sábado, 31 de maio de 2025

"A melhor colheita" - Poema de João de Lemos


Maria Guilhermina Silva Reis (Pintora portuguesa, 1825-1885), Descanso da Vindima, s.d.
 
 

A melhor colheita


Por tarde amena de estio
Vendo do campo o lidar,
Sentindo a brisa do rio,
Ouvindo o melro cantar,
Assentei-me em verde alfombra,
Dum freixo copado à sombra,
Com um amigo a conversar.

Qual era a melhor seara,
Qual melhor colheita dá,
Qual mais barata ou mais cara
Ao lavrador ficará;
Era o assunto da conversa,
Mas de opinião diversa,
Ambos teimávamos já.

Eis que perto ali passava
Um camponês ancião,
Ao ombro a enxada levava,
Levava um cesto na mão
E no rosto lhe luzia,
Por entre doce alegria,
Doce paz no coração.

– Façamos do velho, digo,
Entre nós ambos juiz;
Que dizes tu meu amigo?
– Venha o teu velho, me diz.
Chamei-o logo, ele veio
E de nós ambos no meio
Assentar o velho fiz.

Qual era a melhor seara,
Qual melhor colheita dá,
Qual mais barata ou mais cara
Ao lavrador ficará,
Lhe disse eu que era a conversa,
Mas de opinião diversa
Que ambos teimávamos já.

– Dize, pois, honrado velho,
É trigo, é milho, é arroz?
Decide com o teu conselho,
Dá o teu voto entre nós;
Que na falta de ciência
A sabedora experiência
Falará na tua voz.

Olhou-nos então sorrindo,
E disse – se Deus o quer,
Tudo é bom à terra indo,
Quando e como o tempo der,
Quando e como nos ensina
Da própria terra a doutrina
Aos que nela sabem ler.

Mas de todas as colheitas
E, mancebos, a melhor
A das ações por nós feitas,
Sem que suba ao rosto a cor;
Porque é dessa que é medida,
No dia da despedida,
Nossa pensão ao Senhor!


João de Lemos,
in Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, 1862.



João de Lemos
 

João de Lemos, poeta ultrarromântico, nascido a 6 de maio de 1819, no Peso da Régua, e falecido a 16 de janeiro de 1890, em Maiorca, na Figueira da Foz, foi adepto da causa absolutista.
Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, desempenha várias missões diplomáticas ao serviço de D. Miguel e dirige desde 1848 o jornal A Nação, órgão dos miguelistas.
Depois da vitória dos liberais, exila-se em Inglaterra, onde compõe o poema que o notabilizou, "A lua de Londres". Colaborou na revista coimbrã O Trovador, de que foi um dos fundadores, bem como em outros periódicos, tais como a Revista Universal Lisbonense (1841-1859), a Revista Académica de Coimbra (1845-1854), o Prisma (1842-1843), a Ilustração (1845-1846) e o Cristianismo (1843).
O seu lirismo é imbuído de um sentimentalismo exagerado, com evocações nostálgicas da terra natal e da pátria, e marcado por um certo convencionalismo. (daqui)

sexta-feira, 30 de maio de 2025

"Amor" - Poema de Roseana Murray


Donald Zolan (American painter, 1937 - 2009), 'Nostalgic Summer Memories'.
 

Amor


Todas as palavras
de amor já foram ditas,
desde o começo,
todos os espantos.
E no entanto,
há que carregá-las
no bolso,
sempre ao alcance
das mãos,
há que desdobrá-las,
encharcadas de aurora,
de crepúsculo,
de tempo,
para que digam
uma e outra vez.
"Caligrafia dos Sentimentos" 
 
 
"Caligrafia dos Sentimentos" de Roseana Murray.
Livro ilustrado com caligrafia de Silvane Silva.
Editora Feminas, 2020.
 
 Roseana Murray autora de livros de poesia e contos para crianças, jovens e adultos é graduada em Língua e Literatura francesa pela Universidade de Nancy através da Aliança Francesa. Trabalha com o Projeto de Leitura Café, Pão e Texto, recebendo Escolas Públicas em sua casa para um café da manhã literário. Faz palestras sobre a Formação do Leitor. Tem cerca de cem livros publicados. (daqui)
 
 
Donald Zolan, 'Country Kitten'.


