quarta-feira, 27 de agosto de 2025

"Regresso" - Poema de Alda Lara


 
Albano Neves e Sousa
 (Poeta e pintor português, 1921-1995), Paisagem de Angola, 1954.



Regresso


Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Criador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...
Voltar...
Ver de novo baloiçar
a fronde majestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
 Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o húmus vivificante
do teu solo encerra!
 Embriagar 
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...

Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monótono, igual,
do casario plano...
Hei de ver outra vez as casuarinas
a debruar o oceano...
 Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente
destes ruídos...
Os meus sentidos
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo.
 Sede...Tenho sede dos crepúsculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quase irreais...
 Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...

Sim! Eu hei de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer
hei de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo
a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...
Hão de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer: 

Voltei!...


Alda Lara
, in 'Poemas'


 
Alda Lara (1930-1962)

Poetisa angolana, Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque nasceu a 9 de junho de 1930, em Benguela.

Tendo vindo para Portugal muito nova, concluiu em Lisboa o ensino secundário. Distinguiu-se como aluna no Colégio de Paula Frassinetti da cidade de Sá da Bandeira - hoje Lubango - e no Liceu D. Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, onde terminou o 7.º ano.

Começando por frequentar a Faculdade de Medicina de Lisboa, acabou o curso em Coimbra, onde apresentou uma tese sobre "Psiquiatria Infantil". Reconhecida no meio académico, esta tese proporcionou-lhe um convite para se especializar em Paris, para que depois ingressasse num estabelecimento psiquiátrico de Lisboa. Contudo, a sua dedicação e amor à Terra-Mãe impediu-a de responder a esta solicitação.

Irmã do escritor Ernesto Lara Filho, casou-se com o escritor Orlando de Albuquerque, também médico de profissão, e frequentou, como muitos outros seus conterrâneos, a da Casa dos Estudantes do Império (CEI), onde desenvolveu imensa atividade.

Com uma grande ligação ao mundo literário, Alda Lara era reconhecida pela sua capacidade de declamação, cuja singularidade atraiu, entre outros, os poetas africanos. Assim, fez vários recitais em Lisboa e Coimbra, transformando estes lúdicos momentos em verdadeiros veículos de divulgação da poesia negra, até então ainda muito desconhecida.

Foi colaboradora de alguns jornais e revistas, nomeadamente do Jornal de Benguela, do Jornal de Angola, do ABC e Ciência e da revista Mensagem da CEI, da responsabilidade do Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA). Nesta revista publicou, no número de abril de 1952, o poema "Rumo", dedicado ao falecido estudante e contista moçambicano João Dias.

Integrando a Geração da Mensagem, fortemente influenciada formal e tematicamente pela corrente Modernista de 1922 e pelo Neorrealismo português, a autora vai saciar-se nas origens do seu povo, descaracterizado por imposição da cultura colonial. Neste pretérito ancestral, metaforicamente designado por "Mãe África", a autora, assim como todos os "poetas mensageiros" vai encontrar a Alma da sua produção textual através da qual procura "despir-se" da camisa opressiva da história colonial.

O drama dos contratados, a situação da mulher angolana, a repressão exercida sobre o uso das línguas nativas, o desejo de regressar, etc., são, por isso, temas recorrentes e abordados de forma avassaladora: "Quando eu voltar / que se alongue sobre o mar / o meu canto ao Criador! / Porque me deu a vida e o amor, / para voltar? / Ah! Quando eu voltar? / Hão de as acácias rubras, / a sangrar / numa verbena sem fim, / florir só para mim. / E o sol esplendoroso e quente, / o sol ardente, / há de gritar na apoteose do poente, / o meu prazer sem lei? / A minha alegria enorme de poder / enfim dizer: / Voltei!?".

Tendo sido publicada postumamente num volume de poesia e num caderno de contos pelo seu marido, Orlando de Albuquerque, a sua obra figura em diversas antologias, a saber: Antologia de poesias angolanas, Nova Lisboa, 1958; Amostra de poesia in Estudos Ultramarinos, n.º 3, Lisboa, 1959; Antologia da Terra Portuguesa - Angola, Lisboa, s/d; Poetas Angolanos, Lisboa, 1962; Poetas e Contistas Africanos, S. Paulo, 1963; Mákua 2, Antologia Poética, Sá da Bandeira, 1963; Contos Portugueses do Ultramar- Angola, 2.º volume, Porto, 1969; Livros Póstumos: Poemas, Sá da Bandeira, 1966; Tempo de Chuva, Lobito, 1973.

