terça-feira, 31 de outubro de 2023

"Poente" - Poema de Alves Redol


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Igreja de Santa Cruz, Santarém, s.d.
 
 

Poente



Final de dia, sereno, tropical.
Laivos rubros no azul do firmamento...
E o Sol lança um beijo maternal
Sobre a Terra – um beijo a seu contento.

Passam negras levando o seu bornal,
Como se fossem levadas pelo vento,
E pirogas, temendo o vendaval,
Atravessam a baía num momento.

A ilha de palhotas e palmeiras,
Junto à ponte, a água em cachoeiras,
Tudo isto, para mim era fatal...

Olhava o mar cheio de ansiedade...
Ia com ele a mais triste saudade:
- A saudade de meus Pais, de Portugal.
 
29 novembro de 1931

Alves Redol
, in Vida Ribatejana


 
 
 
“Querem muitos que o tempo passe, depressa, depressa, e um dia descobrem que o tempo os devorou, sorna e galanteador, nessa luta desigual entre o finito de cada um e o infinito do mundo onde temos a ilusão de mandar no tempo, talvez porque damos corda aos relógios e decidimos se a hora atrasa ou adianta.” 

Alves Redol, in "O Muro Branco", Editorial Caminho, abril de 1997‧
 

Alves Redol, fotografado por San Payo em 1950.
 

Alves Redol

 
Escritor português, natural de Vila Franca de Xira, António Alves Redol nasceu a 29 de dezembro de 1911 e faleceu 29 de novembro de 1969.
Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto.
Filho de um pequeno comerciante ribatejano, obteve um curso comercial e, cedo, teve de se iniciar no mundo do trabalho. Ainda jovem, partiu para Angola à procura de melhores condições de trabalho, mas lá conheceu a pobreza e o desemprego.
De regresso a Portugal, à capital, desenvolveu várias atividades profissionais e enveredou nos meandros da oposição ao Estado Novo ingressando no Partido Comunista.
De início, tornou-se colaborador do jornal O Diabo, mas a sua veia literária acabaria por se manifestar em 1939.
Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas sócio-económicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.
A sua literatura não se caracteriza pela escrita de histórias ficcionadas, mas essencialmente pela abordagem da realidade social e de experiências vividas.
Ao longo de uma longa e coerente produção literária, Alves Redol trouxe para o romance personagens, temas e situações, ignorados pela literatura, postura que lhe valeu, simultaneamente, o êxito junto de um grande público e o ataque impiedoso da crítica, que apontava como deficiências de escrita a linguagem simples da sua prosa e o esquematismo das tramas romanescas.
Acusações que pareciam corroboradas pela despretensão e modéstia literárias manifestadas pelo autor nas epígrafes das suas obras, como sucede em Gaibéus, precedido do aviso de que "Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem".
No prefácio a Barranco de Cegos (Lisboa, 1970), Mário Dionísio compara o destino da obra de Redol ao dos romances de Zola, que ao escolher temas malditos como o operariado e os conflitos sociais, recebeu durante anos a aversão dos críticos, até ser redescoberto em leituras inovadoras que revelaram a estrutura épica dos seus romances e a reformulação de mitos contemporâneos nessa prosa chocante, intensa, por momentos quase surrealista.
De entre a sua obra destacam-se Gaibéus (1939), Fanga (1943), a trilogia do Ciclo Port-Wine (1949-1953) e Barranco de Cegos (1962), porventura o seu romance mais conseguido.
Escreveu também as peças de teatro Forja (1948) e O Destino Morreu de Repente (1967). (daqui)
 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

"Hora de Ponta" - Poema de Rosa Alice Branco


 
 Armando Anjos (Pintor português, 1931-2017), Avenida dos Aliados, Porto, Portugal
 


Hora de Ponta 
 
 
Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito, contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes, a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio. 


Rosa Alice Branco, in "Da Alma e dos Espíritos Animais",
Campo das Letras, 2001
 
 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

"Logos" - Poema de Antero de Quental



Raphael (Italian painter and architect of the High Renaissance, 1483 – 1520), The School of Athens,
1509–1511 (Fresco), 500 cm × 770 cm, Apostolic Palace, Vatican City


Logos
  
                                                                                                    Ao sr. D. Nicolás Salmerón

Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
E, o que é mais, dentro em mim ‑ que me rodeias
Com um nimbo de afetos e de ideias,
Que são o meu princípio, meio e fim...

