sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

"Só sei cantar" - Poema de Thiago de Mello


Jacobus Hendrik Pierneef (South African, 1886–1957), Dar-es-Salaam, 1926



Só sei cantar


Sou simplesmente um cantor. 
Já disse que nada invento 
nem produzo formatos diferentes. 
Minha terra tem palmeiras 
onde canta o sabiá. 
Canto a luz da primavera, 
canto a chuva da floresta, 
canto a dor dos deserdados, 
e a alvorada da justiça. 
Canto o olhar da minha amada 
e as pernas dela também. 
Canto a plumagem celeste 
do tucano que me acorda 
e canto o peito encarnado 
do rouxinol que chegou 
dos altos do Rio Negro 
para ver de perto o vôo 
das pipiras azuladas. 
(Alguns, da arte só pela arte, 
me torcem a cara quando 
canto em nome do meu povo 
a aurora da liberdade.) 
Canto o que suja e o que lava, 
canto o que dói e o que abranda, 
canto a rosa e seu espinho 
e a cantiga de ciranda 
que se faz de fogo e neve, 
canto o amor, de novo canto, 
só para aprender a amar. 
Mas não canto o que bem quero 
pelo gosto de cantar 
que às vezes sabe a desgosto. 
Canto o que a vida me pede, 
imperiosa ou macia, 
porque sabe que cantar 
é um modo de repartir. 
Sou poeta, só sei cantar. 
em "De uma vez por todas", 1996


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