quarta-feira, 30 de abril de 2025

"Arte poética" - Poema de José Saramago


Jean Metzinger (French painter, theorist, writer, critic and poet, 1883 - 1956),
Paysage coloré aux oiseaux aquatiques, 1907, oil on canvas, 74 x 99 cm,
 

Arte poética
 

Vem de quê o poema?
De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.
Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.
3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.

terça-feira, 29 de abril de 2025

"Dói-me o nevoeiro, dói-me o céu" - Poema de Fernando Pessoa


Viggo Johansen (Danish painter, 1851–1935), People at a Farm on the Outskirts
 of Skagen Østerby, 1888.


Dói-me o nevoeiro, dói-me o céu



Dói-me o nevoeiro, dói-me o céu
Que não está cá.
Estou cansado de ser tudo menos eu.
Onde é que está
A unidade que Deus, suponho, me deu?

Perdi-a por sentir, ou por pensar?
Não serve saber.
Extraviei-a, como um embrulho, a sonhar?
Perder por perder,
Mais vale deixar perder e não procurar. 

24-8-1930

Fernando Pessoa
,
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa.
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. 
 
 
Viggo Johansen (Danish painter, 1851–1935), Landscape at Dragør on a grey day, 1913.

O Nevoeiro

Sol e azul e depois névoa. Às vezes começa em Agosto, outras em Setembro. Uma barra ao longe anuncia-a, uma barra que cresce em fumarada sobre a terra, ou que se dispersa correndo para o sul, em labaredas sobre o mar esverdeado. Há outras névoas no Verão que se descerram lentamente como cortinas, ficando o panorama límpido como uma aguarela acabada de pintar. Outras têm léguas de extensão e levam dias a passar. E o mar exala um cheiro mais vivo quando o nevoeiro parece dissolver-se, para logo voltar mais denso e compacto. Às vezes vê-se entre a neblina um ponto da costa cheio de luz, um rasgão no mar, uma única pedra iluminada entre o céu infinito e o mar infinito.

Tenho visto também umas névoas esbranquiçadas que ficam lá para muito fundo embebendo-se de luz. Névoa, um pouco de sol e brancura, tudo emborralhado. A onda vem de longe, irrompe da névoa, e só se vêem os grandes rolos brancos revolvidos de espuma muito ao perto quando se despedaçam.

Em Sagres assisti a um nevoeiro extraordinário. Aparecem primeiro uns flocos no céu, e a luz tomou-se logo mais azul, pegando azul à pele, molhando de azul as mãos estendidas. Depois a névoa, que no Verão dura segundos, doirou e subiu ao ar, tornando o horizonte mais ilimitado e fantasmagórico...

As névoas anunciam o Inverno. Começam a vir os nevoeiros compactos, que se metem pelas narinas e cheiram a mar e a fumo. Há-os que têm léguas de espessura e levam dias a passar, coortes desordenadas de fantasmas enchendo todo o horizonte. O sino tange. Não se vê palmo diante do nariz. Lá fora os barcos, como cegos, só se guiam pelo som. 0 mar é um misterioso fantasma que os envolve. Cerração cada vez mais mole e espessa... Só a voz se ouve, e o lamento parece vir de mais longe e de mais fundo. Às vezes adelgaça-se um pouco na costa, e grandes rolos de fumaceira crescem do mar sobre a terra. É o Inverno que vem aí. A voz imensa tem já plangências de dor – desabar infinito de lágrimas. De sul para o norte as nuvens correm sempre, coortes sobre coortes que saem das profundas e avançam, deslizam sobre as águas sem ruído, enchendo o céu de farrapos enormes, de fantasmas criados naquele mar salgado e que se seguem em tropel num galope monstruoso para uma grande batalha desconhecida. E de quando em quando o sino chama, chama sempre pelos homens perdidos na névoa espessa que leva dias a passar. 

Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.


segunda-feira, 28 de abril de 2025

"Exatidão" - Poema de Jorge de Sena

 


Felix Nussbaum (German-Jewish surrealist painter, 1904–1944), Le secret, 1939.
 