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas contigo e me passeias
Em regiões inominadas, cheias
De encanto e de pavor... de não e sim...

És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encarar com fronte calma
Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...

Falo-te, calas... calo, e vens atento...
És um pai, um irmão, e é um tormento
Ter-te a meu lado... és um tirano, e adoro-te!


Antero de Quental
, in "Sonetos Completos", 1886
 
 
 


Logos  
 
(Do grego lógos, «razão; palavra»)
 
Nome masculino de 2 números (Substantivos que apresentam uma só forma para o singular e para o plural.)
 

1. A faculdade de raciocinar e de falar, que distingue o ser humano dos outros animais e lhe permite apreender cognitivamente a realidade; razão.

2. Filosofia: na doutrina de Heraclito, princípio cósmico de que derivam a ordem e a racionalidade do universo.
 
3. Filosofia: na doutrina estoica, o princípio que anima a matéria e determina o destino humano.

4. Filosofia: na doutrina neoplatónica, agente mediador entre a realidade sensível e o inteligível.
 
5. Religião [com maiúscula]: no Evangelho de João, a palavra divina, princípio criador identificado com a segunda pessoa da Santíssima Trindade, encarnada em Jesus Cristo.
 
6. Psicanálise: no pensamento junguiano, o princípio da razão e do julgamento. (daqui)
 

sábado, 21 de outubro de 2023

"Uma Cidade" - Poema de Albano Martins




 
Uma Cidade 
 
 
Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito. 

Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de junho.

Uma cidade pode ser
um coração,
um punho. 
 

Albano Martins
, in "Castália e Outros Poemas",
Campo das Letras, 2001 
 

António Ramalho Júnior 
 
 
António Monteiro Ramalho Júnior, pintor português, discípulo de Silva Porto, nasceu em 1858, em Barqueiros, no seio de uma família pobre, e foi muito novo para o Porto, onde trabalhou numa marcenaria, aproveitando os tempos livres para pintar.
Notabilizou-se por quadros de temática realista, onde abundam as paisagens marítimas e os retratos de mulheres e crianças. Entre as obras mais relevantes estão O Lanterneiro e o Retrato de D. Helena Pinto de Miranda.
Enquanto decorador, salientam-se as pinturas feitas para o Palácio Sotto Mayor na Figueira da Foz, os tetos do Teatro Garcia de Orta, em Évora, e a abóbada do Palácio da Bolsa, no Porto.
Ilustrou também páginas da Crónica Ilustrada. Faleceu em 1916.  (daqui)

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

"São Jorge na Penumbra" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


 Raphael (Italian painter and architect of the High Renaissance, 1483 – 1520),
Saint George and the Dragon
, 1505, National Gallery of Art, Washington, D.C.




São Jorge na Penumbra 


 
São Jorge imenso espera o cavalo
que ainda não foi arreado,
ainda não foi raspado,
ainda não foi escolhido
entre os vinte melhores da redondeza.

São Jorge fora de altar
(não cabe nele)
espera o dia da procissão
em canto discreto da Matriz.

São Jorge é meu espanto.
Ainda não vi santo montado.
Santos naturalmente andam a pé,
atravessam rios a vau e a pé,
fazem milagres a pé.
Usam sandálias
de luz e poeira como os deuses
da gravura.
São Jorge usa botas como os fazendeiros
de minha terra.

E não é fazendeiro. São botas de guerra.
São Jorge mata o dragão. Mata os inimigos
de Deus na bacia do Rio Doce?
Fica longamente na penumbra
esperando cavalo e procissão
só um dia no ano: ele é São Jorge
mesmo.
No mais, uma espera colossal.
 

Carlos Drummond de Andrade, Boitempo II. 4.ed.
Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 102.



Gustave Moreau (French artist and an important figure in the Symbolist movement,
 1826–1898), Saint George and the Dragon, c. 1889-1890, National Gallery.
 