"Gatos são poemas ambulantes. Pisam na terra como se estivessem no céu
e seus olhos atravessam as fronteiras dos mundos invisíveis."

Roseana Murray
, "Falando de Pássaros e Gatos", 1990. 
 
 
Donald Zolan, 'Just we two'.


"Fica demonstrado que as coisas que vemos e que são comuns a todos, as coisas que são iluminadas pela luz exterior, são muito menores do que as coisas que vemos com a luz dos nossos olhos. De resto é da mistura das duas luzes que o mundo é feito."

Afonso Cruz, em 'O Pintor Debaixo do Lava-Loiças', 2011.
 
 
Afonso Cruz, 'O Pintor Debaixo do Lava-Loiças'
Editora: CAMINHO 


SINOPSE
 
(Livro recomendado PNL2027 dos 15-18 anos - leitura fluente)
 
A liberdade, muitas vezes, acaba por sobreviver graças a espaços tão apertados quanto o lava-loiças de um fotógrafo. Esta é a história, baseada num episódio real (passado com os avós do autor), de um pintor eslovaco que nasceu no final do século XIX, no império Austro-Húngaro, que emigrou para os EUA e voltou a Bratislava e que, por causa do nazismo, teve de fugir para debaixo de um lava-loiças. (daqui)
 

quinta-feira, 29 de maio de 2025

"Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros" - Poema de Álvaro de Campos


Carl Spitzweg (German romantic painter, 1808–1885), "Der Sonntagsspaziergang" 
(Passeio de domingo), 1841. A typical representation of the Biedermeier period.
 

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros


Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Subtil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo! 

9-8-1934
Poesias de Álvaro de Campos
Fernando Pessoa, Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 58.
 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

"Eu que não sei pintar um quadro" - Poema de Emily Dickinson


Marie-Gabrielle Capet (French Neoclassical painter, 1761–1818),
The atelier of Madame Vincent (Studio Scene), 1808,
Neue Pinakothek, Munich.


Eu que não sei pintar um quadro


Eu que não sei pintar um quadro
Prefiro - tão somente -
Captar o brilho do impossível
E me quedar - contente -
A imaginar que mão tão rara
E excelsa - evocaria
Uma Aflição tão agradável -
Suntuosa - Agonia -

Não sei falar como uma Flauta -
Queria então somente
Alçar-me fora nas Alturas
E aí - suavemente -
Atravessando Etéreas Vilas
Balão em festa iria
E num só Fio a sustentar-me
A Nave ancoraria -

Como também não sou Poeta -
Melhor será somente
À Aptidão render o Ouvido -
Frágil - dada - carente -
Que tão sublime privilégio
Nem há quem me daria
De desatar com minha Arte
Clarões de Melodia! 


Emily Dickinson, in A branca voz da solidão.
São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 219.
Tradução de José Lira
 

terça-feira, 27 de maio de 2025

"Romã" - Poema de Nuno Júdice

 


Ferdinand Georg Waldmüller (Austrian painter and writer, 1793-1865),
Still Life with Fruit and Parrot, s.d.



Romã 


Tirei os bagos, um a um,
de dentro da romã. Juntei-os
no prato do poema, e construí com eles
a tua imagem para que
a pudesse morder como se ama,
até ouvir o teu riso perguntar-me: «Que
fazes?», enquanto libertavas
os seios de dentro
da camisa, para que a luz os mordesse
como se morde a romã.


Nuno Júdice, in "Poesia Reunida"

 

segunda-feira, 26 de maio de 2025

"Elas" - Poema de Graça Pires

 


Julius LeBlanc Stewart (American artist, 1855-1919), At home, 1897.



Elas

 
Elas têm olhos de vespa como as antigas deusas
e mordem o freio que lhes sangrou os lábios.
Fazem minuciosamente o inventário dos sonhos
esmagados na lembrança.
As paredes das casas com marcas de fumo
guardaram-lhes os gritos quando queimaram
as cartas de amor e o alecrim para afastarem
os fantasmas do passado parados à beira da insónia.
Agora turva-se-lhes a água no quebranto das horas
que a vigilância dos relógios e dos homens
tornam fatigantes.
Às vezes ficam deitadas horas a fio no chão
de cimento afagando o dorso do gato
que febrilmente se enrosca em suas ancas.


