quinta-feira, 29 de setembro de 2022

"A Arca de Noé" - Poema de Vinicius de Moraes


Edward Hicks (American folk painter, 1780-1849), Noah's Ark, 1846, Philadelphia Museum of Art



A Arca de Noé


Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata. 

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora a cabeça botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair. 

Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pelo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre — "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista

Na serra o arco-íris se esvai...
E...desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.


Vinicius de Moraes, do livro "Arca de Noé"
Rio de Janeiro, Sabiá, 1970 
 
["Arca de Noé" é também o título do primeiro poema desse livro. O conjunto é formado por 32 poemas, a maioria sobre bichos, e inclui os que constam dos discos Arca de Noé 1 e 2. Alguns foram musicados pelo próprio Vinicius de Moraes (1913-80) e se tornaram clássicos da MPB para crianças.] 


Capa de "A arca de Noé" da Editora Sabiá 
Ilustração de Marie Louise Nery 
 
Mais conhecidos pelo disco feito para crianças, os poemas da A Arca de Noé foram escritos por Vinicius de Moraes muitos anos antes de sua primeira edição. Eram feitos para seus filhos Suzana e Pedro de Moraes. Por muitos anos, eles ficaram guardados. Só em 1970, o conjunto de poemas infantis ganha o mundo. Seu lançamento ocorre na Itália, país onde a presença do poeta era constante, seja através de diversas visitas e temporadas ou de traduções de sua obra. 

É lá, justamente quando Vinicius conhece um amigo de Chico Buarque chamado Toquinho, que o disco com os poemas infantis é preparado. O disco é chamado L’Arca. No mesmo ano, seus poemas musicados na Itália são lançados em livro no Brasil. Dez anos depois, dois discos dedicados ao conjunto de poemas infantis de Vinicius também são lançados no país, com o mesmo nome do livro. 

A Arca de Noé tornou-se um dos livros mais populares de Vinicius de Moraes por ter criado um laço com as crianças. Todas as gerações têm nos seus poemas uma porta de entrada no mundo da literatura e da música popular brasileira. Ao mesmo tempo, no âmbito musical, foi o primeiro trabalho que apresentou a  Toquinho, parceiro até o fim da vida. (daqui)
 
 
 

"Um pássaro voando é um pássaro livre. Não serve para nada. Impossível manipulá-lo, usá-lo, controlá-lo. E esse é, precisamente, o seu segredo: a inutilidade. Ele está além das maquinações do homem."
do livro 'Um mundo num grão de areia'
 
 
 Sinopse
 
Ver um Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor silvestre,
Ter o Infinito na palma da sua mão
E a Eternidade numa hora.

(William Blake, em "Augúrios de Inocência"

Tendo como inspiração a poesia de William BlakeRubem Alves nos surpreende mais uma vez com esta coletânea de crónicas inéditas. Nestes textos poéticos, de intenso lirismo, é possível encontrar, a partir do verso “Um mundo num grão de areia”, todas as facetas que compõem o universo do ser humano e descobrir a riqueza de vida existente num minúsculo grão de areia, que nada mais é do que nosso mundo irrevelado. Esta é uma obra essencial para quem se sente amante da poesia, da arte, do sonho... amante do ser humano e de seu universo. (daqui)

domingo, 25 de setembro de 2022

"O limpa-palavras" - Poema de Álvaro Magalhães


Georg Pauli (Swedish painter, 1855-1935), Göran in the Green Grass, 1897, Watercolor on paper
 


O limpa-palavras


Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não para de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.


Álvaro Magalhães
,
"O limpa-palavras e outros poemas"


Álvaro Magalhães nasceu no Porto, em 1951, e publicou o seu primeiro livro em 1982.
A sua obra para crianças e jovens, que integra poesia, conto, ficção e textos dramáticos, repartindo-se por mais de 120 títulos, caracteriza-se pela originalidade e invenção, quer na escolha dos temas quer no seu tratamento.
Foi várias vezes premiado pela Associação Portuguesa de Escritores e pelo Ministério da Cultura. Em 2002, "O limpa-palavras e outros poemas" foi integrado na Honour List do Prémio Hans Christian Andersen, em 2004, "Hipopóptimos – Uma história de amor" foi distinguido com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian e, em 2014, "O senhor Pina" recebeu o prémio Autores, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores ao melhor livro infantojuvenil publicado nesse ano.
Várias das suas publicações integram o Plano Nacional de Leitura e constam da lista e obras das Aprendizagens Essenciais de Português.
Parte da sua obra está publicada em Espanha, França, Brasil, Coreia do Sul e Itália. (Daqui)

