terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

"Café do Molhe" - Poema de Manuel António Pina


  (The Rowers' Lunch), c. 1875, Art Institute of Chicago.
 
 

Café do Molhe


Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

por que a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.
 
 
 Manuel António Pina,
"Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", 1999. 
 

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