quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

"Ainda há pouco prometiam o vento" - Poema de Nuno Júdice


Thomas Cole (English-born American artist and the founder of the Hudson River School art movement,
 1801–1848), The Oxbow, View from Mount Holyoke, Northampton, Massachusetts,
 after a Thunderstorm, 1836. The Metropolitan Museum of Art, New York.
 


Ainda há pouco prometiam o vento

 
Ainda há pouco prometiam o vento
para amanhã; e a chuva, que vem com o vento,
pode vir também amanhã, quando o céu carregado
de nuvens atravessar o continente, em
direção não sei aonde. E onde irei eu
estar, amanhã, quando essas nuvens tiverem
desaparecido, e só as árvores
com os ramos partidos lembrarem que o
vento lhes roubou as folhas? É possível que
eu possa vir a estar entre essas folhas,
ou debaixo delas, espessas com a humidade
da terra, como se fossem um manto; mas
não sei se era isso que o vento me queria dizer
quando me falava, por entre as frinchas da
porta, e só os ruídos secretos da noite
lhe respondiam. Talvez por isso, deixei-me
ficar acordado. Nem sempre se podem ouvir
esses diálogos; nem adivinhar, na manhã
futura, o destino previsível de um ser.


Nuno Júdice, in "Meditação sobre ruínas", 1995. 
 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

"Transforma-se a coisa escrita no escritor" - Poema de Manuel António Pina



Louis Moeller (American genre painter, 1855–1930), A Discussion, ca. 1890–95,
Metropolitan Museum of Art, New York.


Transforma-se a coisa escrita no escritor


Isto está cheio de gente
falando ao mesmo tempo
e alguma coisa está fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em qualquer lugar.

(Chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto;)
o escritor é uma sombra de uma sombra
o que põe-o fora de si
e de tudo o que não existe.

Aquele que quer saber
tem o coração pronto para o
roubo e para a violência
e a alma pronta para o esquecimento


Manuel António Pina
,
Aquele que quer morrer, 1978.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

"Ao Sol" - Poema de Adelina Lopes Vieira

 


Amrita
 (Pintora brasileira, n. 1961), Camponesas, 2010, Galeria Don Quixote.


Ao Sol


A natureza em festa ao sol desata
As grinaldas de rubras trepadeiras;
Revolve os seus diamantes a cascata
Ao sol, que doira as relvas e as roseiras.

O mar cantando rola ondas de prata,
Brilham as alterosas cachoeiras;
Ao sol, a abelha célere arrebata
Mel e perfume à flor das laranjeiras.

Pombas passam no azul com voo incerto;
E ao sol, sem medo à intensa claridade,
Na ramagem as aves dão concerto.

Tudo na terra exulta! a Humanidade
Alegra, expande, aquece o seio aberto,
Ao sol sem mancha, ao sol da Liberdade. 


Adelina Lopes Vieira
(Escritora, poeta, contista, teatróloga e educadora brasileira, 1850 - 1923) 

 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

"Comer uma laranja" - Poema de Luís Filipe Parrado


Inês Dourado (Pintora portuguesa, n. 1958), 
Num Laranjal em Silves (Portugal), 2020.


Comer uma laranja


Comer uma laranja
é como ingerir o próprio sol,

com a boca cheia de luz
não há portanto
espaço
para palavras
sobre mim. 


Luís Filipe Parrado, Entre a Carne e o Osso,
Lisboa: Edições Língua Morta, 2012.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

"Veneza" - Poema de Aleksandr Blok



Ivar Kamke
(Pintor sueco, 1882-1936), Lavadeiras no canal - Veneza, 1920.
 

Veneza


O barulho da vida já não dura.
A maré de inquietudes se quebranta.
E no veludo negro o vento canta
Minha vida futura.

Talvez despertarei noutro lugar,
Quem sabe nesta terra entristecida,
E algumas vezes hei de suspirar
Pensando em sonho nesta vida?

