sábado, 17 de dezembro de 2016

"Os anjos" - Poema de Vitorino Nemésio


Simon Glücklich (1863-1943), Santa Cecília acompanhada de anjos, 1886



Os anjos


Os anjos são rijos como as pedras
E leves como as plumas.
Na leira rasa de aves, Tu, que redras
Terra, névoas e espumas,
—Deus, de teu nome! —sabes
Que um anjo é pouco e imenso:
Por isso cabes
No anjo e ergues o incenso.

Desfaleço a pensar-te,
Ó ser de Anjos e Deus
Que baixa em mim:
Sobe-me na alma, que ando a procurar-te
E dizendo-te Deus
Acho-te assim.

Anjos são os terríveis
Modos de Deus connosco;
Nós, as suas possíveis
Transparências a fosco.

Lívidos, sem respiração
Ficávamos do toque
Da primeira asa vinda;
Mas eles rondam apenas a oração
Que múrmura os evoque,
E vão-se, e tornam ainda.

Deles para cima, ainda mais graus de glória
Relutam ao sentido
Que deles vem à memória
Como uma bolha de ar na água do olvido:
No mais, são tão pesados,
Os anjos leves ao justo…
Tão alados,
Mas desgostosos do nosso susto!

É isso! Disse-mo agora
O verbo súbito surpreso:
Ser anjo é espanto da demora
Nossa e do peso pávido
Que nos estende.
Terrível é quem toca terra
Para a levar, e não a rende.

Que o anjo, de si, é àvido
De transe e rapidez,
E é ele que chora
Nosso chumbo, hora a hora:
É ele que não entende
A nossa estupidez.


in O Pão e a Culpa, Lisboa 1955


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