Com uma atividade diversificada, fez também algumas conferências, uma das quais - "Conferência sobre problemas da Assistência Médica Missionária em África" - se encontra publicada, dada a sua importância e repercussão.
Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia.

Faleceu em Cambambe, no Cuanza Norte, a 30 de janeiro de 1962. (daqui)

 

 
Albano Neves e Sousa, Malanje, Angola, s.d.


 
Albano Neves e Sousa (1921-1995)
 

Poeta e pintor português, Albano Silvino Gama de Carvalho das Neves e Sousa nasceu em 1921, em Matosinhos, e faleceu em 1995, em São Salvador da Baía, no Brasil.
Desde muito cedo foi viver para Angola e, depois de 1975, para o Brasil. Cursou pintura na Escola Superior de Belas-Artes, no Porto, vindo a pintar temáticas africanas e temáticas locais angolanas. Visitou vários países como Cabo verde, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Publicou livros de poesia, como Motivos Angolanos (1946), Mahamba. Poesias 1943-1949 (1949), Muênho (1968), entre outros, e está incluído em algumas antologias, tal como Antologia Poética Angolana (1963), Presença do Arquipélago de S. Tomé e Príncipe na Moderna Cultura Portuguesa (1968) e Angolana (1974).

Recebeu, em 1963, a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique pelo Governo de Portugal, em 1970, a Honorary Mention - International Design Exhibition, em Rijeka (Jugoslávia), em 1974, em Naples, na Itália, a medalha de ouro de Designers da Academia Ponzen e, em 1993, de novo pelo Governo português, a Comenda da Ordem de Mérito.
Algumas das obras picturais do "pintor angolano", como é conhecido, podem ser vistas em várias exposições e no Hospital Português da Bahia (Brasil). (daqui)


terça-feira, 26 de agosto de 2025

"A morte absoluta" - Poema de Manuel Bandeira

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

"O mundo parou" - Poema de Anthero Monteiro

 

Thomas Edwin Mostyn (English artist, 1864–1930), Anstey's Cove, Devon.



O mundo parou


repentinamente o mundo para de girar
não tarda nada vou ser projetado no espaço
o vento é uma asa congelada as nuvens carros avariados
o mar não mexe os barcos pasmaram

não há qualquer indício de ti
habitas decerto outro planeta
ou o cárcere longínquo de uma torre vigiada
caíste num pego sem fundo
perdeste a direção o sentido os sentidos se não a própria vida
um raio caiu entre nós olhamo-nos como pedras
a lava de um vulcão envolveu-nos para sempre
um silêncio inaudito brada na via láctea

por favor mexe um dedo a ver se tudo recomeça
por favor pestaneja para que o ar se mova
por favor inventa um sorriso para tudo descongelar
por favor põe os teus cabelos a fabricar mais volutas
para que essas espirais sejam o ovo de um ciclone
o olho de um furacão o eclodir de uma grande catástrofe

sim é urgente uma grande catástrofe
porque é preciso recomeçar tudo de novo
mais que soldar o eixo do planeta
impõe-se colar a recordação à realidade
e porem-nos a girar lado a lado
na mesma órbita


Anthero Monteiro
in Sulcos da Memória e do Esquecimento,
Porto, Corpos Editora, 2013.

 


Thomas Edwin MostynA walk in the park.


"Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo".

(Arquimedes)


Domenico Fetti (Pintor barroco italiano, 1589-1623),
Arquimedes pensativo, 1620.
 

Arquimedes foi um matemático e físico grego (c. 287 a. C.  212 a. C.). Nasceu em Siracusa e foi assassinado pelos Romanos, quando estes conquistaram a cidade. Foi considerado um dos maiores sábios da Antiguidade, tendo sido o autor de uma enorme quantidade de invenções mecânicas e de engenhos de guerra. Ficou célebre pelo princípio que formulou, segundo o qual "todo o corpo submergido num fluido experimenta um impulso de baixo para cima, igual ao peso do fluido por ele deslocado", e que permite determinar o peso específico dos corpos. (daqui)

domingo, 24 de agosto de 2025

"Músicas" - Poema de Ana Luísa Amaral

 


Gustave Léonard de Jonghe (Flemish painter, 1829–1893), 
Mother with her young daughter, 1865.


Músicas
 

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.


Ana Luísa Amaral, in 'Minha Senhora de Quê',
 Fora do Texto, 1990; reed., Quetzal, 1999.
 