Mercador, padre, arrais, neto de um doge,
Quem me fará viver? Que criatura
Há de forjar com minha mãe futura
Na noite escura a vida que me foge?

Quem sabe até, ao escutar o canto
Da jovem veneziana, comovido,
O meu futuro pai por entre o encanto
Da canção já me tenha pressentido?

Quem sabe em algum século vindouro
A mim, criança, a sorte me consente
Abrir as pálpebras, tremulamente,
Junto à coluna do leão de ouro?

Mãe, o que canta este áfono instrumento?
Talvez a fantasia já te embale
E me protejas com teu santo xale
Da laguna e do vento?

Não! O que é, o que foi – tudo está vivo!
Fantasias, visões, ideias – tudo!
A onda do oceano recidivo
As despeja na noite de veludo!


Aleksandr Blok
Tradução de Augusto de Campos, in Poesia da recusa,
Perspectiva, São Paulo, 2006.
 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

"Quando eu partir" - Poema de Cruz e Sousa


Alberto da Veiga Guignard (Pintor e professor brasileiro, 1896-1962), 
Paisagem de Ouro Preto, 1958.



Quando eu partir


Quando eu partir, que eterna e que infinita
há de crescer-me a dor de tu ficares;
quanto pesar e mesmo que pesares,
que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,
que sentimento, grande como os mares,
que sombra e luto pelos teus olhares
onde o carinho mais feliz palpita…

Nesse teu rosto da maior bondade
quanta saudade mais, que atroz saudade…
Quanta tristeza por nós ambos, quanta,

quando eu tiver já de uma vez partido,
ó meu amor, ó meu muito querido
Amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa! 


Cruz e Sousa, "O livro Derradeiro", 1961.
 
["O livro Derradeiro" é uma publicação póstuma de poemas de autoria de Cruz e Sousa, contendo inéditos e outros publicados anteriormente apenas pela imprensa. Sua primeira publicação se deu em 1945, sendo expandida novamente em 1961.] 

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

"Homens à beira-mar" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Harold Harvey (British artist associated with the Newlyn School art movement, 1874–1941),
The Longships Lighthouse, Land's End, 1936. 



Homens à beira-mar


Nada trazem consigo. As imagens
Que encontram, vão-se delas despedindo.
Nada trazem consigo, pois partiram
Sós e nus, desde sempre, e os seus caminhos
Levam só ao espaço como o vento.

Embalados no próprio movimento,
Como se andar calasse algum tormento,
O seu olhar fixou-se para sempre
Na aparição sem fim dos horizontes.

Como o animal que sente ao longe as fontes,
Tudo neles se cala pra escutar
O coração crescente da distância,
E longínqua lhes é a própria ânsia.

É-lhes longínquo o sol quando os consome,
É-lhes longínqua a noite e a sua fome,
É-lhes longínquo o próprio corpo e o traço
Que deixam pela areia, passo a passo.

Porque o calor do sol não os consome,
Porque o frio da noite não os gela,
E nem sequer lhes dói a própria fome,
E é-lhes estranho até o próprio rastro.

Nenhum jardim, nenhum olhar os prende.
Intactos nas paisagens onde chegam
 
Só encontram o longe que se afasta, 
 O apelo do silêncio que os arrasta,
As aves estrangeiras que os trespassam,
E o seu corpo é só um nó de frio
Em busca de mais mar e mais vazio.


Sophia de Mello Breyner Andresen
,
 in "Poesia", 1944.
 


Harold Harvey, Whiffing in Mount's Bay, 1904.
 
 
Atlântico

 
Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in "Poesia", 1944.
 

domingo, 16 de fevereiro de 2025

"Zoologia: o rouxinol" - Poema de Nuno Júdice

 

Johan Krouthén (Swedish artist, 1858-1932), View of a Garden, Linköping
(Portrait of army surgeon Ernst Boman and his family), c. 1887-1888,
 Nationalmuseum.


