terça-feira, 21 de junho de 2022

"A Débil" - Poema de Cesário Verde



Henry Tanworth Wells (English, 1828-1903), "Alice", Wells's daughter, 1877
 
 

A Débil


Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava – talvez que o não suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca. 
Triste eu sai. Doía-me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente paraste, embaraçada,
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril. 
 
 
O Livro de Cesário Verde. 1873-1886. 2.ª edição (daqui)
 


O Livro de Cesário Verde
 
 
 Compilação póstuma de poesias de Cesário Verde escritas entre 1873 e 1886, organizada e posfaciada por Silva Pinto, da qual se fez uma primeira edição, em 1887, para oferta a amigos do escritor, e uma segunda edição, em 1901, destinada ao público. A edição princeps de O Livro de Cesário Verde é constituída por 22 composições, repartidas por duas secções, "Crise romanesca" e "Naturais", sem que se saiba se essa divisão obedeceu a indicações do próprio autor ou ao critério do compilador. Apesar de omitir várias poesias de Cesário contempladas em antologias posteriores, a recolha é representativa das várias tendências convergentes na obra poética do autor. Baseando-se na representação pictórica e na descrição plástica da realidade, apoiada no predomínio das sensações ("Lavo, refresco, limpo os meus sentidos./ E tangem-me, excitados, sacudidos,/ O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!"), no que se aproxima do Parnasianismo e do Realismo, Cesário supera, todavia, a captação fotográfica do real, através de um processo de recriação poética que opera uma transfiguração do imediato: "Subitamente - que visão de artista ! -/ Se eu transformasse os simples vegetais,/ À luz do sol, o intenso colorista,/ Num ser humano que se mova e exista/ Cheio de belas proporções carnais?!" ("Num bairro moderno"). A estética anti-romântica e naturalista ("E eu que medito um livro que exacerbe,/ Quisera que o real e a análise mo dessem;") patenteia-se nos motivos da mulher soberba e impassível ("Deslumbramentos", "Frígida"), da cidade mórbida e industrial ("O sentimento dum ocidental", "Num bairro moderno"), ambos de influência baudelairiana, na correção da subjetividade pelo distanciamento e a ironia ("Cristalizações"), na visão não convencional do campo, marcada pela experiência pessoal ("Em petiz", "De verão", "Nós", "De tarde"). Esta transmudação impressionista ou fantasista da realidade apoia-se num estilo inovador, precursor do Simbolismo, no qual, de entre muitos aspetos, salientaremos o uso da sinestesia ("Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;/ Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura"), do advérbio ("Amareladamente, os cães parecem lobos"; "Um forjador maneja um malho, rubramente"), da hipálage ("Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia"; "Um cheiro salutar e honesto a pão no forno") e do assíndeto ("Vê-se a cidade, mercantil, contente:/ Madeiras, águas, multidões, telhados!").
Em suma, a obra poética de Cesário Verde é caracterizada pelo domínio perfeito da língua, riqueza e precisão do vocabulário, rigor e originalidade na adjetivação. Recorrendo também ao verso e estrofe de características tradicionais, o autor cultivou fundamentalmente o soneto em versos decassílabos e alexandrinos, estes últimos, segundo o próprio, caracterizados pelo rigor geométrico e pela sobriedade. Tentando encontrar a "perfeição do fabricado" (parnasianismo) e transmitir " o ritmo do vivo e do real" (realismo), como um realizador cinematográfico, o autor, surpreendendo os instantâneos do quotidiano de Lisboa, regista o pulsar do coração da cidade que, vencendo "o Tempo e a Morte", resiste e sobrevive. (Daqui)

quinta-feira, 16 de junho de 2022

"Futuro" - Poema de João Cabral do Nascimento

 
Gregorio Prieto (Valdepeñas, 1897-1992), El centro del mundo, c. 1965. Óleo sobre lienzo.
Museo Gregorio Prieto
 


 Futuro

O que há de vir é belo
(Pensamos). Belo e ardente.
Fosse o futuro assim!
Pudesse agora tê-lo!
Agora, – e o Presente
Deixá-lo para o fim.