"Minha Senhora de Quê" de Ana Luísa Amaral
 
 
SINOPSE

A obra "Minha Senhora de Quê" de Ana Luísa Amaral (1956-2022), publicada originalmente em 1990, é uma coleção de poemas que explora temas como identidade, linguagem, tradição poética e a relação da mulher com o mundo. 
Ana Luísa Amaral não se limita a repetir fórmulas poéticas, mas questiona e reinventa a linguagem, utilizando-a de forma inovadora para expressar a sua visão do mundo. 
A obra destaca-se pela sua frescura e originalidade, estabelecendo um diálogo constante com outros poetas e com a própria poesia. 

sábado, 23 de agosto de 2025

"Penso em Ti " - Poema de Júlio Dinis

 


Rafał Olbiński (Polish illustrator, painter, and educator, living 
in the United States, b. 1943), "Texture of Casual Desire".


Penso em Ti


Surge a manhã! Tudo é festa
Tudo no campo é prazer.
Trinam aves na floresta
Hinos do sol ao nascer.
Nestas horas misteriosas
Em que dos jasmins e rosas
Sobem perfumes aos céus,
Em que tudo tem poesia,
Meus pensamentos… são teus.

Leva o sol seu curso em meio,
Tudo inunda em clara luz
E só das selvas no seio
Branda sombra se produz.
Mal se ouvem os zumbidos
Dos insetos e os gemidos
Da fonte caindo além;
Nesta hora de ardente calma
De amor só me falta a alma
E este amor… é teu também.

Já vai desmaiando o dia,
Aumenta o grato frescor
E na alameda sombria
Gorjeia o alado cantor;
Soltam-se os diques às presas,
Da rega é a hora, e às rezas
Convida o bronze cristão;
Cede o trabalho ao descanso;
Nestas horas de remanso
Meus pensamentos teus são.

Noite é já. A lua alta
Dos ares cruza a amplidão,
Longe, ao longe, o mar exalta
Aos céus a vaga canção;
E do arvoredo a folhagem
Quer, na sua linguagem,
Seus bramidos imitar;
O sono a terra domina
E a tua imagem divina
Me enleia em brando sonhar!

Penso em ti a toda a hora,
De manhã, pelo arrebol,
Depois, quando à luz da aurora
Sucede o fulgor do sol;
Penso em ti na hora amena
Em que a tarde vai serena
Envolver-se em ténue véu;
Penso em ti de noite escura,
E é toda a minha ventura;
A mais não aspiro eu.

1858

Júlio Dinis, in "Poesias", 1873
 


Rafał Olbiński"Tulips after the storm".


"Às vezes os sentimentos melancólicos trazem consigo algum prazer também,
um prazer suave, íntimo, consolador."

Júlio Dinis, in Uma Família Inglesa, 1868.
 

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

"Vida das Lavadeiras" - Poema de Cora Coralina


 
Anita Malfatti (Pintora, desenhista, gravadora, ilustradora e professora ítalo-brasileira,
1889 - 1964), "As lavadeiras", déc. 1920. Óleo sobre madeira, 35 x 43 cm.


Vida das Lavadeiras

Sombra da mata
sobre as águas quietas
onde as iaras
vêm dançar à noite...
Não. Mentira.
Façamos versos sem mentir.
— Onde batem roupa
as lavadeiras pobres.

Sombra verde dos morros
no poço fundo
da Carioca
onde as mulheres sem marido
carregadas de necessidades,
mães de muitos filhos
largados pelo mundo
batem roupa nas pedras
lavando a pobreza,
sem cantiga, sem toada, sem alegria.

Quero escrever versos verdadeiros.
Por que será, Senhor
que a mentira se insinua
nos meus versos?
Onde vive você, poeta, meu irmão
que faz versos sem mentir?


Cora Coralina (1889 - 1985), 
in Meu Livro de Cordel, 1976.


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

"Canção para a minha mãe" - Poema de Miguel Torga

 

 
Moïse Kisling
 (Peintre français d'origine polonaise, 1891-1953), 
La mère et ses enfants, 1917.
 

Canção para a minha mãe


E sem um gesto, sem um não, partias!
Assim a luz eterna se extinguia!
Sem um adeus, sequer, te despedias,
Atraiçoando a fé que nos unia!

Terra lavrada e quente,
Regaço de um poeta criador,
Ias-te embora antes do sol poente,
Triste como semente sem calor!