Zoologia: o rouxinol



Um rouxinol ocupa o centro da tua cabeça,
como se estivesse numa gaiola. Podia sair
pelos teus olhos, e voar de roda dos teus
cabelos, num movimento de carrossel. Podias
apanhá-lo com as mãos, e tocar as suas
asas, como se fossem um teclado, fazendo
ouvir a música do céu. Mas o rouxinol
não sai. Prefere que eu espreite para o
fundo dos teus olhos e o descubra, no
centro da tua cabeça, onde o guardas,
para que só eu possa ouvir o seu canto,
e imaginar as voltas que ele daria pelos
teus cabelos, se saísse de dentro de ti, e
me fizesse ouvir a música do céu quando
o prendesses com as mãos, para me dares
esse pássaro que não te quer deixar.


Nuno Júdice 

(Ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português, 1949–2024) 
 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

"Quinquagésimo ano" - Poema de Manuel António Pina

 
Claude Monet (French painter and founder of impressionist painting, 1840–1926).
Garden at Sainte-Adresse
(Terrasse à Sainte-Adresse), 1867.


Quinquagésimo ano



São muitos dias
(e alguns nem tantos como isso…)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que, no entanto, não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
e nem por isso o mundo parece
menos terreno ou impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sítio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida. 


Manuel António Pina, Atropelamento e fuga, 2001.
 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

"Um corpo que se ama" - Poema de António Ramos Rosa

 

Maximilian Pirner (Czech painter, 1853–1924), At the Heights, 1883–84.
 

Um corpo que se ama

 
Para quem o deseja e quem o ama
um corpo é sempre belo no seu esplendor
e tudo nele é belo porque é sagrado
e, mesmo na mais plena posse, inviolável.

Um corpo que se ama é uma nascente viva
que de cada poro irrompe irreprimível
e toda a sua violência é a energia ardente
que gerou o universo e a fantasia dos deuses.

Tudo num corpo que se ama é adorável
na integridade viva de um mistério
na evidência assombrosa da beleza
que se nos oferece inteiramente nua.

Não há visão mais lúcida do que a do desejo
e só para ela a nudez é sagrada
como uma torrente vertiginosa ou uma oferenda solar.
Esse olhar vê-o inteiro na perfeição terrestre.


António Ramos Rosa
, em "Rosa intacta".
Editora Labirinto, 2007.
 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

"Poeta" - Poema de Alice Neto Sousa

Poeta 


Eu era pequena,
Escola primária,
Inocente,
Mas curiosa nas palavras.
Peguei nos lápis,
Aqueles,
Com todas as paletas de cores,
Amarelo-torrado,
Azul-marinho,
Cor…
Com o lápis na mão,
Sem nem esconder a minha confusão,
Olhei para o lápis, e para mim,
Que eu ainda era da altura de a língua afiar,
Tocar os sinos presos na garganta,
Dizer o que sinto e me espanta:
— Professora.
— Sim.
— Que raio é um lápis cor de pele?
Levei uma reprimenda, uma criança de tão tenra idade
A questionar a autoridade,
E olhava para o lápis,
Olhava para a minha pele,
Olhava fixamente para aquele lápis cor… de pele.
Poeta.
Naquele dia, desisti de falar sobre unicórnios
E fazer citações,
Porque ser-se poeta é falar de emoções,
Mas bem podia citar Luís de Camões, Fernando Pessoa
Sem dizer um poeta preto.
Pensei em então citar Martin Luther King ou Nelson Mandela
Só para ficar bem na tela.
Ignorar o vazio do mundo,
Fazer dos ouvidos mudos,
Porque preferem um poema com o sol no canto do papel,
As nuvens pintadas a azul,
Sem a dor no fundo.
Falar do que incomoda?
Andar a afiar a língua,
O que é que isso importa?