 
Livro recomendado PNL2027 dos 9-11 anos - leitura mediana,
de  Álvaro Magalhães
 

"O limpa-palavras e outros poemas" (Edições Asa, 2000) é uma nova coletânea de poemas do autor de "O Reino Perdido" (Edições Asa, 1986) para leitores de todas as idades. Um homem que recolhe palavras durante a noite e trata delas durante o dia: o limpa-palavras. A palavra obrigado agradece-lhe. A palavras brisa refresca-o. A palavra solidão faz-lhe companhia. Um guarda-redes míope que confunde a realidade com a sua imaginação. Não vê o jogo, mas pode imaginá-lo. Melhor do que saber o que está a acontecer é saber o que poderia ter acontecido? Uma série de portas sem as quais nada acontecia. Um sorriso abre-as. Uma palavra também, se for uma palavra-chave. E mais, muito mais...(Daqui)

 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

"Reza da Manhã de Maio" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


 
Charles Heberer (American painter, 1865-1952), Gathering Wildflowers, 1895 


Reza da Manhã de Maio

Senhor, dai-me a inocência dos animais
Para que eu possa beber nesta manhã
A harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã
De humanidade,
Apagai a vaidade,
Para que eu me perca e me dissolva
Na perfeição da manhã
E para que o vento me devolva
A parte de mim que vive
​À beira dum jardim que só eu tive.


Sophia de Mello Breyner Andresen,
do livro “Coral e outros poemas”

(Companhia das Letras )

 
 
[Com seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz, esta antologia (Coral e outros poemas) reúne poemas lapidares de uma das vozes mais marcantes e comoventes da literatura portuguesa.

O mar é um dos elementos centrais da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). As “praias lisas”, a “linha imaginária” e as “ondas ordenadas”, em seus poemas, simbolizam a mais profunda beleza, um segredo íntimo, “um milagre criado só para mim”.
Nas cidades, sua poesia é associada à luta: a vida, no “vaivém sem paz das ruas”, é “suja, hostil, inutilmente gasta”. A atuação de Sophia em resistência ao salazarismo se firmou não apenas em sua escrita, com caráter combativo, mas também na Assembleia Constituinte, ao se eleger deputada pelo Partido Socialista, em 1975.
Esta antologia joga luz sobre a dimensão concreta e ao mesmo tempo misteriosa de uma das vozes mais cultuadas da literatura portuguesa. Seja para denunciar o mundo sombrio, seja para tratar de praias radiantes, a poeta — com sintaxe direta e imagens surpreendentes — alerta: “por mais bela que seja cada coisa/ Tem um monstro em si suspenso.” (Daqui)]

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

"O velho, o rapaz e o burro" - Poema de Curvo Semedo


Illustration by Arthur Rackham (English book illustrator, 1867-1939), 
 
 

Illustration by Arthur Rackham, The Miller, his Son, and their Ass, 1912
 
 

Illustration by Arthur Rackham, The Miller, his Son, and their Ass, 1912
 
  
Illustration by Arthur Rackham, The Miller, his Son, and their Ass, 1912
 
 
Illustration by Arthur Rackham, The Miller, his Son, and their Ass, 1912
 
 
Illustration by Arthur Rackham, The Miller, his Son, and their Ass, 1912
 

 
 
 

O velho, o rapaz e o burro
 
 
O mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão.
Quero contar uma história,
Em prova desta asserção.
 
Partia um velho campónio
Do seu monte ao povoado;
Levava um neto que tinha,
No seu burrinho montado. 

Encontra uns homens que dizem:
— Olha aquela que tal é!
Montado o rapaz, que é forte,
E o velho, trôpego, a pé!

Tapemos a boca ao mundo —,
O velho disse; Rapaz,
Desce do burro, que eu monto,
E vem caminhando atrás
 
Monta-se, mas dizer ouve:
Que patetice tão rata!
O tamanhão de burrinho,
E o pobre pequeno à pata!
 
Eu me apeio! — diz, prudente,
O velho de boa fé;
Vá o burro sem carrego,
E vamos ambos a pé. 

  Apeiam-se, e outros lhe dizem:
Toleirões, calcando lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?

 
Rapaz —, diz o bom do velho,
Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se inda nos censuram.


Montam, mas ouvem de um lado:
Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Aposto que não é seu!

 

Vamos ao chão —, diz o velho,
Já não sei que hei de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que não se pode entender.

É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau é,
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé!
 
De tudo me têm ralhado,
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos inda mais esta!

Pegam no burro; o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vão.

Olhem dois loucos varridos! —,
Ouvem com grande sussurro,
Fazendo mundo às avessas,
Tornados burros do burro! 
 