Graça Pires
, in "A incidência da luz"


domingo, 25 de maio de 2025

"Depoimento" - Poema de Miguel Torga


 

Depoimento

 
Foi na vida real como nos sonhos:
Nunca pisei um chão de segurança.
Procuro na lembrança
Um sólido caminho percorrido,
E vejo sempre um barco sacudido
Pelas ondas raivosas do destino.
Um barco inconsciente de menino,
Um barco temerário de rapaz,
E um barco de homem, que já não domino
Entre os rochedos onde se desfaz.

Mas o céu era belo
Quando à noite o seu dono o acendia;
E era belo o sorriso da poesia,
E belo o amor, dragão insatisfeito;
E era belo não ter dentro do peito
Nem medo, nem remorsos, nem vaidade.
Por isso digo que valeu a pena
A dura realidade
Desta viagem trágico-terrena
Sempre batida pela tempestade.


Miguel Torga
, Orfeu Rebelde, 1958.
Antologia Poética, 2.ª edição, Coimbra, 1985.

sábado, 24 de maio de 2025

"Procissão" - Poema de Gilberto Gil

 

Francisco Smith ou Francis Smith (Pintor português, 1881–1961),
 A Procissão (La Procession), 1939.


Procissão 


Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na Terra
Esperando o que Jesus prometeu

E Jesus prometeu coisa melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na Terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver

Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na Terra isto tem que se acabar


Gilberto Gil
, 1964
 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

"Chuva e Sol" - Poema de Adelina Lopes Vieira


Harold Harvey (Newlyn School painter, 1874-1941), The Lilac Doll.


 Chuva e Sol


Junta ao pendor do abismo e suster-se sozinha;
quase a tombar no mal, lutar vencendo o mal,
é difícil, é belo! Eu vi exemplo igual
na ingénua candidez de linda criancinha.

Disse a mamãe, um dia, à loura Georgeana:
— Se até anoitecer, eu não te ouvir chorar,
nem dar gritos, prometo, amor, ir-te comprar
uma nenê gentil, d'olhos de porcelana.

Apenas isto ouviu, a bela pequenita
dança e salta a cantar, com tal sofreguidão,
que entontecendo, cai, ao comprido, no chão.
Esqueceu-lhe a promessa. Ei-la que chora e grita.

— Prantos? adeus boneca. Ouvindo esta ameaça,
ergue-se Georgeana e diz muito ligeira,
mudando o choro em riso, e com imensa graça.
— Chorei... por brincadeira...


Adelina Lopes Vieira

(Escritora, poeta, contista, teatróloga e educadora brasileira, 1850 - 1923) 

quinta-feira, 22 de maio de 2025

"Chá das Cinco" - Poema de Gilberto Mendonça Teles


Edward Cucuel (American-born painter who lived and worked 
 in Germany, 1879–1954), Five o'clock Tea.


Chá das Cinco

A Jorge Amado

Chá de poejo para o teu desejo
chá de alfavaca já que a carne é fraca
chá de poaia e rabo-de-saia
chá de erva-cidreira se ela for solteira
chá de beldroega se ela foge ou nega
chá de panela para as coisas dela
chá de alegrim se ela for ruim
chá de losna se ela late ou rosna
chá de abacate se ela rosna e late
chá de sabugueiro para ser ligeiro
chá de funcho quando houver caruncho
chá de trepadeira para a noite inteira
chá de boldo se ela pedir soldo
chá de confrei se ela for de lei
chá de macela se não for donzela
chá de alho para um ato falho
chá de bico quando houver fuxico
chá de sumiço quando houver enguiço
chá de estrada se ela for casada
chá de marmelo quando houver duelo
chá de douradinha se ela for gordinha
chá de fedegoso para mijar gostoso
chá de cadeira para a vez primeira
chá de jalapa quando for no tapa
chá de catuaba quando não se acaba
chá de jurema se exigir poema
chá de hortelã e até amanhã
chá de erva-doce e acabou-se

( pelo sim pelo não
chá de barbatimão)
 
 
 Gilberto Mendonça Teles, in "Plural de nuvens"
2a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. 


Pinturas de Edward Cucuel
Edward Cucuel, Fragrant Summer.