Porque naquele dia fizeram de mim uma
Poeta cor de pele,
De lápis cinza aguçado acastanhado,
No nevoeiro dos mares
Dantes e sempre navegados,
A minha língua é o lápis
Onde escrevo a cor dos meus sentimentos,
Quem vai perder tempo a escrever versos de amor
Com estes tempos, estas tempestades, estes sismos, ismos
E eu sei, podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo
Mas preferiram o quê?
Que em vez do lápis a carvão pegasse uma arma na mão?
Que caísse em tantas outras estatísticas, noticiários?
Que me escondesse por detrás dos armários?
Que nunca tivesse chegado a terminar o secundário?

“Falas tão bem português”, fecho os olhos a engolir todos os clichês.
“Mas não ouves kizomba, ah, claro que sabes dançar”, dizem enquanto meto os Arctic Monkeys a dar.
E já se sabe, quanto mais talento, mais se tolera a cor, porque a Beyonce pode ser preta afinal de contas o que importa, é o interior.

Ouço as palavras a fazer ricochete,
Num corpo em bala,
Eu vejo,
De sol a sol,
Mantemo-nos fortes,
Que as mães têm calos de pensar,
Os pais as mãos a esbranquiçar.

Fazemo-nos de fortes,
Que mais poderíamos ser?
Numa sociedade de moldes,
A fingir entender,
A rir no eco a seguir,
A pensar que Black Lives Matter é mais um post para curtir.

Mas Muxima Uamiê está sofrendo,
Respira,
Mãos ao alto, levanta a poesia,
Esta poeta cor de pele,
já pintou a carta de alforria. 


 
 
 
Alice Neto de Sousa (daqui)

Alice Neto de Sousa, nascida no meio do ano, no meio do mês, de 1993, poeta entre outros ofícios, é uma escritora nascida em Portugal, com raízes em Angola, Licenciada e Mestre em Reabilitação Psicomotora pela Faculdade de Motricidade Humana.
Autora de diversos poemas dispersos em antologias em Portugal e no Brasil, em 2021, viu o seu poema "Terra" dar nome à coletânea "Do que ainda nos sobra da guerra", publicado pela editora brasileira Ipêamarelo.
No início de ano de 2022, o poema "Poeta" da sua autoria, escrito a propósito da 1ª edição PowerList 100 da Bantumen, conquistou as redes sociais e tem voado pelo mundo.
Alice foi poeta convidada para a abertura solene das comemorações oficiais dos 50 anos do 25 de abril, onde apresentou o poema inédito "Março". Participou ainda na 20ª edição da Flip - Festival Literário Internacional de Paraty, em 2022.
Tem poemas no jornal Mensagem de Lisboa, faz parte da bolsa de poetas da associação cultural A Palavra, foi presença assídua no programa televisivo "Bem-Vindos" na RTP África (2021 a 2023). Poeta Residente na Fundação Calouste Gulbenkian (2024) e atualmente aprimora a palavra e a poesia nos palcos, procurando "afiar a língua" para temas sociais emergentes.
Inquieta por natureza nas palavras e nas escolhas, gosta de liberdade de pensar e de sentir.

Distinções
 
2024 Fundação Calouste Gulbenkian, Poeta em Residência.
2023 DGLAB, Bolsa de Criação Literária 2022, selecionada na modalidade de Poesia.
2022 BANTUMEN, PowerList100, distinguida como uma das cem personalidades mais influentes da lusofonia. (daqui)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

"Inventário de razões para se ser gato" - Poema de Eugénio Lisboa



Horatio Henry Couldery (English animal painter and illustrator, 1832 - 1918),
Visiting Time, oil on canvas, 76.8 x 64.8 cm.
 
 

 Inventário de razões para se ser gato


Os gatos nunca sonham com impérios,
não trocam nunca uma boa soneca
pela honra de dirigir ministérios
ou pelo direito a usar beca.

Os gatos não cambiam um petisco
por um Rolls-Royce ou por um Ferrari.
Se pretendem estender-lhes um isco,
mostrem-lhes um prato de calamari.

Os gatos têm ambições modestas:
cama, mesa e roupa bem lavada,
de vez em quando, umas lindas festas,

e, de preferência, não fazer nada!
Se o gato em qualquer nicho cabe,
o gato, acima de tudo, sabe!