O dia de amanhã?
Ilusão. Frioleiras.
Pois bem: quem o tivera
Já gasto em cinza vã,
Em vez de, à sua espera,
Ficar a vida inteira!

Amanhã: dia de hoje
Que não chegou ainda.
Seja! Mas foge
A vida, antes que venha!
A sua face é linda.
Pena que se detenha.

Há de vir, certamente,
Daqui a muitos anos.
Todavia no mundo
Só haverá presente.
Enganos. Desenganos.
Um silêncio profundo.

Dia tão indeciso,
Tão cheio de mistério!
Virá pelo Outono,
Quando não for preciso,
Acordar-me do sono,
Talvez no cemitério.


João Cabral do Nascimento,
em 'Cancioneiro', 1943

 

 
Gregorio Prieto, Tres cosas a conseguir, c. 1970 , Técnica mixta sobre papel, Collage.
Museo Gregorio Prieto
 
 
"O futuro é construído pelas nossas decisões diárias, inconstantes e mutáveis, e cada evento influencia todos os outros."  
 

quarta-feira, 15 de junho de 2022

"Os Vencidos" - Poema de Antero de Quental

[Os quatro Cavaleiros do Apocalipse, são personagens descritos na terceira visão profética do Apóstolo João no livro bíblico de Revelação ou Apocalipse. Os quatro cavaleiros do apocalipse são respetivamente peste, guerra, fome e morte, que para os cristãos irão acontecer antes do fim de todas as coisas.](Daqui)
 
 

Os Vencidos


Três cavaleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cai a noite do céu, pesadamente.

Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Têm os corcéis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhes cai o sangue, em gotas.

A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As frontes lhes curvou, com mão potente.
No horizonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.

E o primeiro dos três, erguendo os braços,
Diz num soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!

Com largo voo, penetrei na esfera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.

Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu hálito rude e queimador!

A flor rubra e olorosa da paixão
Abre lânguida ao raio matutino,
Mas seu profundo cálix purpurino
Só ressuma veneno e podridão.

Irmãos, amei — amei e fui amado…
Por isso vago incerto e fugitivo,
E corre lentamente um sangue esquivo
Em gotas, de meu peito alanceado.»

Responde-lhe o segundo cavaleiro,
Com sorriso de trágica amargura:
«Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heróica, ao mundo inteiro.

Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
Caminhando entre raças oprimidas,
Fi-las surgir, como um clarim fremente.

Quando há de vir o dia da justiça?
Quando há de vir o dia do resgate?
Traiu-me o gládio em meio do combate
E semeei na areia movediça!

As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de púrpura real.

Irmãos, amei os homens e contente
Por eles combati, com mente justa…
Por isso morro à míngua e a areia adusta
Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»

Diz então o terceiro cavaleiro:
«Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro.

Invoquei-o nas horas afrontosas
Em que o mal e o pecado dão assalto.
Procurei-o, com ânsia e sobressalto,
Sondando mil ciências duvidosas.

Que vento de ruína bate os muros
Do templo eterno, o templo sacrossanto?
Rolam, desabam, com fragor e espanto,
Os astros pelo céu, frios e escuros!

Vacila o sol e os santos desesperam…
Tédio ressuma a luz dos dias vãos…
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!

Irmãos, amei a Deus, com fé profunda…
Por isso vago sem conforto e incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e uma alma moribunda.»

E os três, unindo a voz num ai supremo,
E deixando pender as mãos cansadas
Sobre as armas inúteis e quebradas,
Num gesto inerte de abandono extremo,

Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidável,
Sumiram-se na selva impenetrável
E no palor da noite silenciosa.


Antero de Quental
,
in Sonetos Completos
publicados por
J. P. Oliveira Martins, Lopes & C.ª
Editores, Porto, 1890.