Edward Cucuel, The oldoak.
 
 
Edward Cucuel, The Japanese umbrella.
 
 
Edward Cucuel, By the Lake Wall.
 
 
Edward Cucuel, In the garden.
 
 
Edward Cucuel, Woman with boat.   


Edward Cucuel, Girl in an interior.


Edward Cucuel, Swiss Chalet.
 

"A ondulação deste número infinito de montanhas, cujos cumes nevados os fazem parecer como que cobertas por espuma, trouxe à minha lembrança a superfície de um oceano sendo espancado por uma tempestade. Se olhei para o oeste, o oceano exibia-se diante de mim em toda a sua majestosa grandeza, uma continuação de certo modo, um destes lanosos topos. Onde a terra terminava e o mar começava era impossível para o olho distinguir."

 

Viagem ao Centro da Terra de Júlio Verne,
Porto Editora, janeiro de 2021.
 

Viagem ao Centro da Terra

Romance de Júlio Verne, cujo título original é Voyage au Centre de la Terre, publicado em 1864, é considerado um clássico da ficção científica.

O narrador é Alex Lidenbrock, sobrinho de Otto Lidenbroc, um ilustre geólogo alemão, naturalista e professor de mineralogia.

A ação desenrola-se inicialmente, em Hamburgo, na casa do professor Otto. Este compra o manuscrito original de uma saga islandesa, escrita por Snorri Sturluson no século XII. Dentro desta obra encontra-se um pergaminho escrito em runas.

O professor, juntamente com o sobrinho Alex, começam a interessar-se pelo enigmático documento, conseguindo desvendar o mistério da sua mensagem. Tratava-se do texto de um alquimista do século XVI, Arne Saknussemm, que afirmava ter descoberto uma passagem para o centro da Terra, através de um vulcão, na Islândia, chamado Sneffels (atualmente, Snaefells Jökull).

Otto Lidenbrock e Alex decidem então partir à descoberta do monte vulcânico e, em Reykjavík, para guiá-los, contratam Hans Bjelke, um caçador de êider. Já no Sneffels, e depois de vários dias de caminhada pelo seu interior, descobrem um mundo parecido com épocas pré-históricas completamente diferente daquele em que viviam.

A narração da viagem ao centro da Terra, sob a forma de diário de bordo, ocupa grande parte do romance que, numa fusão de realismo com imaginário, apresenta diversos detalhes geológicos e mineralógicos, os quais conferem ao texto certa credibilidade.

O livro foi adaptado não só para televisão, numa série de três episódios, realizada por George Miller, em 1999, como também para cinema, destacando-se os filmes de Henry Levin, em 1959, e de Juan Piquer Simón, em 1976. (daqui)  

(Ler excerto da obra)

quarta-feira, 21 de maio de 2025

"Fotografia" - Poema de Adélia Prado

 


Franz von Stuck
(German painter, sculptor, printmaker, and architect, 1863–1928), 
Portrait of a Lady with lace collar, 1928.


Fotografia


Quando a minha mãe posou
para este que foi seu único retrato,
mal consentiu em ter as têmporas curvas.
Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto
que uma doutrina dura fez contido.
A boca é conspícua,
mas as orelhas se mostram.
O vestido é preto e fechado.
O temor de Deus circunda seu semblante,
como cadeia. Luminosa. Mas cadeia.
Seria um retrato triste
se não visse em seus olhos um jardim.
Não daqui. Mas jardim.


Adélia Prado, in 'O coração disparado', 1977.
 
 
Giovanni Boldini (Italian painter, 1842–1931), Lina Cavalieri, c. 1901. 
Oil on canvas. Private collection.


"Preto e branco são as cores da fotografia. Para mim, eles simbolizam as alternativas de esperança e desespero às quais a humanidade está sempre sujeita."

"Black and white are the colors of photography. To me they symbolize the alternatives of hope and despair to which mankind is forever subjected."
 
