sexta-feira, 14 de março de 2025

"Para escrever o poema" - Nuno Júdice

 


Júlio Resende
(Pintor português, 1917–2011), As Pombas, 2010.
 

Para escrever o poema


O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.


Nuno Júdice
, "A Matéria do Poema",
Publicações Dom Quixote, 2008.


Júlio Resende, Pássaro, s.d.


"Mas, afinal, para que interpretar um poema? Um poema já é uma interpretação."

Mário Quintana
(Intérpretes, p. 63), 
in "A vaca e o hipogrifo." 

 
Júlio Resende, Olhar de Pássaro, 1996.


"Porque na verdade esta vida só tem dois encantos: o previsto e o imprevisto."
 
Mário Quintana (Esperas e surpresas, p. 211),
in "A vaca e o hipogrifo". 

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