 
Antero de Quental

Antero de Quental nasceu em 1842, em Ponta Delgada – Açores -, e aí morre em 1891. Figura relevante da cultura portuguesa, é o símbolo de um dos nossos mais marcantes movimentos intelectuais, a chamada "Geração de 70". Prosador brilhante e notável poeta, é ainda referência obrigatória no ensaísmo filosófico e literário, na política militante e no jornalismo.
Com a publicação em 1865 de Odes Modernas e do folheto Bom Senso e Bom Gosto Carta ao Exmº Sr. António F. de Castilho, Antero dá início à grande polémica literária do século XIX em Portugal, conhecida como a Questão Coimbrã, que rompe com o Ultrarromantismo e prepara o advento da poesia moderna.
É o principal promotor e um dos oradores do ciclo Conferências do Casino, organizadas em Lisboa, em 1871, com o objetivo de se estudarem reformas conducentes a uma mudança política, literária e social porque “não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo”. Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, título da primeira conferência, é, para Eduardo Lourenço (no Prefácio, da edição Tinta da China, 2008), “o texto que desde o seu nascimento se tornou na referência mítica da cultura portuguesa moderna, ou com mais precisão, o seu próprio ato fundador.
Como poeta publicou em 1881, Sonetos e,  em 1886, Sonetos Completos que, prefaciados por  Oliveira Martins, são apresentados de modo a formarem uma espécie de autobiografia intelectual deste autor. O seu último ensaio filosófico, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX, foi publicado na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós, no primeiro trimestre de 1890.

Fontes: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa, 1990 (Daqui)

segunda-feira, 13 de junho de 2022

"O meu amor não cabe num poema" - Poema de Maria do Rosário Pedreira


 
Albert Henry Collings (English, 1868-1947), The studio mirror
 
 

O meu amor não cabe num poema 


O meu amor não cabe num poema – há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitetura
ou quartos que os gestos não preenchem. 

O meu amor é maior que as palavras, e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto
– a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece. 

O meu amor não se deixa dizer – é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo. 

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome – é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa. 
 
in O Canto do Vento nos Ciprestes, editor: Gótica
 

domingo, 12 de junho de 2022

"Canção do recomeço" - Poema de Lya Luft

 
Harold Harvey (English, 1874-1941), Portrait of the Artist's Wife, 1917 
 


Canção do recomeço 

 
A casa que voltei depois de tantos anos
boia como uma ilha de aguapés na noite
presa por uma raiz a um tempo doce e dolorosa,
que me define.

Na madrugada, caminho pela casa como no fundo do mar
onde essa raiz se finca.
Pelas vidraças, o jardim são algas;
meus filhos dormem em seus quartos como quando
eram meninos:
nossas respirações, como sentimento, fundem-se
neste bojo.

Este é meu lugar aonde voltei depois de tantos anos
como quem, misturando peças dos enigmas mais
arcaicos, montasse laboriosamente o seu quebra-cabeça. 


 Lya Luft, em "Mulher no palco", 1984
 
 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

"Visão de Clarice Lispector" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


 
Cyprien Eugène Boulet (French painter, 1877–1927), Portrait of a lady
 


Visão de Clarice Lispector


Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice.
 
 
[Poema  escrito para homenagear a escritora na sua morte,
in Tempo Brasileiro, n.º 51, Outubro-Dezembro de 1977


Cyprien Eugène Boulet, Elegant woman


"Mas quantas vezes a insónia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos."

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1968)'
 
 

Cyprien Eugène Boulet, Girl in a straw hat, c. 1920 
 

"Se num instante se nasce e num instante se morre, um instante é o bastante para a vida inteira."
 
 
 

terça-feira, 7 de junho de 2022

"O Idílio Suave" - Poema de Guilherme de Almeida

 
 
Antoine Watteau (French Rococo painter, 1684–1721), La Boudeuse, c. 1715–1718
 


O Idílio Suave


Chegas. Vens tão ligeira
e és tão ansiosamente esperada, que enfim,
nem te sentindo o passo e já te tendo inteira,
completamente em mim,
quando, toda Watteau, silenciosa, apareces,
é como se não viesses.