Exatidão 
 

Levam as frases sentido
que uma cadência lhes dá:
sentido do não-vivido
a que fica reduzido
o que, escolhido, não há.

Do imo do poder ser,
onde o não-sido se arrasta,
ouvi cadências crescer:
vaga música de ter,
na vida, quanto não basta -

quanto um sentido se entenda,
que nem verdade ou mentira.
(Que o que dele se aprenda
é como cobarde venda
para que a luz nos não fira.

Luz sem luz, brilho da treva
que tudo no fundo é;
e a certeza que se eleva
do fundo da própria treva,
de exata que seja, é.)

Levam justiça consigo
as palavras que dissermos.
Por quanto sentido antigo,
nelas ficou por castigo
o futuro que tivermos.

Levam as frases sentido
que uma cadência lhes dá.
É justo, injusto - o escolhido?
Como quereis que, vivido,
ele não seja o que será? 


Jorge de Sena
, in 'Post-Scriptum'
 

domingo, 27 de abril de 2025

"O Retrato" - Poema de Adélia Prado

 

  Gustave Doyen (French painter, 1836–1923), Family portrait (Portrait de famille), s.d.


O Retrato 



Eu quero a fotografia,
os olhos cheios d’água sob as lentes,
caminhando de terno e gravata,
o braço dado com a filha.
Eu quero a cada vez olhar e dizer:
estava chorando. E chorar.
Eu quero a dor do homem na festa de casamento,
seu passo guardado, quando pensou:
a vida é amarga e doce?
Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,
os olhos cheios d’água sob as lentes.


Adélia Prado, in Bagagem, 1976.
 

sábado, 26 de abril de 2025

"Ainda te levarei" - Poema de Marina Colasanti


Joris van Son (Flemish painter, 1623-1667), Pronk Still Life with Fruit in a Wan-Li Porcelain Bowl,
with a Herring on a pewter Plate, a Bread Roll, Onions, a Crab and Shrimps on a Table
and a Vanitas Still Life with a Skull in a Niche,
c. 1651.


Ainda te levarei 
 

Ainda te levarei
amor
para comer nozes frescas
na montanha
e pendurar cerejas nas orelhas
como se fossem flores
ou rubis.

As nozes
meu amor
mancham os dedos
e são verdes e exatas
como ovos
mas as cerejas
ah! as cerejas
são quando a cerejeira sua
seu manso sangue.

Ainda te levarei àquela casa
onde floriam lilases
e serpentes tão claras quanto água
deslizavam ao pé das macieiras.
Te mostrarei três lagos
no horizonte
três queijos maturando
numa adega
três lesmas
escondidas sob um vaso.
Estará tudo lá
à nossa espera
morangueiras quebradas
lagartixas.

Só não estará meu medo
de menina
aquele mais escuro que os ciprestes
ecos no mato passos sobre a ponte
garras na saia vento nos cabelos
e o latejar das veias repetindo
estou sozinha
e ninguém me salva.


Marina Colasanti
, Gargantas Abertas, 1998.
 

 
Joris van Son, Sumptuous Still Life with Overturned Silver Ewer, c. 1660.


"O objetivo da nossa bonita arte não é a imitação, mas a criação."

Ralph Waldo Emerson
 
 

domingo, 20 de abril de 2025

"Páscoa no Minho" - Poema de António Manuel Couto Viana



Auguste Roquemont (Pintor luso-suíço da época romântica. 1804-1852), Visita Pascal, 1840.

[O quadro "Visita Pascal" de Auguste Roquemont, artista romântico radicado em Portugal desde 1828, retrata a tradicional visita do Compasso no Domingo de Páscoa, a uma casa rústica de uma aldeia minhota, e foi oferecido pelo pintor ao seu amigo escocês Joseph James Forrester, prestigiado negociante de vinho do Porto, que acabaria por morrer afogado no rio Douro. Roquemont viria a influenciar uma geração de artistas românticos portugueses, tendo sido mestre de Francisco José Resende.]
 
 

Páscoa no Minho


É tempo de Páscoa no Minho florido.
Já se ouvem os trinos dos sinos festeiros
Na igreja vestida de branco vestido,
Entre o verde manso dos altos pinheiros.