Ias, resignada, apodrecer
À sombra das roseiras outonais!
Cor da alegria, cântico a nascer,
Trocavas por ciprestes pinheirais!

Mas eu vim, deusa desenganada!
Vim com este condão que tu conheces,
E toquei essa carne macerada
Da vida palpitante que mereces!

Porque tu és a Mãe!
Pariste um dia aos gritos e aos arrancos,
E parirás ainda pelo tempo além,
Mesmo ser madre e de cabelos brancos!

És e serás a faia que balança ao vento
E não quebra nem cede!
Se te pediu a paz do esquecimento,
Também a força de lutar te pede!

Respira, pois, seiva da duração,
Nos meus pulmões até, se te cansaste;
Mas que eu sinta bater o coração
No peito onde em menino me embalaste.
 
S. Martinho de Anta, 13 de julho de 1946

Miguel Torga
, Diário III,
 in “Diário. Vols. I a IV”. 5ª ed.,
Lisboa: Dom Quixote, 1999.
 

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

"Ser Mulher" - Poema de Gilka Machado



Jens Juel (Danish painter, 1745–1802), Portrait of Thomasine Gyllembourg
(Danish author, 1773–1856), c. 1790.



Ser Mulher


Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!


Gilka Machado, in "Cristais partidos", 1915.


terça-feira, 19 de agosto de 2025

"Se é paixão, me nego" - Poema de Affonso Romano de Sant'Anna

 

 
Hans Heyerdahl (Norwegian realist painter, 1857–1913), An Idyll, c. 1906.
Drammens Museum

 

Se é paixão, me nego


Se é paixão, me nego.
Já resvalei, a alma em pelo
nesse áspero despenhadeiro.

Se é paixão, não quero.
Conheço seus espinhos de mel,
sei aonde conduz
embora prometa os céus.

Se é paixão, desculpe-me, não posso
conheço suas insónias
e a obsessão.

Se é paixão me vou, não devo,
não adiantam teus apelos.
Resistirei, porque aí
morri mil vezes.
Paixão é arma de três gumes,
ao seu corte estou imune.

Se é paixão me nego
e não receio que me acuses
de medo. Do desvario
conheço todos os segredos.

Se é paixão recuso-me
e sinto muito,
pois foi a custo
que saí do labirinto.


Affonso Romano de Sant'Anna,
Textamentos, 1999.


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

"O primeiro de todos os meus sonhos" - Poema de E. E. Cummings

 

 
Vittorio Matteo Corcos (Italian painter, 1859–1933), "Afternoon on the Terrace"
(Pomeriggio in terrazza)
, 1895.



O primeiro de todos os meus sonhos


o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu único amor,
caminhando devagar (pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terra

até o meu segundo sonho começar—
o céu é agreste de folhas; que dançam
e dançando arrebatam (e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)

mas essa mera fúria cedo se tornou
silêncio: em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem (bonecas lado a lado)
imóveis sob a mágica

para sempre caindo neve.
E então este sonhador chorou: e então
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
—onde tu e eu estamos a florescer


E. E. Cummings
, in "livrodepoemas"
Tradução de Cecília Rego Pinheiro
Edição Assírio & Alvim, Lisboa, 1999.

domingo, 17 de agosto de 2025

"O dia de descanso" - Poema de Ana Luísa Amaral



Frederick Morgan (English painter, 1847–1927), The Swing, s.d..
 
 

O dia de descanso


Levei minha filha ao parque
e era domingo.

Pelo domingo, o parque
fica como o jardim do paraíso,
abertos os portões e nenhum deus.
Tudo inocência
entre verdura e saibro e cavalinhos
cabalisticamente numerados
até sete.

Levei minha filha ao parque
e era domingo
e não havia o anjo com a espada de fogo.

Não que na minha filha
cuidasse o guardião:
rasteiros os arbustos sem sítio de maçã
e esta filha tinha só três anos.
o anjo era meu só,
velha dez vezes mais e proibida
por regras de baloiço.

Mesmo dez vezes mais, voei, e tudo ausente.
entre palmas e risos,
o anjo, o fogo, a espada, tudo ausente,
e o céu: só céu azul e limpo.

Levou-me a minha filha ao parque
e era domingo,
o dia de descanso do anjo distraído
de expulsar e distraídos
os portões abertos.


