domingo, 31 de janeiro de 2021

"Visitações, ou poema que se diz manso" - Ana Luísa Amaral



Charles Sprague Pearce (American, 1851–1914), Mother and child, 1880


Visitações, ou poema que se diz manso


 
De mansinho ela entrou, a minha filha.

A madrugada entrava como ela, mas não
tão de mansinho. Os pés descalços,
de ruído menor que o do meu lápis
e um riso bem maior que o dos meus versos.

Sentou-se no meu colo, de mansinho.

O poema invadia como ela, mas não
tão mansamente, não com esta exigência
tão mansinha. Como um ladrão furtivo,
a minha filha roubou-me inspiração,
versos quase chegados, quase meus.

E mansamente aqui adormeceu,
feliz pelo seu crime. 
in Às vezes o paraíso 
 
 
(1839-1924) | Symbolist painter
Per più informazioni leggi qui: https://www.tuttartpitturasculturapoesiamusica.com/2014/06/Hans-Thoma.html© Tutt'Art@ | Pittura * Scultura * Poesia * Musica |
(1839-1924) | Symbolist painter
Per più informazioni leggi qui: https://www.tuttartpitturasculturapoesiamusica.com/2014/06/Hans-Thoma.html© Tutt'Art@ | Pittura * Scultura * Poesia * Music
Hans Thomas (1839-1924) | Symbolist painter
Per più informazioni leggi qui: https://www.tuttartpitturasculturapoesiamusica.com/2014/06/Hans-Thoma.html© Tutt'Art@ | Pittura * Scultura * Poesia * Musica |

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

"Dorme, meu amor" - Poema de Maria do Rosário Pedreira

 
Philip Wilson Steer (British, 1860-1942), The Muslin Dress, 1910



Dorme, meu amor


Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega – o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor –
a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão de derrubar-me – eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos
agora e sossega – a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,
meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos – a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.


Maria do Rosário Pedreira
,
Do livro «O Canto do Vento nos Ciprestes»,  Gótica, 2001 
 
 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

"Os Girassóis" - Poema de Eugénio de Andrade


National Gallery, London



Os Girassóis 


Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por esta flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

"Cântico da Esperança" - Poema de Rabindranath Tagore

 
Angiolo Tommasi (Italian, 1858 -1923), The Emigrants,1895
 


Cântico da Esperança


Não peça eu nunca
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.

Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.

Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.

Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.

Não seja eu tão cobarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso!


Rabindranath Tagore,
in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões
 
 

"E tudo era possível" - Poema de Ruy Belo


Georgios Jakobides (Greek, 1853-1932), Shepherd Boy


E tudo era possível


 
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


Ruy Belo
,
in Homem de Palavra(s)
Lisboa, Editorial Presença, 1999 (5ª ed.)


Georgios Jakobides,  A young street urchin at rest, 1875, 
 
 
"Livre não sou, mas quero a liberdade. 
Trago-a dentro de mim como um destino."
 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

"A voz que nos rasgou por dentro" - Poema de Nuno Júdice

William-Adolphe Bouguereau, The Elder Sister,1869, 130.2 × 97.2 cm. 



A voz que nos rasgou por dentro

 
De onde vem – a voz que
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?

Esteve aqui – aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.

E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos re-
conhecido outrora, onde está? A voz
que dança de noite, no Inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.

Diz: “ Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos.”

Como se a ouvíssemos.
in "Meditação sobre Ruínas", pág.87/88


William-Adolphe Bouguereau, O caranguejo, 1869
 
 
"Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão – 
Antes que das coisas celestiais."
 
 
 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

"Os estivadores" - Poema de Ruy Belo



Ivar Kamke (Swedish, 1882-1936), "Dockworkers on a North Sea Wharf", c. 1909, oil on canvas
 


Os estivadores


Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade

Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade

Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
"Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, págs. 151 e 152 
 Editorial Presença Lda., 1984
 

domingo, 17 de janeiro de 2021

"Excelsior" - Poema de João de Barros


Claude Monet  (1840–1926), Sunset on the Seine at Lavacourt, Winter Effect, 1880
 


Excelsior

“In memoriam’ à Maria, que soube amar a Vida.”

