Poeta
Eu era pequena,
Escola primária,
Inocente,
Mas curiosa nas palavras.
Peguei nos lápis,
Aqueles,
Com todas as paletas de cores,
Amarelo-torrado,
Azul-marinho,
Cor…
Com o lápis na mão,
Sem nem esconder a minha confusão,
Olhei para o lápis, e para mim,
Que eu ainda era da altura de a língua afiar,
Tocar os sinos presos na garganta,
Dizer o que sinto e me espanta:
— Professora.
— Sim.
— Que raio é um lápis cor de pele?
Levei uma reprimenda, uma criança de tão tenra idade
A questionar a autoridade,
E olhava para o lápis,
Olhava para a minha pele,
Olhava fixamente para aquele lápis cor… de pele.
Poeta.
Naquele dia, desisti de falar sobre unicórnios
E fazer citações,
Porque ser-se poeta é falar de emoções,
Mas bem podia citar Luís de Camões, Fernando Pessoa
Sem dizer um poeta preto.
Pensei em então citar Martin Luther King ou Nelson Mandela
Só para ficar bem na tela.
Ignorar o vazio do mundo,
Fazer dos ouvidos mudos,
Porque preferem um poema com o sol no canto do papel,
As nuvens pintadas a azul,
Sem a dor no fundo.
Falar do que incomoda?
Andar a afiar a língua,
O que é que isso importa?
Porque naquele dia fizeram de mim uma
Poeta cor de pele,
De lápis cinza aguçado acastanhado,
No nevoeiro dos mares
Dantes e sempre navegados,
A minha língua é o lápis
Onde escrevo a cor dos meus sentimentos,
Quem vai perder tempo a escrever versos de amor
Com estes tempos, estas tempestades, estes sismos, ismos
E eu sei, podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo
Mas preferiram o quê?
Que em vez do lápis a carvão pegasse uma arma na mão?
Que caísse em tantas outras estatísticas, noticiários?
Que me escondesse por detrás dos armários?
Que nunca tivesse chegado a terminar o secundário?
“Falas tão bem português”, fecho os olhos a engolir todos os clichês.
“Mas não ouves kizomba, ah, claro que sabes dançar”, dizem enquanto meto os Arctic Monkeys a dar.
E já se sabe, quanto mais talento, mais se tolera a cor, porque a Beyonce pode ser preta afinal de contas o que importa, é o interior.
Ouço as palavras a fazer ricochete,
Num corpo em bala,
Eu vejo,
De sol a sol,
Mantemo-nos fortes,
Que as mães têm calos de pensar,
Os pais as mãos a esbranquiçar.
Fazemo-nos de fortes,
Que mais poderíamos ser?
Numa sociedade de moldes,
A fingir entender,
A rir no eco a seguir,
A pensar que Black Lives Matter é mais um post para curtir.
Mas Muxima Uamiê está sofrendo,
Respira,
Mãos ao alto, levanta a poesia,
Esta poeta cor de pele,
já pintou a carta de alforria.
Alice Neto de Sousa, nascida no meio do ano, no meio do mês, de 1993, poeta entre outros ofícios, é uma escritora nascida em Portugal, com raízes em Angola, Licenciada e Mestre em Reabilitação Psicomotora pela Faculdade de Motricidade Humana.
Autora de diversos poemas dispersos em antologias em Portugal e no Brasil, em 2021, viu o seu poema "Terra" dar nome à coletânea "Do que ainda nos sobra da guerra", publicado pela editora brasileira Ipêamarelo.
No início de ano de 2022, o poema "Poeta" da sua autoria, escrito a propósito da 1ª edição PowerList 100 da Bantumen, conquistou as redes sociais e tem voado pelo mundo.
Alice foi poeta convidada para a abertura solene das comemorações oficiais dos 50 anos do 25 de abril, onde apresentou o poema inédito "Março". Participou ainda na 20ª edição da Flip - Festival Literário Internacional de Paraty, em 2022.
Tem poemas no jornal Mensagem de Lisboa, faz parte da bolsa de poetas da associação cultural A Palavra, foi presença assídua no programa televisivo "Bem-Vindos" na RTP África (2021 a 2023). Poeta Residente na Fundação Calouste Gulbenkian (2024) e atualmente aprimora a palavra e a poesia nos palcos, procurando "afiar a língua" para temas sociais emergentes.
Inquieta por natureza nas palavras e nas escolhas, gosta de liberdade de pensar e de sentir.
Distinções
2024 Fundação Calouste Gulbenkian, Poeta em Residência.
2023 DGLAB, Bolsa de Criação Literária 2022, selecionada na modalidade de Poesia.
2022
BANTUMEN, PowerList100, distinguida como uma das cem personalidades mais influentes da lusofonia.
(daqui)