  O velho então pára, e exclama:
Do que observo me confundo!
Por mais que a gente se mate,
Nunca tapa a boca ao mundo.

Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições:
É mais que tolo quem dá
 Ao mundo satisfações.
 

Curvo Semedo, in Composições Poéticas 
 (Versão/Trad. da Fábula de La Fontaine)
 

"O velho, o rapaz e o burro" (Aesop's Fables) é uma fábula adaptada das Fábulas de Esopo (Esopo, 620—560 a.C.), que foi posteriormente recontada por Jean de La Fontaine (1621 —1695). Moral da história: "Cada cabeça, sua sentença".
 
 
Curvo Semedo: "O velho, o rapaz e o burro". 
 

Esopo

 Velázquez, Portrait of Aesop (Esopo), c. 1638, Museo del Prado
 

Famoso fabulista da antiga Grécia, terá nascido em Ammonious, na Frígia, e terá vivido entre o século VII e o VI a. C. As únicas informações sobre a sua vida, passíveis de credibilidade, que chegaram até aos dias de hoje são transmitidas por Heródoto, Plutarco e Heracles Pôntico, mas são tão escassas e até, por vezes, contraditórias que se chega a duvidar da existência de tal personagem. Através destes autores ficamos a saber que Esopo viveu em Samos, foi escravo, embora tenha conseguido ser alforriado, viajou pelo Egito, pela Babilónia e pelo Oriente, tendo sido morto pelos habitantes de Delfos. Plutarco conta que a sua morte teve origem numa condenação por ter roubado uma taça de ouro do interior do templo dedicado a Apolo em Delfos. Conta ainda que este acontecimento foi provocado por uma armadilha montada pelos sacerdotes do dito templo, devido a Esopo ter denunciado os maus costumes em que eles viviam. Esopo foi, então, condenado pela população de Delfos que o lançou do alto de um penedo.

Ainda pela pena de Plutarco temos notícia da sua parca fisionomia: era feio (de cabeça aguda, nariz achatado, barriga e lábios salientes), corcunda e gago, embora muito dotado intelectualmente e corajoso, a acreditar no episódio acima referido da denúncia dos sacerdotes. Tinha o dom da palavra e uma grande habilidade para contar histórias simples em que os personagens eram animais ou personagens mitológicos e nas quais havia sempre ensinamentos morais muito profundos e verdadeiros. Um curioso episódio da sua vida ilustra a sua grande inteligência. Era Esopo ainda escravo do seu primeiro senhor quando este, insatisfeito com o seu trabalho em casa, o mandou cultivar os campos. Um dia o senhor recebeu de um trabalhador um cesto de figos que confiou ao seu escravo Agathópodes enquanto ia ao banho público. Agathópodes planeou comer os deliciosos figos juntamente com um colega e imputar as culpas a Esopo. Esopo, que naquele dia tinha jejuado, bebeu água quente e vomitou para provar a sua inocência, e o senhor, obrigando os outros escravos a fazer o mesmo, encontrou e puniu os verdadeiros culpados. 
 
Esopo atribuía o seu dom da linguagem ao facto de ter ajudado uns sacerdotes de Ártemis e foi este dom que impressionou o seu terceiro senhor, Xanto, um conhecido filósofo de Samos que passeava no mercado de escravos acompanhado dos seus alunos. Xanto imaginou que Esopo fosse exibido para valorizar os outros dois escravos e perguntou-lhes o que faziam. Cantor fazia todas as coisas e custava mil moedas. Gramáticos também fazia todas as coisas e custava duas mil moedas. Ambas as quantias eram impensáveis para Xanto, que dirigiu a sua pergunta a Esopo, que respondeu que nada fazia porque os outros dois já faziam tudo e que era na verdade deformado, mas que um filósofo deveria considerar a mente para além da aparência. Xanto comprou Esopo por um preço muito reduzido e, mais tarde, surpreendido pela sua genialidade, veio a libertá-lo. 
 
Provável inventor da "moral da história", Esopo tornou-se um mito e foi citado por, para além dos autores já mencionados, Aristófanes e, ao que parece, Sócrates pôs em verso as suas fábulas, com base na coletânea, hoje perdida, que em meados do século V a. C. circulava em Atenas. A mais antiga coletânea de fábulas atribuídas a Esopo de que se tem conhecimento é a de Demétrio de Faleros (século IV a. C.), depois encontra-se outra de Bábrio (século III d. C.) e Fedro (século I d. C.). 
 
