Claude Monet, The Studio Boat, 1876
Poema conformista
Nunca escorreu pelo meu corpo a aurora,
nunca senti na minha boca o traspassar de noites,
nunca dormi ao lado das estrelas – que isto
são coisas absolutamente sem importância
que, de resto, outros sonhadores
já tiveram o cuidado de sonhar.
Eu em mim
incrivelmente existo e me basto.
O temer e o esperar passaram por completo.
E a vontade de ver o invisível
e tocar o intocável
e calcular o necessariamente incalculável
também passaram e não prossigo nisto.
Sou exatamente o que me basto para continuar
sendo.
E nisto me basto.
Quando não pude alcançar o lado oposto
e me perdi e não voltei atrás,
eu prossegui pelo caminho e não parei.
Quando na volta preferi vir só
eu me bastei com meus distensos músculos
e não cortei demais a minha carne
em pedaços inúteis.
Minha incerteza quando dói a afasto
e não me engano em pensar o que não posso
nem me abandono a construir filosofias que a
encharquem.
Se não componho as sinfonias que escuto
ninguém o sabe: eu não sou músico.
Quando não sei se devo ou se não devo prosseguir
em escrever poemas e asneiras,
eu nada faço e me recolho: o poeta que não sou
pode nascer ainda.
Como o dedo apagaria o sol
congelaria a aurora no meu corpo
e afastaria estrelas – mas não quero,
outros sonhadores já sonharam isso.
Como eu disse, sou exatamente o que me basto
para prosseguir,
e não quero mais.
em "O Fato e A Coisa"
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