A tua ânsia,
O teu desejo de partir é, nos teus olhos,
Como, um barco a fugir entre espumas e escolhos
Para a livre distância!

Oh! a evasão
Por uma noite de invernia
Quando o vento sacode e fustiga a energia,
E as nobres aves migradoras vão
- Buscando regiões de calmaria –
Entre o Céu em tormenta e as ondas em cachão!
Depois... a Vida
- Ser muito amada, ser desiludida,
Amar, sofrer, odiar.
Na vertigem do amor aprender a chorar;
Matar com beijos a quimera apetecida...
E na hora maior, e no instante mais puro
Despedaçar, contra o Mistério do Futuro,
A ambição – insofrida!
Mas, calmo e forte,
Mais firme que a desgraça e mais certo que a Morte,
Mais alto que o Destino,
Desfraldar sobre o mundo o orgulho de criar, o impulso de vencer,
- E brandindo-os nas mãos como fachos a arder
Entre a névoa cerrada,
Deixar curvar o seu clarão divino
Para a lama da estradas!

Ah! Todos nós
— Nós que vivemos para além da própria Vida —
Temos o mesmo gesto, a mesma inquieta voz!
Alma de Luz – em febre e amor é consumida ...
E moribundo já, quanta ilusão transida
Vem aquecer-se ainda em nós!...

Assim – resplende. Assim fulgura – e parte
Segue, cantando, o teu desejo, a tua Arte,
Vai, minha Irmã!
A dor é bela, é sempre grande o sofrimento,
Só o tédio é banal, só a mentira é vã...
Veste de esforço o mais amado pensamento.
Deixa o Passado. Exalta o sonho do momento,
E, sem receio, parte!

— Hesitas ao saber que é tão sozinho
O rumo em que se perde a tua mocidade?
Olhas, chorosa e triste de saudade,
Esses que ficam, desdenhando, sem coragem
A audaciosa viagem?
Deixa-os zombar, deixa-os ficar, e desdenhar!
O seu gesto, repara, é covarde e mesquinho,
Têm almas, bem sei, mas só para esquecê-las...
E não vêem sequer que o pó do teu caminho
É poeira de estrelas!... 
 
 
João de Barros (1881-1960)
poema extraído da obra de Fontes de Alencar: Anotações de Poesia
no Centenário da Revista Americana (1909-1919)
Brasília: Thesaurus, 2010.

 [O confronto entre o texto do poema publicado na revista e o que se acha no livro revela variantes versíficas.] 
 

 Lee Campbell, Sunset, 2013 
 
 
Entre uma estrela 
e um vagalume 
o sol se põe.  
 