Caminhos de aldeia, que o funcho recobre,
Esperam, cheirosos, que passe o “compasso”,
À casa do rico, cabana do pobre…
Já voam foguetes e pombas no espaço!

Lá vêm dois meninos, com opas vermelhas,
Tocando a sineta. Logo atrás, o abade
Já trôpego e lento. (As pernas são velhas?
Mas no seu sorriso tudo é mocidade.)

Com que unção o moço sacristão, nos braços
Traz a cruz de prata que Jesus cativa,
Para ser beijada! Enfeitam-na laços
De fitas de seda e uma rosa viva.

Um outro, ajoujado ao peso das prendas
(Não há quem não tenha seu pouco para dar…)
Traz, num largo cesto de nevadas rendas,
Os ovos, o açúcar e os pães do folar.

Mais um outro, ainda, de hissope e caldeira
Cheia de água benta, abre um guarda-sol.
Seguem-nos, e alegram céus e terra inteira,
Estrondos de bombos e gaitas de fole.

Haverá visita mais honrosa e bela?
Famílias ajoelham. A cruz é beijada.
(Pratos de arroz-doce, com flores de canela,
Aguardam gulosos na mesa enfeitada.)

Santa Aleluia! Oh, festa maior!
Haverá mais bela e honrosa visita?
É tempo de Páscoa. O Minho está em flor.
Em cada alma pura Jesus ressuscita!


António Manuel Couto Viana

 

"Páscoa" - Poema de Miguel Torga


Raphael (Italian painter and architect of the High Renaissance, 1483 – 1520),
 
Páscoa


Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.


Miguel Torga
, in Diário XVI
 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

"Pintura" - Poema de Albano Martins


 
Madeleine Lemaire (Peintre, illustratrice et salonnière française, 1845 - 1928),
 Bouquet of Geranium, s.d.


Pintura 


Onde se diz espiga
leia-se narciso.
Ou leia-se jacinto.
Ou leia-se outra flor.
Que pode ser a mesma.

As flores
são formas
de que a pintura se serve
para disfarçar
a natureza. Por isso
é que
no perfil
duma flor
está também pintado
o seu perfume.


Albano Martins,
 in "Castália e Outros Poemas"
 

domingo, 13 de abril de 2025

"Écloga" - Poema de Nuno Júdice



Louise Abbéma
(French painter, sculptor, and designer of the Belle Époque,
1853-1927), Dans les fleurs, 1892, Musée intercommunal d’Etampes.


Écloga


Encontrei o segredo, a chave de vidro
das palavras que escrevo, e tenho medo.
Talvez nos campos imensos onde o lírio floresce,
na margem de rio que abriga, de manhã cedo,
os teus pés de ninfa, num engano de idade,
me tenhas visto à sombra de um rochedo,
e se os teus lábios, entreabertos num torpor
de romã, me tocaram num sonho bêbedo,
deles só lembro, imprecisos, fluxos
de incêndio numa hipótese de amor.


Nuno Júdice, in "A partilha dos mitos"
Na Regra do Jogo, 1982.


sábado, 12 de abril de 2025

"Pequeno cosmos" e "Química" - Poemas de José Saramago


 
William Bruce Ellis Ranken (British artist and Edwardian aesthete, 1881-1941),
 The Garden Door, 1926.
 

Pequeno cosmos
 

Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.

Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega.

Assim árido, e leve, me transformo:
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.

Talvez, enfim, o aço apure e faça

Do espelho em que me veja e redefina.
 
in "Os Poemas Possíveis". 3ª ed., 
Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
 
 
William Bruce Ellis Ranken, Covent Garden, 1930.
 
 
Química 

 
Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende. 


José Saramago
,
in "Os Poemas Possíveis"
 

sexta-feira, 11 de abril de 2025

"Serenidade - Poema de Gilberto Mendonça Teles

 

Eugène Chigot
(French painter, 1860 - 1927), Jeune femme au bord de l'étang
(Young woman by a lake)
,  c. 1905.



