Pieter Saenredam, Igreja de Santa Maria della Febbre, Roma, 1629, National Gallery of Art.
Hino à Solidão
Diz-se que a solidão torna a vida um deserto;
Mas quem sabe viver com a sua alma nunca
Se encontra só; a alma é um mundo, um mundo aberto
Cujo átrio, a nossos pés, de pétalas se junca.
Mundo vasto que mil existências povoam:
Imagens, conceções, formas do sentimento,
— Sonhos puros que nele em beleza revoam
E ficam a brilhar, sóis do seu firmamento.
Dia a dia, hora a hora, o pensamento lavra
Esse fecundo chão onde se esconde e medra
A semente que vai germinar na palavra,
Cantar no som, flores na cor, sorrir na pedra!
Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da vida.
Sei que embora essa luz nem para todos tenha
O mesmo brilho, o mesmo impulso criador,
Da glória, sempre vã, todo o asceta desdenha,
Vivendo como um deus no seu mundo interior.
E que mundo sublime, esse em que ele se agita!
Mundo que de si mesmo e em si mesmo criou,
E em cuja criação o seu sangue palpita,
Que não há deus estranho aos orbes que formou.
Nem lutas, nem paixões: ideais serenidades
Em que o tempo se esvai sob o encanto da hora...
O passado e o porvir são ânsias e saudades:
Só no instante que passa a plenitude mora.
Sombra crepuscular, que a noite não atinge,
Nem a aurora desfaz: rosicler e luar,
Meia tinta em que a alma abre os lábios de esfinge,
E o seu mistério ensina a quem sabe escutar.
Mas então, inundando essa penumbra doce,
De não sei que sublime esplendor sideral,
Como se a emanação dum ser divino fosse,
Deixa no nosso olhar um reflexo imortal.
Na vertigem que a vida exalta e desvaria,
Pára alguém para ouvir um coração que bate
No seio mais formoso, o olhar que se extasia
Vê o mundo que nele em ânsias se debate?
É só na solidão que a alma se revela,
Como uma flor noturna as pétalas abrindo,
A uma luz, que é talvez o clarão duma estrela,
Talvez o olhar de Deus, de astro em astro caindo...
E dessa luz, a flor sem forma, há pouco obscura,
Recebe o seu quinhão de graça e de pureza,
Como das mãos do artista, animando a escultura,
O mármore recebe a sua alma — a beleza.
Se sofrer é pensar, na paz do isolamento,
Como dum cálix cheio o líquido extravasa,
A dor, que a alma empolgou, transborda em pensamento,
E a pouco e pouco extingue o fogo em que se abrasa.
Como a montanha de oiro, a alma, em seu mistério,
À superfície nunca o seu teor revela;
Só depois de sondado e fundido o minério
Se conhece a riqueza acumulada nela.
Corações que a existência em tumulto arrebata!
Esse oiro só se extrai do minério candente,
No silêncio, na paz, na quietação abstrata,
Das estrelas do céu sob o olhar indulgente...
António Feijó (1859-1917), in 'Sol de Inverno'
Pieter Saenredam, Cathedral of Saint John at's-Hertogenbosch, 1646
"Vive com os homens como se Deus te estivesse a ver; fala com Deus como se os homens te estivessem a ouvir."
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