 
 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

"Olhos Parados" - Poema de Manoel de Barros


Vasily Perov, Botanist, 1874 


Olhos Parados

                                                                                                      a Mário Calábria


Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo de manhã!
Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar com as crianças.
Olhar as flores, ver os bondes passarem cheios de gente,
E, encostado no rosto das casas, sorrir...
Saber que o céu está lá em cima.
Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão perfeitas.
Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela igreja.
Ver as pessoas rindo. Ver os namorados cheios de ilusões.
Sair andando à toa entre as plantas e os animais.
Ver as árvores verdes dos jardins. Lembrar das horas mais apagadas.
Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.
Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas calçadas, nas quitandas.
Ver gente conversando na esquina, falando de coisas ruidosas.
Ver gente discutindo comércio, futebol e contando anedotas.
Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças, enchendo as travessas.
Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que estão longe e ter saudades deles…
Lembrar da cidade onde se nasceu, com inocência, e rir sozinho.
Rir de coisas passadas. Ter saudade da pureza.
Lembrar de músicas, de bailes, de namoradas que a gente já teve.
Lembrar de lugares que a gente já andou e de coisas que a gente já viu.
Lembrar de viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de facto!
Tirar uma folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto…
Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.
Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos livros lidos.
Pensar nas horas vagas, nas horas passadas lendo as poesias de Anto.
Lembrar dos poetas e imaginar a vida deles muito triste.
Imaginar a cara deles como de anjos. Pensar em Rimbaud,
Na sua fuga, na sua adolescência, nos seus cabelos cor de ouro.
Não ter ideia de voltar para casa. Lembrar que a gente, afinal de contas,
Está vivendo muito bem e é uma criatura até feliz. Ficar admirado.
Descobrir que não nos falta nada. Dar um suspiro bom de alívio,
Olhar com ternura a criação e ver-se pago de tudo.
Descobrir que, afinal de contas, não se possui nenhuma queixa
E que se está sem nenhuma tristeza para dizer no momento.
Lembrar que não sente fome e que os olhos estão perfeitos.
Para falar a verdade, sentir-se quite com a vida.
Lembrar dos amigos. Recordar um por um.
Acompanhá-los na vida.
Como estão longe, meu Deus! Um aqui. Outro lá, tão distantes…
Que fez deste o destino? E daqueles?
Quase vai se esquecendo do rosto de um… Tanto tempo!
Ter vontade de escrever para todos os amigos.
Ter vontade de lhes contar a vida até o momento presente.
Pensar em encontrá-los de novo. Pensar em reuni-los em torno de uma mesa,
Uma mesa qualquer, em um lugar que a gente ainda não escolheu.
Conversar com todos eles. Rir, cantar, recordar os dias idos.
Dar uma olhadela na infância de cada um. Aquele era magro, Venício…
Aquele outro era gordo, Abelardo… Aquele outro era triste.
Ai, não esquecer jamais este último, porque era um menino triste.
Como andarão agora? Naturalmente, mais velhos.
Talvez eu não conhecerei alguns. Naturalmente, mais senhores de si.
Naqueles, naturalmente, para quem o mundo deve ter sido menos bom.
Pensar que eles já vêm. Abrir os braços
Procurar descobrir, no mundo que os envolve,
Alguma voz que tenha acento parecido,
Algum andar que lembre o andar longínquo de algum deles…
Ah como é bom a gente ter infância!
Como é bom a gente ter nascido numa pequena cidade banhada por um rio.
Como é bom a gente ter jogado futebol no Porto de Dona Emília, no Largo da Matriz,
E se lembrar disso agora que já tantos anos são passados.
Como é bom a gente lembrar de tudo isso. Lembrar dos jogos à beira do rio,
Das lavadeiras, dos pescadores e dos meninos do Porto
Como é bom a gente ter tido infância para poder lembrar-se dela
E trazer uma saudade muito esquisita escondida no coração.
Como é bom a gente ter deixado a pequena terra em que nasceu
E ter fugido para uma cidade maior, para conhecer outras vidas.
Como é bom chegar a este ponto de olhar em torno
E se sentir maior e mais orgulhoso porque já conhece outras vidas…
Como é bom se lembrar da viagem, dos primeiros dias na cidade,
Da primeira vez que olhou o mar, da impressão de atordoamento.
Como é bom olhar para aquelas bandas e depois comparar.
Ver que está tão diferente, e que já sabe tantas novidades…
Como é bom ter vindo de tão longe, estar agora caminhando
Pensando e respirando no meio de pessoas desconhecidas
Como é bom achar o mundo esquisito por isso, muito esquisito mesmo.
E depois sorrir levemente para ele com seus mistérios…
Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso, exclamar.
Como tudo é tão belo e tão cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.
Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve.
A beleza que a gente vê saindo das rosas; a dor saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.
Lembrar de certas passagens. Fechar os olhos para ver no tempo.
Sentir a claridade do sol, espalmar os dedos, cofiar os bigodes,
Lembrar que tinha saído de casa sem destino, que passara num bar, que ouvira uma mazurca,
E agora estava ali, muito perdidamente lembrando coisas bobas de sua pequena vida.


Manoel de Barros
BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011.