Serenidade


Teus gestos são estranhos, mas a tua alma
tem a beleza ingénua das estrelas.
És bela como o sol, pela constância;
e simples como o luar, pela incerteza.
O bucolismo canta nos teus olhos
e ri no amanhecer dos teus cabelos.
Tudo em ti é tão simples e tão belo.
Tudo canta e sorri. És a alegria.


 Gilberto Mendonça Teles,
in "Hora aberta – Poemas reunidos".
4ª ed., aumentada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.  



Eugène Chigot, 'Le Clair de Lune’ (Moonlight), undated.
 

"A gente ama alguém que desconhece, casa com quem conhece e vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes, temos luas-de-mel, outras vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, porém, são noites sem luar nenhum."

Mia Couto, O Outro Pé da Sereia, 2006

quinta-feira, 10 de abril de 2025

"Fuga" - Poema de Péricles Eugênio da Silva Ramos

 

Albert Chevallier Tayler (English painter, 1862–1925), Girl looking out to sea, 1918.
 
 

Fuga


Penso nos dias de outrora:
risos, domingos. E neles
teu perfil e teus castelos,
tuas histórias e viagens.

Não me quiseste. Partiste.
Pedra eu era. Desejavas
os rios que têm o céu
e fuga nas suas águas:
contudo não me soubeste.

Pedra sou. Porém minha alma
revoa e estruge nas vagas,
e meu canto é a voz do vento
que percorre os sete mares.

Não me soubeste, ó das asas!
Não tentaste conhecer-me,
ainda mesmo se acordada,
ainda mesmo se dormindo.

E eras bela. E tinhas flama.
E era o mar, sendo praia.
Não me soubeste. Partiste.
Mas te sonho. Agora e sempre.


Péricles Eugênio da Silva Ramos

 

quarta-feira, 9 de abril de 2025

"Em pequena" - Poema de Adília Lopes

 


Aldo Parmigiani (Italian painter, b. 1935) 



Em pequena


Em pequena
queria ter muitos bebés
e um cão
ser cançonetista
como a Madalena Iglésias
e ser freira
como a irmã Maria Antonieta
minha professora
por isso vi
umas oito vezes
a Música no coração
e bebi com a Victoria
um cocktail chamado
Mary Poppins
no bar La Filmo
a Julie Andrews
era para mim
a mulher mais bonita
do mundo.


Adília Lopes
,
in "Sete rios entre campos", 1999.



Pinturas de Aldo Parmigiani

Aldo Parmigiani

 
"A natureza e os livros pertencem aos olhos que os veem."
 
 
 

Aldo Parmigiani
 
 
"O amor está em toda a parte da natureza, como emoção, mas também como recompensa."
 
Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 

 Aldo Parmigiani
 
 
 "O talento sozinho não consegue fazer um escritor. Deve existir um homem por trás do livro." 

Ralph Waldo Emerson, in Representative Men, 1850.
 
 

Aldo Parmigiani
 

"A recompensa de uma coisa bem feita é tê-la feito."

Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 
 
 
Aldo Parmigiani
 

"Faço com os meus amigos o que faço com os meus livros. Guardo-os onde os posso encontrar,
 mas raramente os utilizo."

Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 
 

 Aldo Parmigiani
 
 
"Podemos viajar por todo o mundo em busca do que é belo, mas se já não o trouxermos connosco,
 nunca o encontraremos."
 
 Ralph Waldo Emerson, in "Essays"
 
 

terça-feira, 8 de abril de 2025

"Sereia" - Poema de Oscar Rosas



William Breakspeare (English artist, 1856-1914), "The Mermaid", 1890.



Sereia 

Dedicado a Emílio de Meneses

Reparem nesse bronze, veia a veia,
Cornucópia de seios e de escama,
Obra de um japonês, em que o Fusi-Iama
Adora o mar em enluarada areia.

Canta, e essa harmonia nos golpeia.
É duma triste e solitária gama,
Porém aumenta desse bronze a fama
O olhar amortecido da sereia.

Penso que sonha o polo e o nevoeiro,
E a pálida talhada de um crescente
Num céu de véus de noiva e jasmineiro.

E, como búzio a referver, ressoa
Numa langue preguiça de serpente,
Num êxtase nostálgico de leoa.