Ana Luísa Amaral
, Imagias, 
Editora: Gótica, 2002

 

sábado, 16 de agosto de 2025

"Quando eu for grande" - Poema de Anthero Monteiro



Charles Spencelayh (English painter, 1865-1958), "True to his colours", s.d.


Quando eu for grande


quando eu for grande
quero ser do tamanho de uma brisa
suave leve improvisa

quero ser um olhar de violeta
o verso livre de um poeta
um rouxinol e o seu estribilho

quero ser uma borboleta escondida
a espreitar a vida
da corola de um pampilho

quando for maior muito maior
nem preciso ser mais do que um aceno

enfim quando for grande
quero ser pequeno 


Anthero Monteiro
(Poeta e professor português, 1946 - 2022)

 

 
Charles Spencelayh, "Changing the clocks", s.d.
 

"Melhor três horas mais cedo do que um minuto atrasado." 

(William Shakespeare)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

"Pesquisar" - Poema de Berenice Gehlen Adams


Rafał Olbiński (Polish illustrator, painter, and educator, living in the 
United States, b. 1943), New York Earth Day II, 2007. 


Pesquisar


Pesquisar é entrar 
Na vida dos livros, 
Em vidas vividas 
Por reis e rainhas, 
Em vidas vividas 
Por bichos e plantas...

Pesquisar é entrar 
Na vida real, 
Na vida vivida 
Por todos nós.

E quanto mais pesquisamos, 
Mais curiosos ficamos, 
Porque a pesquisa 
Nos encanta e nos fascina, 
Porque é da vida real 
Que se criam os sonhos...

Pesquisar é entrar 
Na vida dos bichos, 
Na vida das plantas, 
Na vida de rios e mares, 
Procurando em cada canto 
Um pequeno encanto.

E quanto mais pesquisamos 
Mais percebemos que a vida 
É cheia de cantos 
E encantos secretos. 

Na verdade é pesquisando 
Que aprendemos 
O quão imenso é 
o nosso universo.


Berenice Gehlen Adams, 
"De quase tudo um pouco - Poemas infantis".
(Professora, escritora, artista plástica, ilustradora, editora de revista,
educadora e ativista ambiental brasileira, n. 1961)
 

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

"Passarinhos" - Poema de Zalina Rolim



Charles Baptiste Schreiber
 (French painter, 1845 - 1903),
Girl with Hummingbird, 1877


Passarinhos


A um passarinho que andava
Cantando pelo jardim,
Foi perguntar Elisinha
— Quem é que te cuida assim?

Onde achas doce alimento,
Coisas nutritivas, sãs?
— Tenho bichinhos gostosos
Figos, laranjas, romãs.

— E quando estás fatigado,
Onde é que vais descansar?
— Qual de nós não tem seu ninho?
Nosso ninho é o nosso lar.

— E sede não sentes nunca?
— Tenho rio e ribeirão,
E gotinhas de sereno,
Que as folhas verdes me dão.

— E no inverno não te falta
Agasalho contra o frio?
— Tenho penas que me cobrem,
Tenho agasalho macio.

— E quando não há bichinhos,
Grãos e frutinhas não há?
— Há uma boa criancinha
Que pão e alpiste me dá.


Zalina Rolim

(Poetisa e educadora brasileira, 1869-1961) 


quarta-feira, 13 de agosto de 2025

"A minha terra é Viana" - Poema de Pedro Homem de Mello

 

 
Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Santuário de Santa Luzia, Viana do Castelo, s.d.



A minha terra é Viana


A minha terra é Viana
Sou do monte e sou do mar
Só dou o nome de terra
Onde o da minha chegar; 
Ó minha terra vestida
Da cor da folha da rosa
Ó brancos saios de Perre
Vermelhinhos de Areosa.

Virei costas à Galiza
Voltei-me antes para o mar
Santa Marta, saias negras
Tem vidrilhos de luar.

Dancei a Gota em Carreço
O Verde Gaio em Afife
Dancei-o devagarinho
Como a lei manda bailar; 
Como a lei manda bailar
Dancei em Vile a Tirana
E dancei em todo o Minho
E quem diz Minho diz Viana.

Virei costas à Galiza
Voltei-me então para o Sul
Santa Marta, saias verdes
Deram-lhe o nome de azul.

A minha terra é Viana
São estas ruas estreitas
São os navios que partem
E são as pedras que ficam;
É este sol que me abrasa
Este amor que não engana
Estas sombras que me assustam
A minha terra é Viana.

Virei costas à Galiza
Pus-me a remar contra o vento
Santa Marta, saias rubras
Da cor do meu pensamento.