31.12.2023

Eugénio Lisboa

(Ensaísta e crítico literário português, 1930 – 2024)  

 

Horatio Henry Couldery, Curiosity, 1893. Oil on canvas, 60 x 83 cm. 
 


Olhos oblíquos


De onde vieram
com seus olhos oblíquos
seus olhos de seda e luz?
Vieram de um misterioso país
oblíquo
onde só podem entrar
os poetas com seus veleiros
e os homens que amam os gatos.


Roseana Murray
,
"Falando de Pássaros e Gatos", 1990.
 
 
“Gatos são poemas ambulantes.”

Fonte: https://citacoes.in/autores/roseana-murray/

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

"Recado" - Poema de Al Berto

 

 
Jimmy Ernst (American painter born in Germany, 1920–1984), Surreal V, 1940.

 

Recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer — vai por esse campo
de crateras extintas — vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo — deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração — ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna — o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira — não esqueças o ouro
o marfim — os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço


Al Berto
, Horto de Incêndio, 1997.

 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

"A laranja que escolheste" - Poema de Fernando Pessoa


Damião Martins (Pintor cubista brasileiro desde 1978), Colheita de laranjas, s. d.



A laranja que escolheste


A laranja que escolheste
Não era a melhor que havia.
Também o amor que me deste
Qualquer outra mo daria.

s.d. 

Fernando Pessoa
, Quadras ao Gosto Popular.
Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).

Damião Martins, Colheita de laranjas, s.d.
 

O meu pomar


Se eu tivesse um pomar, um pequeno pomar que fosse, não lhe poria grades à roda, como os outros proprietários. Não poria, a guardá-lo, um desses cães enormes, rancorosos, que andam sempre rondando os pomares...
O meu pomar seria assim: todo aberto, para todos. E, quando o outono chegasse e as árvores ficassem cheias de frutos amarelos e vermelhos, nenhum pobrezinho teria fome, nenhuma criança choraria de sede, passando pelo meu pomar...
E, no inverno, ainda haveria lá onde alguém se abrigasse, quando chovesse muito ou fizesse muito frio...
E se eu tivesse um pomar, ele estaria sempre em festa, cheio de borboletas e de pássaros...
Como eu seria feliz, se tivesse um pomar!

Cecília Meireles, "Criança meu amor"
 
 
 
Cecília Meireles, "Criança meu amor"
Editora: GLOBAL - 3ª edição
 

Sinopse

O livro Criança, meu amor… é uma coletânea de textos dirigidos, sobretudo, às crianças. Nesta obra, publicada pela primeira vez em 1924, Cecília Meireles, proporciona aos leitores a alquimia do imaginário, do humor e da fantasia. Bonequinha, bonequinha/ Dorme, dorme sossegada/ Dorme, dorme filha minha! Bonequinha muito amada,/ Oxalá que embalem crianças/Como tu és embalada!… De forma singela e em doses precisas, a autora revaloriza a noção de brinquedo, discorre sobre bondade, respeito e amor ao trabalho, à natureza e ao próximo. Por ter sido professora, Cecília emprega com sabedoria sua sensibilidade pedagógica a ponto de permitir que sua obra seja sempre atual, independentemente da época. Por essa razão, Criança, meu amor… vem encantando várias gerações de leitores. (daqui)
 
 
Damião Martins, Colheita de laranjas, s.d.
 

"Na laranja e na couve
 picada – as cores brasileiras 
da feijoada."
 (Poeta brasileiro, 1928 - 2012)

domingo, 9 de fevereiro de 2025

"Soneto ao pai" - Edival Lourenço


João Baptista da Costa (Pintor, professor e ilustrador brasileiro, 1865 - 1926), Paisagem, s.d..
 

Soneto ao pai


Oh! Fluida infância! Pátria faz-de-conta!
Pobre de coisas com riqueza d’alma:
palhoça, vento, verde, aves e calma
para fruir a vida em toda monta.