Oscar Rosas
(1864 - 1925), 
in "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou"
 de J.G. de Araujo Jorge, 1961.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

"Com a tua letra" - Poema de Fernando Assis Pacheco



Fritz Zuber-Buhler (Swiss painter, 1822–1896), The Poetess (La Poétesse), 1880. 
 
 

Com a tua letra


Fala-se de amor para falar de muitas coisas
que entretanto nos sucede.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
 
 Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
 
 Quer dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não para.

Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
 Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
 
 Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
 Porque tudo se escreve com a tua letra. 


Fernando Assis Pacheco, in "A Musa Irregular"
(Antologia poética), 1991.
 

domingo, 6 de abril de 2025

"As crianças doentes" - Poema de A. M. Pires Cabral


 
Anna Ancher (Danish artist associated with the Skagen Painters, 1859–1935),
En vaccination, 1899, Skagens Museum.
 
 
As crianças doentes

I

As crianças doentes estão ao colo das mães
na sala de espera, amortecidas
como flores num vaso a que não se muda a água
há muito tempo
ou uma daquelas revistas cuja capa,
de tanto folheadas, se vai esfarrapando.

Soltam breves vagidos onde é possível ouvir
não só a dor, mas também
o quanto estão surpresas por estarem ali,
em vez de em sua casa ou num bosque.

II

As crianças doentes ao colo das mães
pesam mais:
trazem disseminado pelo corpo
o peso excedentário, intruso da doença.

As mães falam desse peso com as outras mães,
comparam entre si os pesos que carregam,
suspiram, acarinham, aconchegam a roupa
das crianças doentes.

III

Na verdade, as crianças doentes
não estão ao colo das mães.

Estão no rosto das mães, vincadas nele
como as mascarras de zarcão no rosto
de um palhaço de circo.

IV

Quando morrem, as crianças doentes
passam a chamar-se anjinhos e são dadas à terra
em pequenos ataúdes brancos.

Porque se acredita
que o branco se dissolve menos
na escuridão do novo ambiente,
conserva intacta a candura em que morreram.

(Porque morrem as crianças doentes?)


A. M. Pires Cabral, em Frentes de Fogo.
Lisboa: Tinta-da- China, 2019.
 

sábado, 5 de abril de 2025

"Infância" - Poema de Henriqueta Lisboa

 


Fanny Fleury
(French painter, 1846–1923), Sleeping Baby (Bébé dort), 1884.


Infância 


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termómetro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado! 


Henriqueta Lisboa, in "Prisioneira da noite", 1941.


Fanny Fleury, The Lesson (La Leçon), 1880.


"Não é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria..."

Clarice Lispector
, 'Perto do Coração Selvagem', 1943. 

terça-feira, 1 de abril de 2025

"Manhã de Abril" - Poema de Joaquim Namorado


Viggo Johansen (Danish painter and active member of the group of Skagen Painters, 1851-1935),
View of Tibirke Church, 1886.
 


Manhã de Abril


Olho o céu nas poças da rua
que a chuva de ontem deixou,
como pássaros verdes as primeiras folhas
empoleiram-se nos ramos enegrecidos a do inverno
e o sol entorna sobre o casario miserável
uma chuva de falso oiro.
Que raiva me dá...
Foi hoje a enterrar aquela miúda loura
que via brincar na rua
com as tranças apertadas nos laços vermelhos
— morressem antes os velhos
que da vida nada esperam,
já sem amor, já sem esperança,
roídos de chagas e da lepra dos dias.
que não morresse ninguém, valá!
mas ela...
levaram-lhe flores os outros meninos da rua,
iam contentes como para uma festa,
e a mãe atrás do caixão chorando,
e as folhas verdes
e as flores nos canteiros e nas janelas
como se florir fosse uma coisa natural e inevitável
e o velho mendigo cego estendendo a mão,
e a gente educada tirando o chapéu por hábito...

Que raiva me dá a Primavera sobre a dor do Mundo!

Joaquim Namorado
(1914–1986)


Viggo Johansen, Near Skagen Østerby after a Storm, 1885. Oil on canvas, 95 x 147 cm.
Skagens Museum, Skagen.
 

"Abril, frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado."

(Provérbio)