Pedro Homem de Melo
, in Segredo, 1953.
Lello & Irmão - Editores, Porto.

["A minha terra é Viana" e "Havemos de ir a Viana" são dois poemas de Pedro Homem de Mello (1904-1984), notáveis por terem sido imortalizados na voz de Amália Rodrigues. Amália, com sua interpretação única, deu voz e alma a esses versos, tornando-os símbolos da ligação entre o poeta e a cidade de Viana do Castelo.]



Alfredo de Morais
(Ilustrador português, 1872 - 1971), "Feira d'Agonia", s.d.
(Romaria de Nossa Senhora da Agonia) - Viana do Castelo
Portugal.


Viana do Castelo
  • Aspetos geográficos 
 
Cidade, sede de concelho e capital de distrito, localiza-se na Região Norte (NUT II), no Minho-Lima (NUT III). Fica na margem direita do rio Lima, junto à sua foz, a uma altitude média de cinco metros.

O concelho tem uma área de 319,02 km2, distribuída por 27 freguesias: Afife, Alvarães, Amonde, Anha, Areosa, Barroselas e Carvoeiro, Cardielos e Serreleis, Carreço, Castelo do Neiva, Chafé, Darque, Freixieiro de Soutelo, Geraz do Lima (Santa Maria, Santa Leocádia e Moreira) e Deão, Lanheses, Mazarefes e Vila Fria, Montaria, Mujães, Nogueira, Meixedo e Vilar de Murteda, Outeiro, Perre, Santa Marta de Portuzelo, São Romão de Neiva, Subportela, Deocriste e Portela Susã, Torre e Vila Mou, Viana do Castelo (Santa Maria Maior e Monserrate) e Meadela, Vila de Punhe e Vila Franca. Dista cerca de 70 km do Porto e 390 km de Lisboa.

Em 2021, o município contava com 85 784 habitantes. O natural ou habitante de Viana do Castelo denomina-se vianense ou vianês.

O distrito, situado no extremo Norte do território continental português, no Minho, entre os rios Minho e Neiva, é limitado a norte e leste pela Espanha, a sul pelo distrito de Braga e a oeste pelo oceano Atlântico. Bastante montanhoso, atinge a altitude máxima na serra da Peneda, a 1416 m.

É banhado pelos rios Minho, Âncora, Lima, Neiva e seus afluentes, Coura e Vez. Nas serranias, a vegetação mais significativa é constituída por matas de carvalhos, pinheiros bravos e eucaliptos.

O clima varia conforme a proximidade do mar e a altitude, tornando-se cada vez mais rigoroso à medida que nos afastamos do oceano e que a altitude aumenta. São frequentes os fenómenos de condensação que originam nevoeiros e nebulosidade.

O distrito é marcado pela proximidade de Espanha, pela riqueza dos seus rios e solos e pela sua costa, banhada pelo oceano Atlântico. Fatores físicos que determinam uma forte ligação das gentes à terra, ao rio e também ao mar.

Compreende dez concelhos: Arcos de Valdevez, Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Valença, Viana do Castelo e Vila Nova de Cerveira.

O distrito abrange parte do Parque Nacional da Peneda-Gerês, nos concelhos de Ponte da Barca, Melgaço e Arcos de Valdevez.

  • História e Monumentos
 
Povoada desde o Paleolítico, a cidade de Viana do Castelo detém um vasto património histórico. São vários os achados que comprovam a presença da cultura castreja, com destaque para a "cidade velha" de Santa Luzia. A civilização romana também se instalou neste território. Recebeu foral em 1258, outorgado por D. Afonso III, que lhe concedeu categoria de vila, chamando-lhe Viana da Foz do Lima.

Esteve envolvida na dinâmica dos Descobrimentos, assistindo-se a uma intensificação da atividade comercial. Tornou-se cidade em 1848, por decreto de D. Maria II, a qual lhe atribuiu o nome de Viana do Castelo em homenagem à resistência que a guarnição do seu castelo manteve durante o cerco que lhe fez a Junta do Porto, aquando do movimento revolucionário chamado Maria da Fonte. Atualmente, o castelo de Viana não passa de uma relíquia histórica.