Aquele ano choveu além da conta
e abriu-se um olho d’água em nossa casa
que meu pai ajudou, com fina vaza,
fazer o arroio: do Araguaia ponta.

Encanta-me o sentido que propala.
Maior riqueza, sei, ninguém encontra:
o nascente Araguaia nos escala.

A vida tem o rio a inspirá-la:
mereja, empoça, entorna, enfim desponta
promissora qual jorro de olho d’água!


Edival Lourenço
(Escritor romancista, poeta, cronista e contista brasileiro, n. 1952) 
 

sábado, 8 de fevereiro de 2025

"Que pena não ser eu " - Poema de José Gomes Ferreira


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Costa d'Oiro, Lagos, Algarve, s.d.

 

Que pena não ser eu


Que pena não ser eu um dos primeiros
homens a inventar as palavras,
para criar a verdade!

Encontrei-as já todas feitas
umas doces, outras amargas,
estas rudes, aquelas imperfeitas,
acasos de som
– mar de espuma de gaivotas e vagas.

Com este cheiro tão bom
a realidade.


José Gomes Ferreira
(Escritor e poeta português, 1900 - 1985) 
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

"Mania do suicídio" - Poema de Rui Knopfli

 

Real Bordalo (Artista plástico português, 1925 - 2017), O Elétrico, Ribeira de Sintra - Sintra.


 Mania do suicídio


Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos elétricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há elétricos. 
 
 
Rui Knopfli, Obra Poética, 2003
 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

"Preparativos de Viagem" - Poema de Nuno Júdice

 


Vilhelm Hammershøi (Danish painter, 1864-1916),
Double portrait of the artist and his wife seen through a mirror, 1911.



Preparativos de Viagem


Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.


Nuno Júdice, in "Navegação de Acaso"
Publicações Dom Quixote 
 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

"Soneto a Helena" - Poema de Pierre de Ronsard

 

  Portrait of a Lady, c. 1460, National Gallery of Art, Washington, D.C.


Soneto a Helena 


Quando fores bem velha, à noite, à luz da vela
Junto ao fogo do lar, dobando o fio e fiando,
Dirás, ao recitar meus versos e pasmando:
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela.

E entre as servas então não há de haver aquela
Que, já sob o labor do dia dormitando,
Se o meu nome escutar não vá logo acordando
E abençoando o esplendor que o teu nome revela.

Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,
Entre as sombras sem fim procurando repouso:
E em tua casa irás, velhinha combalida,

Chorando o meu amor e o teu cruel desdém.
Vive sem esperar pelo dia que vem;
Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida.


Pierre de Ronsard (1524-1585)
Tradução de Guilherme de Almeida
In Antologia de poetas franceses: do século XV ao século XX.
(Organização R. Magalhães Júnior; vários tradutores.)
Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1950.

 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

"Café do Molhe" - Poema de Manuel António Pina


  (The Rowers' Lunch), c. 1875, Art Institute of Chicago.
 
 

Café do Molhe


Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

por que a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.
 
 
 Manuel António Pina,
"Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", 1999. 
 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

"Elegia" - Poema de Múcio Leão


Elisabeth Wandel (Danish painter, 1850–1926), A summer day in August 
with a view fom the hills at Hjortekjærshuset, 1893



Elegia

Um dia, amor, tudo o que existe agora,
Tudo o que forma o nosso grande orgulho,
A pureza e o esplendor de nossas almas,
Terá morrido, sem deixar lembrança,
Na velha terra indiferente aos homens.

Nada do que hoje nos parece eterno
Terá ficado do naufrágio imenso.

Esquecidas de nós, as novas almas
Levantarão para as estrelas mudas
O milagre feliz dos novos sonhos,
Sem talvez meditar que a terra outrora
Vira prodígios e deslumbramentos
Semelhantes aos seus, sob um céu puro.