Vens... E ficas tão perto
de mim, e tão diluída em minha solidão,
que eu me sinto sozinho e acho imenso e deserto
e vazio o salão...
E, sem te ouvir nem ver, arde-me em febre a face,
como se eu te esperasse!

Partes. Mas é tão pouco
o que de ti se vai que ainda te vejo o arfar
do seio, e o teu cabelo, e o teu vestido louco,
e a carícia do olhar,
e a tua boca em flor a dizer-me doidices,
como se não partisses!


Guilherme de Almeida
,
in 'Os Melhores Poemas de Guilherme de Almeida, 
São Paulo, 1993'

segunda-feira, 6 de junho de 2022

"A um Poeta" - Poema de Antero de Quental


Gregorio Prieto (1897-1992), Retrato de Ramón Pérez de Ayala (1880-1962), 1924,  
87 x 67 cm. Óleo sobre lienzo. Museo Gregorio Prieto
 


A um Poeta

                                                 Surge et ambula!
 
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate! 
in “Sonetos”

domingo, 5 de junho de 2022

"Lição" - Poema de Noémia de Sousa


João Timane (Maputo, n. 1991), Autorretrato, 2014


Lição


Ensinaram-lhe na missão,
Quando era pequenino:
“Somos todos filhos de Deus; cada Homem
é irmão doutro Homem!”

Disseram-lhe isto na missão,
quando era pequenino.
Naturalmente,
ele não ficou sempre menino:
cresceu, aprendeu a contar e a ler
e começou a conhecer
melhor essa mulher vendida
̶  que é a vida
de todos os desgraçados.

E então, uma vez, inocentemente,
olhou para um Homem e disse “Irmão…”
Mas o Homem pálido fulminou-o duramente
com seus olhos cheios de ódio
e respondeu-lhe: “Negro”.

 Noémia de Sousa,
do livro "Sangue negro"

sábado, 4 de junho de 2022

"O papão" - Poema de Guerra Junqueiro



Hiroshi Furuyoshi
(Japanese, b. 1959), Maya, 2012
 

O papão


 
As crianças têm medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,
Para as levar no bolso ou no capuz dum frade.
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo ao bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme do trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!
 in A Velhice do Padre Eterno


Hiroshi Furuyoshi, Julien, 2012
 

"O medo é um microscópio que aumenta o perigo."
 
 
Hiroshi Furuyoshi, Campbell, 2014. Horror vacui (art)


Horror Vacui

 
O termo Horror Vacui (horror ao vácuo ou o medo do vazio) remonta ao filósofo grego Aristóteles (384 a.C.322 a.C.) que  o usou  para descrever o fenómeno de que a natureza não conhece vácuo “a natureza tem horror ao vácuo”.
Mario Praz (1896–1982, crítico de arte italiano) usou o termo pela primeira vez para descrever o  uso excessivo de representações ou ornamentos  na arte durante a Era vitoriana 
Horror Vacui  é a tendência de um artista preencher uma superfície inteira com detalhes, sem deixar espaço em branco. Linhas, traços, curvas e imagens  ocupam, carregam, tornam o espaço cheio, repleto, maciço, apinhado, opressivo. 
Como traço estético, a história da arte está repleta de páginas acerca de sua origem céltica, islâmica, bizantina ou mesmo viking.
Horror Vacui é um dos princípios estéticos estruturantes do Barroco e do Rococó. (Daqui)
 

quarta-feira, 1 de junho de 2022

"Olha-me rindo uma criança" - Poema de Fernando Pessoa


Albert Chevallier Tayler (English, 1862–1925), Mirror, 1914



Olha-me rindo uma criança


Olha-me rindo uma criança
E a minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca me bastou.

Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que é nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.

Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim…
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.


Fernando Pessoa
,
in Poesia 1918-1930, Assírio & Alvim,
ed.
Manuela Parreira da Silva, Ana Maria de Freitas, Madalena Dine, 2005
Coleção: Obras de Fernando Pessoa