segunda-feira, 18 de abril de 2016

"Memórias das Infâncias" - Poema de Adília Lopes


Vilhelm Hammershøi (Danish painter, 1864-1916), 



Memórias das Infâncias 


Gostávamos muito de doce de framboesa 
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa 
do que era costume 
mas 
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa 
para nosso bem 
porque estávamos doentes 
esconderam colheres do remédio 
que sabia mal 
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa 
e tinha fiapos brancos 
isso aconteceu-nos uma vez e chegou 
nunca mais demos pulos por ir haver 
doce de framboesa à sobremesa 
nunca mais demos pulos nenhuns 
não podemos dizer 
como o remédio da nossa infância sabia mal! 
como era doce o doce de framboesa da nossa infância! 
ao descobrir a mistura 
do doce de framboesa com o remédio 
ficámos calados 
depois ouvimos falar da entropia 
aprendemos que não se separa de graça 
o doce de framboesa do remédio misturados 
é assim nos livros 
é assim nas infâncias 
e os livros são como as infâncias 
que são como as pombinhas da Catrina 
uma é minha 
outra é tua 
outra é de outra pessoa


Adília Lopes,
OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pag. 107,
 Ed. Mariposa Azual, Lisboa 2001


Vilhelm Hammershøi, Interior with Woman at Piano, 1901, 
 Oil on canvas, 55,9 x 45,1 cm, Private Collection


A infância

"Todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. A pele suave desses tempos em que se corria com as pernas arqueadas soltando uma espécie de luz pela respiração. Ríamos a correr para os braços dos adultos numa entrega absoluta. Eles, os adultos, atiravam-nos ao ar e apanhavam-nos com mãos ásperas, e, talvez por isso, quando crescemos nunca mais deixamos de, esporadicamente, sonhar que voamos. E de sonhar com gigantes e anões, pois eram essas as nossas proporções."

O Pintor Debaixo do Lava-Loiças

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