 
S. Jorge e o Dragão

 
A história mais conhecida de S. Jorge (Jorge da Capadócia) tem a ver com a morte de um dragão terrível que existia em Silene, na Líbia. Para acalmar a fúria do dragão, os habitantes ofereciam ao monstro duas ovelhas por dia. A certa altura, o dragão tornou-se mais exigente e reclamou um sacrifício humano. A escolha aleatória recaiu sobre a filha única do rei da Líbia.
Nesse momento trágico, S. Jorge apareceu, oferecendo-se para lutar com o dragão e libertar a cidade daquele terrível jugo. Montou o seu cavalo e com uma lança feriu o dragão. Trazendo-o preso para a cidade, matou-o perante todos os habitantes, depois de exigir em troca a sua conversão ao cristianismo.

Existe outra versão da lenda, reclamada pelos habitantes de S. Jorge, perto de Aljubarrota, que conta que S. Jorge era um oficial romano que estava aquartelado naquela região. Tinha por costume mandar os seus soldados dar de beber aos cavalos na "Fonte dos Vales", no ribeiro da mata. Porém, no momento em que os cavalos bebiam, por vezes surgia da fonte um dragão que os devorava. Os soldados, com medo de serem também mortos, recusavam-se a lá voltar. Para acabar com este martírio, S. Jorge dirigiu-se à fonte, deu de beber ao seu cavalo e quando o dragão surgiu, matou-o com a sua lança. (daqui)
 

Gustave Moreau, Self-portrait, 1850. Oil on canvas, 41 x 32 cm,
Musée National Gustave-Moreau, Paris.


Gustave Moreau
 
Gustave Moreau, pintor francês, filho de um arquiteto nasceu no ano de 1826, em Paris. Estudou na École de Beaux Arts da mesma cidade, tendo sido aluno de Picot e de Théodore Chassériau. 
Lecionou posteriormente na dita escola, entre 1892 e 1898, devido à morte do seu amigo Élie Delaunay, procurando enquanto mestre incentivar a originalidade dos alunos. Entre estes últimos contam-se figuras tão relevantes como Georges Rouault e Henri Matisse. 
O seu estilo é marcado pelo misticismo, por uma preferência por temas relacionados com a Antiguidade e por obras renascentistas italianas (que não é estranha à sua estadia em Itália enquanto estudante, mais propriamente na cidade de Roma, entre 1857 e 1859 e na companhia de Degas e Puvis de Chavannes), temas estes dotados de potencial emocional, expressivo e narrativo. É também patente na sua obra a influência do tratamento de paisagem de Leonardo da Vinci e das figuras de Ingres. 
A envolvência presente nos seus quadros, conseguida através da ocupação intensa da superfície por técnicas pictóricas tão variadas como o empastamento e o arranhar, aliada à liberdade imaginativa que proporcionavam temas como Hércules e a Hidra (1876), Édipo e a Esfinge (1864) e Salomé (c. 1876). 
As suas obras foram expostas em eventos como o Salon de 1876 e, em 1886, na Goupil Gallery, em Paris. Esta foi a última exposição dos seus trabalhos, onde apresentou sessenta e cinco ilustrações das fábulas de La Fontaine. 
Pela fuga aos temas quotidianos preferidos pelos impressionistas, por exemplo, e pelo intenso apelo à imaginação, à emoção e aos sentidos presente nas suas pinturas, tornou-se uma das figuras de inspiração para os simbolistas, juntamente com Mallarmé e Odilon Redon, chegando inclusivamente a fazer parte de alguns grupos desta tendência enquanto membro honorífico.
Grande parte do acervo das suas obras e dos objetos que lhe pertenceram encontram-se no Musée Gustave Moreau, em Paris. (daqui)
 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

"7" - Poema de Abgar Renault


Lorenzo Lotto (Italian painter, draughtsman, and illustrator, c.1480 - 1556/1557), Portrait of a young man,
or Portrait of a gentleman in his study (Ritratto di giovane gentiluomo), c.1530-1532, 
oil on canvas,
Gallerie dell'Accademia, Venice, northern Italy.
 

7
 
Este poema exigiu 7 folhas de papel.
Para escrevê-lo já fumei raivosamente 7 cigarros
e rasguei-o 7 vezes.
7 é um mau número: é o número 13 da minha vida.
Segundo várias aritméticas, não é divisível por 2,
e eu tenho horror a todos os números (e a todas as coisas)
não divisíveis por 2.
Sexta-feira, 7...
Isto hoje não acaba bem...
Vai a chuva ficar chovendo para sempre.
O meu relógio vai continuar disparado,
marcando horas inexistentes.
Ah se os ponteiros andassem para trás!
Ah se ao menos a chuva chovesse para cima
e eu fizesse destes nulos versos
uma folha noturna e molhada!