Do seu vasto património edificado salienta-se: a Sé, a Igreja Matriz, Igreja de Santa Cruz, a Igreja da Caridade do Convento de Sant'Ana, o portal manuelino de Sant'Ana, as igrejas de S. Bento, de S. Domingos, do Carmo, do Convento de Santo António, da Senhora da Agonia, a capela-mor de S. Domingos, a Capela dos Malheiro Reimão, a fonte alegórica Viana e os quatro continentes, o chafariz da Praça (datado do século XVI), o Hospital da Misericórdia de Viana, os Paços do Concelho, a roqueta (uma das primeiras fortalezas abaluartadas da nossa costa), o Museu Municipal-Casa Barbosa Maciel, a estação do caminho de ferro, as casas da Carreira (com a sua fachada manuelina), dos Sá Sotomaior, dos Malheiro Reimão, dos Costa Barros e dos Melo Alvim.

Nos vários concelhos que compõem o distrito, encontram-se monumentos valiosos, quer pela sua arquitetura, quer pelo papel que desempenharam na defesa das nossas fronteiras. São exemplos: a ponte gótica, de Ponte de Barca; o centro histórico de Caminha, onde se salienta a Igreja Matriz e o forte da Ínsua, no estuário do rio Minho; a fortaleza de Valença; a fortaleza de Monção e o castelo e Igreja Matriz de Melgaço, entre outros.

  • Tradições, Lendas e Curiosidades
O feriado municipal da sede de distrito é a 20 de agosto.

Um pouco por todo o distrito realizam-se festas e romarias como sejam: a Festa da Senhora da Cabeça, na terça-feira de Páscoa; a Festa da Senhora das Dores e a Festa da Coca no dia do Corpo de Deus, em Monção; em agosto, as festas do concelho de Arcos de Valdevez, Santa Rita de Cássia em Caminha, a romaria de São João de Arga, a Festa da Cultura em Melgaço, a Senhora do Faro, a Bienal de Arte e festas concelhias em Vila Nova de Cerveira; em setembro, as Feiras Novas em Ponte de Lima e a Festa dos Homens do Mar em Vila Praia de Âncora.

Da tradição do concelho de Monção, faz parte a referida Festa da Coca, consistindo na recriação da lenda popular do combate entre S. Jorge e o dragão (a coca). Em Melgaço, o destaque vai para a lenda da Inês Negra. A cultura popular integra também várias lendas de mouras encantadas.

O artesanato apresenta uma produção importante a nível do distrito. A latoaria é uma das produções artesanais, com o fabrico de candeias e vasilhame. Uma das especialidades deste concelho são as artes do calçado - manufatura de chancas e socos. A confeção de adornos com flores, bordados, tapetes para procissões, arcos de romarias e palmitos está também bem patente nas artes desta região.

São também conhecidos os linhos e a cestaria, nomeadamente em Arcos de Valdevez, os trabalhos em cobre e estanho de Caminha, a olaria, os artigos feitos em palha, os jugos de Monção, as mantas e trapos de Melgaço, a fiação de lã, a talha, o fabrico de redes e barcos de pesca e a pirotecnia.

  • Economia
 
A tradicional agricultura minhota, praticada em pequenos campos, seguindo técnicas por vezes ainda muito artesanais, com o domínio da policultura, assume uma importância considerável nos vários concelhos que compõem o distrito.

Nos vales cultiva-se milho, legumes e vinha - o famoso vinho verde, de características únicas, é um dos produtos da região mais apreciados e exportados. À prática agrícola encontra-se normalmente associada à criação de gado, sobretudo bovino, salientando-se as raças galega e barrosã.

O setor secundário demonstra uma dinâmica assinalável. No distrito existem indústrias de laticínios, de transformação de madeiras, cerâmica, produtos alimentares e pirotecnia.

A construção civil contribui também para o desenvolvimento económico. A atividade piscatória é outra das suas riquezas, assente na riqueza piscícola dos seus rios, na sua maior parte ainda libertos do flagelo da poluição, onde ainda se pescam sáveis, salmões, lampreias e outras espécies cada vez mais raras.

O estado de conservação do seu património ambiental, a sua riqueza faunística e florística e a diversidade biogeográfica têm sido fatores determinantes para a afirmação do turismo rural, de montanha, de veraneio à beira-mar e até mesmo termal, no caso de Monção.

Paralelamente, assiste-se um pouco por todos os concelhos à expansão do setor terciário, com o crescimento do comércio e criação de serviços essenciais ao bem-estar da população. (daqui)
 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

"O Livro dos Amantes" - Poema de Natália Correia

 

 
Josef Engelhart
(Austrian painter and sculptor, 1864 - 1941),
"Bride and groom kissing", Private collection.