No século XIV um monge grego, de nome Planudio, escreveu a Vida de Esopo, sendo-lhe atribuída também a coletânea que hoje é conhecida como Fábulas de Esopo. La Fontaine e Florian, entre uma imensidão de outros autores cuja influência é mais indireta, inspiraram-se diretamente nas Fábulas de Esopo. La Fontaine escreveu também a sua biografia, A Vida de Esopo, o Frígio, considerando-o um grande sábio que ensinava a verdadeira sabedoria com muita arte. 
 
As centenas de fábulas da autoria de Esopo incluem histórias que fazem parte do património de todo o mundo. Na "Raposa e as Uvas", a raposa, desdenhando as uvas que não conseguia alcançar, deu origem à moral "É fácil desdenhar o que não se consegue ter" enquanto na "Raposa e o Corvo" sugere "Nunca confies nos que te gabam demasiado" e na "Raposa e a Máscara" diz que "O valor do exterior é pobre substituto do valor interior". Em "O Galo e a Pérola", em que o animal prefere um grão de aveia à pérola, sugere que "As coisas valiosas são para os que as sabem apreciar". Em "O Lobo e o Cordeiro" em que o primeiro come o segundo invocando razões inexistentes diz que "A um tirano qualquer desculpa lhe serve". No "Cão e a sua Sombra" existe a moral de que "Cuidado em não perderes o essencial, ao tentares agarrar a tua sombra". No "Leão Moribundo" a máxima é "Apenas os cobardes atacam a majestade agonizante". Nas "Rãs que Queriam Ter um Rei" Esopo sugere que "Mais vale não ter governo nenhum que ter um governo cruel". No "Homem Calvo e a Mosca" chega à conclusão de que "Quem ataca de mais inimigos insignificantes prejudica-se a si mesmo". No "Cão e o Lobo" o último diz que "Mais vale fraco e livre do que gordo e escravo". A Fábula "A Gata e Afrodite", em que a gata, transformada em mulher pela deusa, se esquece da sua nova condição e corre atrás de um rato para o comer, Esopo viu a seguinte lição: "O perverso pode mudar de aparência, mas nunca de hábitos".

As fábulas atribuídas a Esopo, pois como tudo o resto não é certo que dele sejam, podem ter sido inspiradas nas fábulas escritas em sânscrito chamadas Pancatantra e Hitopadesa, tanto pela semelhança como pelo elemento acima referido da viagem de Esopo ao Oriente.
As fábulas caracterizam-se por serem lições alegóricas sobre o comportamento moral exemplar, em que as personagens são animais. É, sobretudo, uma forma de pedagogia muito importante essencialmente para as crianças, cuja viva imaginação fixa mais facilmente tudo quanto seja do domínio do fantástico.  (Daqui)
 
 

terça-feira, 13 de setembro de 2022

"Nossa Senhora de Paris" - Poema de Mário de Sá-Carneiro


Raoul Dufy, Paris, 1934, óleo sobre tela, 156.5 x 196.2 cm (Post-Impressionism)
Los Angeles County Museum of Art
, Los Angeles, CA, USA

 
 
Nossa Senhora de Paris


Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços de uma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...

Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar...
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos...
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais...
Fico sepulto sob círios –
Escureço-me em delírios
Mas ressurjo de Ideais...

– Os meus sentidos a escoarem-se...
Altares e velas...
Orgulho… Estrelas…
Vitrais! Vitrais!

Flores de liz…

Manchas de cor a ogivarem-se…
As grandes naves a sagrarem-se…
– Nossa Senhora de Paris!…

Paris, 15 de junho de 1913

Mário de Sá-Carneiro
, do livro "Indícios de Oiro", in Orpheu  
 
 

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

"Madrugada Camponesa" - Poema de Thiago de Mello


 
Jules Breton (French naturalist painter, 1827-1906), Les amies (Friends), 1873



Madrugada Camponesa



Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser (sinto no ar)
tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.

Madrugada da esperança
já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana
minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro, mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.


Thiago de Mello,
in 'Faz escuro mas eu canto', 1966 



Jules Breton, Young woman in a field, 1889


Silêncio profundo!
Até o cantar dos grilos
está escondido nas rochas…


Matsuo Bashō
(Haicai / Haikai / Haiku)
Tradução de Casimiro de Brito

 

sábado, 10 de setembro de 2022

"O Voo" - Poema de Menotti Del Picchia



Charles Angrand (French, 1854–1926), The Western Railway at its Exit from Paris, 1886 
 


O Voo


Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento,
desabam no abismo.
Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o
de estrelas.
Conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre
para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo
esgota, como um pássaro, as canções que tens
na garganta.
Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e
de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste não és mais que um voo no tempo.
Rumo ao céu?
Que importa a rota.
Voa e canta enquanto resistirem as asas.