Abgar Renault (1901-1995), A outra face da lua, 1983.
In Renault, Abgar. Obra poética. Rio de Janeiro: Record, 1990.

 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

"Temporal" - Poema de Lya Luft



Louisa Matthíasdóttir (Icelandic-American painter, 1917-2000),
Self-portrait, 1984 
 

 

 Temporal

O tempo rasteja no telhado
depois de se fazerem filhos e dívidas,
e as dúvidas brotarem nas frestas
da porta.

O tempo trança bordados no rosto
e manchas na mão,
mas a gente não muda: ainda chove
no escuro e um pássaro começa a cantar,
um amigo morre antes dos quarenta anos,
e nossa mãe, com quase cem, nem está
nem se ausenta.
Como tudo o mais,
o tempo não tem explicação:
corrói e transfigura, expande
ou empobrece, conforme a escolha
de cada um.

(Eu, com medo e susto,
escolho a multiplicação.)


Lya Luft, em "Para não dizer adeus", 2005.

 


Louisa Matthíasdóttir (Icelandic-American painter, 1917-2000),
Self-portrait with Dark Coat, 1991



Remate para qualquer poema

 
Passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se refletiram desertaram


Ruy Belo
, Todos os Poemas I,
Assírio & Alvim
 
 
Edição/reimpressão: 10-2004
Editor: Assírio & Alvim
 
O volume «Todos os Poemas», editado em 2000 (Assírio & Alvim), foi reeditado em três volumes, respeitando a organização que o autor tinha originalmente concebido. Esta edição segue o estabelecimento de texto efetuado por Gastão Cruz e Teresa Belo. A revisão do texto agora concluída obedece às normas ortográficas vigentes, exceto nos casos em que as opções do autor são um desvio intencional a essas normas, passando o presente volume a constituir a edição de referência da poesia de Ruy Belo.
 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

"O poder das palavras em tempo de peste" - Poema de Eugénio Lisboa


Juan Manuel Blanes (Pintor uruguaio, 1830-1901), Un episodio de la fiebre amarilla
 en Buenos Aires, 1871, óleo sobre tela,  Museo Nacional de Artes Visuales.



O poder das palavras em tempo de peste


 
As palavras o que podem? Se pesam
demais e vão além do que é preciso,
ofendem a subtileza e lesam
o valor do que deve ser conciso.

Se ficam aquém do que é necessário
e dizem menos do que foi sentido,
se o pensamento dito sai precário,
todo o esforço de dizer foi perdido.

Face a uma grande calamidade,
dilúvio, peste, fome ou guerra,
as palavras perdem vitalidade
e tremem do mal que assola a terra.

As palavras podem só o que podem
e sugerem, das nossas emoções,
uma leve sombra – e mal acodem
ao tumulto das nossas aflições.

Porém, as palavras são o que temos
e só com elas ao nosso dispor
iremos fazer o que podemos:
dar ao nosso mundo alguma cor.


Eugénio Lisboa, in “Poemas em Tempo de Peste”
 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

"Amaritudo" - Poema de Antero de Quental



James Holland (English painter, 1799-1870), Vila do Conde, Portugal, 1837 (Watercolour).


Amaritudo


Só por ti, astro ainda e sempre oculto,
Sombra do Amor e sonho da Verdade,
Divago eu pelo mundo e em ansiedade
Meu próprio coração em mim sepulto.

De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
Levo as flores d'uma íntima piedade.
Vejo os votos da minha mocidade
Receberem somente escárnio e insulto.

À beira do caminho me assentei...
Escutarei passar o agreste vento,
Exclamando: assim passe quando amei! —

Oh minh'alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento, 
Se isto se chama aurora e juventude?


Antero de Quental, in "Sonetos"

 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

"Silêncio" - Poema de José Agostinho Baptista



Stanhope Forbes
 (British artist, 1857–1947), Abbey Slip, 1921



Silêncio
 

Uma noite,
quando o mundo já era muito triste,
veio um pássaro da chuva e entrou no
teu peito,
e aí, como um queixume,
ouviu-se essa voz de dor que já era a tua
voz,
como um metal fino,
uma lâmina no coração dos pássaros.