O Livro dos Amantes

I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exatidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.

II

Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

III

Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e que apagou.

IV

Dá-me a tua mão por cima das horas.
Quero-te conciso.
Adão depois do paraíso
errando mais nítido à distância
onde te exalto porque te demoras.

V

Toma o meu corpo transparente
no que ultrapassa tua exigência taciturna
Dou-me arrepiando em tua face
uma aragem noturna.

Vem contemplar nos meus olhos de vidente
a morte que procuras
nos braços que te possuem para além de ter-te.

Toma-me nesta pureza com ângulos de tragédia.
Fica naquele gosto a sangue
que tem por vezes a boca da inocência.

VI

Aumentámos a vida com palavras
água a correr num fundo tão vazio.
As vidas são histórias aumentadas.
Há que ser rio.

Passámos tanta vez naquela estrada
talvez a curva onde se ilude o mundo.
O amor é ser-se dono e não ter nada.
Mas pede tudo.

VII

Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exatidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.

Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.

Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.

Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.

VIII

Eis-me sem explicações
crucificada em amor:
a boca o fruto e o sabor.

IX

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.


Natália Correia, in "Poemas", 1955

 

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

"Declaração" - Poema de Nuno Júdice



Sir Herbert James Gunn (Scottish landscape and portrait painter, 1893–1964),
Gracie Fields (British actress, singer and comedian, 1898–1979), c. 1938.
 

Declaração


Gosto das mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem
sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.


Nuno Júdice, in "A Fonte da Vida", 1997


domingo, 10 de agosto de 2025

"Quando te tinha mãe" - Poema de Teresa Rita Lopes



William Sergeant Kendall (American painter, 1869-1938), "An Interlude", painted in 1907,
showing his first wife, Margaret Stickney Kendall, and one of their daughters.
Smithsonian American Art Museum
 
 
 Quando te tinha mãe 


Quando te tinha
Mãe
Não sabia
Havia
De te perder
Nem pensava
Sequer
Que podia
Não te ter
Não parava
Para te saborear
Para te saber
Tão precisa
À minha vida
Tão preciosa
Não gozava
A alegria
De te saber
Mãe
 

Teresa Rita Lopes
(Investigadora, ensaísta e escritora portuguesa, 1937- 2025)


 
William Sergeant Kendall, "The Artist’s Wife and Daughters"
 (Margaret Stickney Kendall and two of her daughters)


"Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres." 
 



William Sergeant Kendall, "Margaret Stickney Kendall and two of their daughters", 1900.


"A melhor maneira de ter bons filhos é fazê-los felizes."

Oscar Wilde, Woman's world, Volume 1, Pág. 85. 
Source Book Press, 1888.


sábado, 9 de agosto de 2025

"Navegações Doentes" - Poema de Ana Luísa Amaral

 

  
Julius LeBlanc Stewart (American artist, 1855–1919), Disappointment:
Portrait of Sarah Bernhardt
(French stage actress, 1844–1923), 1882.


[“Disappointment” is an oil on panel painting by the American realism artist, Julius LeBlanc Stewart, from 1882. Stewart is most known for his artwork depicting the Belle Époque period in Paris, when prosperity, wealth, and peace allowed the arts to flourish.
In this painting, a woman is sitting on a chair at home. An envelope lies open on the floor. A letter is resting on her knees, visible against the fabric of her dress as it makes its way to the floor. In her left hand, she delicately holds a teacup. She looks off to her right, lost in thought. The woman has obviously just received some very disappointing news. 
This is thought to be a portrait of the famous French stage actress, Sarah Bernhardt. Bernhardt was 38 years old at the time and at the height of her fame. She was a muse and model for many artists of her day, including Alfred Stevens, Jules Bastien-Lepage, Georges Clairin, and Alphonse Mucha. Bernhardt became famous during the beginning of the Belle Époque period in the 1870s. She made the transition from stage to early film seamlessly. Sarah Bernhardt was commonly referred to as “the most famous actress the world has ever known”.]
 (daqui)


Navegações Doentes


Tenho os sintomas todos:
navegam-me fluídos
e o devaneio em barcos de desejo

os sons de trovoada
mesmo tapando ouvidos:
esclerótica paixão que não domino

tenho os sintomas todos
e assim me reconheço
acamada, incurável: na parede do fundo
navegantes os barcos


Ana Luísa Amaral 

(Poetisa portuguesa, tradutora e professora, 1956–2022)