de literatura brasileira, o surgimento da escritora representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona de casa.
Adélia Prado
Adélia Luzia Prado Freitas (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935) é uma escritora brasileira. Formou-se em Filosofia em 1973, dirigiu um grupo de teatro amador, exerceu o cargo de professora durante 24 anos, até que a carreira de escritora se tornou a atividade central.
O seu primeiro livro de poemas chama-se Bagagem (1976) e foi apadrinhado por Carlos Drummond de Andrade. A partir dessa altura, começou a escrever e a publicar mais obras. Em 1978 editou o seu primeiro livro em prosa, intitulado Soltem os Cachorros.
Entre outras obras da autora encontram-se: Terra de Santa Cruz (poesia, 1981), A Faca no Peito (poesia, 1988), Poesia Reunida (antologia, 1991), O Homem da Mão Seca (prosa, 1994), Prosa Reunida (antologia, 1999) e Filandras (prosa, 2001).
Seus textos retratam o quotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único.
Em termos de literatura brasileira, o surgimento da escritora representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona de casa.
“Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis“.
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"I was born in 1982 in Budapest, Hungary. Originally I’m a jewellery designer, later I discovered digital photo manipulation and it became my passion and main activity. I like using ordinary elements and by combining them, I can give them various stories, personalities. I hope that the meanings of my pictures are never too limited, are open in some way, each viewer can transform them into a personal aspect." - Sarolta Bán
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