Agora,
nem o vento move as cortinas desta casa.
O silêncio é como uma pedra imensa,
encostada à garganta.


José Agostinho Baptista



terça-feira, 3 de outubro de 2023

"Quando fecho a porta" - Poema de Lya Luft

 

Richard Edward Miller (American Impressionist painter, 1875 –1943)



Quando fecho a porta

Na parede atrás de minha mesa,
ombro a ombro,
a menina e seu pai, em dois retratos,
conversam sobre o que há no escuro
da noite, como entender o mundo,
e por que as montanhas eram tão azuis.
Quando apago a luz e fecho a porta,
eles riem baixinho desta que hoje sou:
ainda tão distraída e desassossegada,
cheia de encantamento, susto e assombro.

(E devem dizer, meneando as cabeças:
Parece que ela nunca vai mudar.)

Lya Luft, em "Para não dizer adeus", 2005.
 
 
Richard Edward Miller (American Impressionist painter, 1875 –1943)


"O amor é o sentimento dos seres imperfeitos, posto que a função do amor é levar o ser humano à perfeição."

Aristóteles, citado por Maria Eugênia de Castro em "O Livro dos Signos", página 99
. (daqui)
 
 

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

"Dois de Julho" - Poema de Tobias Barreto


Antônio Parreiras (Pintor, desenhista, ilustrador, escritor e professor brasileiro, 1860–1937), 
O Primeiro Passo para a Independência da Bahia
, 1931Palácio Rio BrancoSalvador, Bahia

[A Independência da Bahia também chamada de Independência do Brasil na Bahia, foi um movimento que, iniciado em 19 de fevereiro de 1822 e com desfecho em 2 de julho de 1823, motivado pelo sentimento federalista emancipador de seu povo, terminou pela inserção da então província na unidade nacional brasileira, consolidando a Independência do Brasil.] (daqui)


Dois de Julho

 
Na frente dos belos dias
Que trajam mais viva luz,
Desfilando entre harmonias
No vasto império da cruz,
Passa um dia sublimado,
Qual guerreiro namorado,
Valente, bravo e gentil,
Que traz a glória estampada,
Na face meio embaçada
Pelo alento do fuzil.

Neste dia, sempre novo,
Entre os aplausos do mar,
Entre os ruídos do povo,
Vai a cidade falar...
Atriz majestosa e bela,
Falando só e só ela
Diante de duas nações,
Representa um alto feito,
Que arranca brados do peito
De emudecidos canhões.

1861

Tobias Barreto
, in Dias e Noite, 1881


domingo, 1 de outubro de 2023

"Esta é a forma fêmea" - Poema de Walt Whitman


Joan Sala i Gabriel (Spanish painter, 1867-1918), Femme élégante et son cavalier.



Esta é a forma fêmea



Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a ação correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jatos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geleia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e ativa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro, eu vejo
Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.


Walt Whitman, in "Leaves of Grass
"Folhas de Relva", tradução de Rodrigo Garcia Lopes, 
Editora Iluminuras, 2005.
 
 
Walt Whitman (1819–1892), "Folhas de Relva",
Trad. de Rodrigo Garcia Lopes, Editora Iluminuras, 2005.


Leaves of Grass (Brasil: Folhas de Relva / Portugal: Folhas de Erva) é a magnum opus do poeta estadunidense Walt Whitman, editada em 1855, no Brooklyn, Nova Iorque. A obra teve sete edições entre os anos de 1855 e 1892 e apenas a última dela, a "do leito de morte", era autorizada pelo autor.
Folhas de Relva / Folhas de Erva ainda é considerada uma das grandes obras americanas do século XIX e estabelece Whitman como o pai da poesia norte-americana moderna com este livro. 
Com esta obra, Walt Whitman inventou um novo tipo de poesia para uma nova nação. O livro foi primeiro visto como bizarro e obsceno - um crítico disse que o autor deveria ser açoitado em público. 
Através de revisões e adições ao livro até à sua morte, Whitman atingiu o seu objetivo, criando uma nova Bíblia para poetas americanos. (daqui)