Uma névoa de pó terá coberto
As cidades vaidosas, onde os homens
Hoje, lutando, desvairados, sofrem.
E apenas raros monumentos tristes
Lembrarão, no candor da branca pedra,
A fronte sacratíssima de um sábio,
De um herói, de um guerreiro, de um poeta,
Que a glória cinja com a divina palma.

Novos deuses, em templos majestosos,
Receberão, no plácido silêncio,
O murmúrio das preces comovidas,
O perfumado fumo das oblatas
E o amor das multidões...
Ah! nesse tempo
Eu terei recebido dos destinos
O bem do esquecimento imperturbável...
Deste homem que hoje sou - das minhas crenças,
Dos meus sonhos de amor, dos meus desejos,
Das minhas ambições mais rutilantes -
Nada mais restará, nada, na terra!

Mas, quem sabe? Talvez, um dia, um homem,
Amigo das pesquisas minuciosas,
Visite longamente as bibliotecas,
Onde durmam os livros seculares,
Que as traças lentas vão destruindo a custo.
E esse homem, cheio de um amor antigo,
Curioso do viver das eras mortas,
Talvez encontre, entre outros livros velhos,
Estes versos que escrevo, e em que minha alma
Fala à tua alma em longas confidências.

E então, meu lindo amor, como evadidos
De um sepulcro, nós dois ressurgiremos
Aos olhos caridosos desse amigo,
Vindos das densas sombras do passado.

Talvez...
Seremos belos!
Nossa fronte,
Há de doirá-la a mesma juventude,
Que hoje nos cerca de um clarão sagrado!
Haverá nos teus lábios esse mesmo
Beijo vibrante que me trazes hoje!
E nos olhos terás o mesmo encanto
Que neles me seduz e prende agora!

Sim: no milagre desse instante ardente,
Nessa ressurreição maravilhosa,
Nós brilharemos juntos, aureolados
De um novo amor e de um carinho novo!

E então esse paciente amigo nosso
Volverá para nós, nos dias de hoje,
Toda a sua saudade religiosa,
E invejará, talvez, piedosamente,
Essa breve, ligeira hora de sonho,
Que hoje os destinos deixam que vivamos... 


Múcio Leão, in "Poesias", 1949.

 

Elisabeth WandelView from Raadvad with the Eremitage Castle in the background, 1871.

 
"São filósofos verdadeiros aqueles que gostam de contemplar a verdade."

Platão (Filósofo grego, no século IV a.C.), in a "A República" (daqui)
 
 

domingo, 2 de fevereiro de 2025

"Despedida" - Poema de Cecília Meireles



Edward Cucuel (American-born painter painter who lived and worked
 in Germany, 1879–1954), Woman with a Parasol, s.d.



Despedida

 
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranquilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? – me perguntarão.
– Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? – Tudo. Que desejas? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra…)

Quero solidão.


Cecília Meireles
, in "Flor de Poemas", 1972.
 
 
Edward Cucuel, East wind, s.d.


"A poesia é o inferno; às vezes também é o paraíso."

Eugénio de Andrade
, em "Rosto Precário"
Porto: Limiar, 1979.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

"Amor" - Poema de Cruz e Sousa


Jan van Beers (Belgian painter and illustrator, 1852–1927), 
Rendez-vous in the Bois de Boulogne, 1889.
 
 
Amor
 

Nas largas mutações perpétuas do universo
O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os notâmbulos
À fresca exalação salúbrica das flores...

E somos uns completos, célebres artistas
Na obra racional do amor — na heroicidade,
Com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
E amamos com vigor e com vitalidade,
A cor, os tons, a luz que a natureza exige!... 


Cruz e Sousa
, in O Livro Derradeiro 
 
 ["O livro Derradeiro" é uma publicação póstuma que reune diversos poemas de autoria de João da Cruz e Sousa. Contém versos inéditos e outros divulgados pela imprensa. A obra foi lançada em 1945, mas em 1961 ganhou uma nova versão, com a inclusão de outros trabalhos do poeta.]