 
 "O Deus sem Rosto", de 1968.
 

Charles Angrand (French, 1854–1926), Couple in the street, 1887,
Musée d'Orsay, canvas, 38.5 x 33.0 cm.  
 

Neoimpressionismo é um termo criado pelo crítico de arte francês Félix Féneon (1861-1944) em 1886 ao ver a obra Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte, de Georges Seurat (1859-1891), considerado líder do período, em uma exposição da Société des Artistes Indépendants (Salon des Indépendants) em Paris. A França passava por um período de avanços tecnológicos e os pintores estavam buscando novos métodos. Os seguidores do neoimpressionismo, em particular, foram atraídos para cenas urbanas modernas, bem como paisagens e praias. A interpretação baseada na ciência de linhas e cores influenciou a caracterização de sua arte. As técnicas pontilhistas e divisionistas são muitas vezes mencionadas ao se falar neste movimento, pois eram as técnicas dominantes em seu início. (Daqui )    

 

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

"O Grito" - Poema de Renata Pallottini



Kees van Dongen
(Dutch-French painter, 1877-1968), Woman on a sofa, 1930



O Grito
 
 
Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas

se ao menos esta dor sangrasse. 


Renata Pallottini
, in 'A Faca e a Pedra', 1965
 
 

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

"Quietude" - Poema de Miguel Torga


Kees van Dongen (1877-1968, Dutch-French painter), Quiétude, c. 1918 (Fauvism)
 
 

Quietude
 

Que poema de paz agora me apetece!
Sereno,
Transparente,
A sugerir somente
Um rio já cansado de correr,
Um doce entardecer,
Um fim de sementeira.
Versos como cordeiros a pastar,
Sem o meu nome, em baixo, a recordar
Os outros que cantei a vida inteira. 
 
S. Martinho de Anta, 27 de Setembro de 1980.


Miguel Torga
(1907-1995), Diário XIII 




André Derain
 (1880-1954, French artist, painter, sculptor and co-founder of Fauvism 
with Henri Matisse), Music, 1904 (Fauvism)
 

Fauvismo

 
O Fauvismo é considerado como o movimento fundador da arte moderna em França. Apesar de não estar constituído como grupo organizado, o Fauvismo reunia artistas que partilhavam aspirações paralelas no campo da pintura. Os pintores Matisse, Derain, Braque, Vlaminck e Dufy pretendiam transformar a pintura sem, no entanto, proceder à rutura total com o formulário artístico do final do século. Todos adotaram uma paleta impressionista na qual associavam a cor à luz.

Fundado em 1904, este grupo experimental foi apresentado pela primeira vez ao público no Salão de outono de 1905, em Paris. A agressividade na aplicação da cor comum a todas as obras expostas por este grupo valeu aos seus autores a denominação pejorativa de fauves (feras) pelo crítico Louis Vauxcelles.

A modernidade do grupo dos fauves parece residir no poder da expressão que por eles é reivindicada. A pintura afasta-se da mera representação mimética para se afirmar como veículo de expressão das emoções do artista.

O Fauvismo é um movimento heterogéneo. Apesar de revelarem certas coincidências formais, os artistas desta corrente desenvolveram uma interpretação pessoal das qualidades expressivas da pintura. Em comum, encontramos a mesma vontade de representação livre da natureza através da utilização de cores puras, da acentuação linear do desenho e da diluição do efeito de perspetiva. Para Matisse, a perspetiva seria a "perspetiva do sentimento", nas quais os planos se aproximavam.

O Fauvismo terminou em 1908, dando origem a novas vias artísticas como o Expressionismo e o Cubismo. (Daqui)
 
 
 
 Henri Matisse (1869-1954, French visual artist), Portrait of Madame Matisse (The green line), 
 
 
Henri Matisse, Le bonheur de vivre, 1905–06, oil on canvas, 176.5 cm × 240.7 cm,  
Barnes Foundation, Philadelphia, Pennsylvania (Fauvism)
 
 

Raoul Dufy
(1877-1953, French Fauvist painter), Bathers, 1908 (Fauvism)
 

Maurice de Vlaminck (1876-1958, French painter), The gardener, 1904 (Fauvism)


Georges Braque (1882-1963, French painter, collagist, draughtsman, printmaker
and sculptor), The Port of La Ciotat, 1907 (Fauvism)
 
 
Presença
 
Hora sem ninguém.
No manso ondear do balanço
de lona está alguém.
 
(Haicai / Haikai / Haiku)