terça-feira, 26 de abril de 2016

"Memória"- Poema de António Salvado


Gustave Léonard de Jonghe, Woman at the Piano with Cockatoo, 1870



Memória


Na cristalina, líquida presença, 
crescente lua no abismo enquanto 
o mar se cala, desconheço a margem 
onde me espera no desejo 
esguio do poente a deusa branca... 

À ínfima visão dum lírio encosto 
o meu soluço! O espaço é grande... 
Não invoco o lugar mas a verdade 
surge aquém da espera... 

Gaivotas sussurrantes, deixo a música 
morrer, pegadas frescas, desperdícios 
quentes na relva da minha alma... 

II 

Quando se oculta julgando a noite 
indefesa enorme, a fugidia 
estrela me ilumina e desce! 

Vem até mim, quebrada a natural 
cadência do seu mundo, e cresce... cresce... 
Tentáculos de luz me envolvem. Comovido, 
aperto em minhas mãos o elanguescente 
ardor do seu chegar... 

III 

Reconquisto agora o teu rosto, um horizonte, 
silêncio de grito suspenso, labirinto, 
mais desfeito 
no hálito das nuvens... 

Me surges tão sem ti 
que envolve o dia a espessura deste longe... 
E afogo assim na íntima, na única 
beleza do teu rasto, 
o meu soluço de água... 


António Salvado, in "Recôndito"


Gustave Léonard de Jonghe, The Japanese Fan, 1865


"Todos os seres humanos têm três vidas: a pública, a privada e a secreta."


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