 
Robert Frank in Mabou, September, 2014
 © Dodo Jin Ming (daqui)


Robert Frank, fotógrafo suíço, nascido em 1924, em Zurique, iniciou a sua aprendizagem da arte fotográfica naquela cidade (1940-1942). Em 1947 instalou-se em Nova Iorque onde colaborou como fotojornalista e fotógrafo de moda com revistas como a Life, Look e Harper's Bazaar
Entre 1948 e 1952 viajou pela América Latina e Europa, onde se viu confrontado com realidades sociais diferentes, que abordou nas suas imagens fotográficas de uma maneira subjetiva.
Uma bolsa da Fundação Guggenheim permitiu-lhe viajar pelos Estados Unidos da América, experiência de que resultou a sua obra The Americans (1958). Esta obra tinha prefácio do escritor Jack Kerouac, um ícone da Beat Generation americana, movimento que influenciou profundamente Robert Frank.
Depois de uma breve passagem pelo cinema experimental, entre os anos 60 e 70 dedica-se à fotomontagem realizada por uma técnica de fotografia instantânea (Polaroid).
Robert Frank, um dos mais influentes fotógrafos de sempre, morreu em 2019 em Inverness, Nova Escócia, Canadá, onde vivia há décadas com a sua mulher, June Leaf. Tinha 94 anos. (daqui)

terça-feira, 20 de maio de 2025

"Metáfora" - Poema de José Saramago

 

William Bruce Ellis Ranken (British artist and Edwardian aesthete, 1881-1941),
The Promenade, 1904.
 

Metáfora 


Trago nas mãos um búzio ressoante
Onde os ventos do mar se reuniram,
E das mãos, ou do búzio murmurante,
Alastra em cor e som irradiante
A beleza que os olhos te despiram.

 
 José Saramago,
in "Os poemas possíveis". 3ª ed.,

Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
 
 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

"Nunca são as coisas mais simples" - Poema de Nuno Júdice


William Arthur Breakspeare (British painter, 1855 - 1914),
Where are you going to my pretty maid?


Nunca são as coisas mais simples 


Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.


Nuno Júdice
, in "Poesia Reunida"


domingo, 18 de maio de 2025

"Plantar uma floresta" - Poema de Luísa Ducla Soares


Elizabeth Forbes (Canadian painter, 1859–1912), The Orchard, Unknown date.
 


Plantar uma floresta

 
Quem planta uma floresta
Planta uma festa.

Planta a música e os ninhos,
Faz saltar os coelhinhos.

Planta o verde vertical,
Verte o verde,
Vário verde vegetal.

Planta o perfume
Das seivas e flores,
Solta borboletas de todas as cores.

Planta abelhas, planta pinhões
E os piqueniques das excursões.

Planta a cama mais a mesa.
Planta o calor da lareira acesa.
Planta a folha de papel,
A girafa do carrossel.

Planta barcos para navegar,
E a floresta flutua no mar.
Planta carroças para rodar,
Muito a floresta vai transportar.
Planta bancos de avenida,
Descansa a floresta de tanta corrida.

Planta um pião
Na mão de uma criança:
A floresta ri, rodopia e avança.
 
 
"A Gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca"
(Poesia para a infância)
 

"A Gata Tareca e outros poemas levados da breca"
de Luísa Ducla Soares. Ilustrações de Fedra Santos.
Porto Editora 

 
 Sinopse
 
Esta obra apresenta as mais apelativas tendências da poesia de Luísa Ducla Soares. Nela está patente o seu humor, o gosto pela nonsense, pelos jogos de sons e palavras. Não desprezando a herança da tradição popular, das lengalengas, romances e trava-línguas oferece mais de uma vintena de poemas divertidos que despertam a imaginação das crianças.

sábado, 17 de maio de 2025

"Dúvida" - Poema de João de Deus

 

Herbert P. Dollman (British painter and illustrator, 1856-1892),
La boîte à lettre secrète, s.d.
 

Dúvida 


 
Amas-me a mim? Perdoa,
É impossível! Não,
Não há quem se condoa
Da minha solidão.

Como podia eu, triste,
Ah! inspirar-te amor
Um dia que me viste,
Se é que me viste... flor!

Tu, bela, fresca e linda
Como a aurora, ou mais
Do que a aurora ainda,
Mal ouves os meus ais!

Mal ouves, porque as aves
Só saltam de manhã
Seus cânticos suaves;
E tu és sua irmã!

De noite apenas trina
O triste rouxinol:
Toda a mais ave inclina
O colo ao pôr do Sol.

Porquê? Porque é ditosa!
Porquê? Porque é feliz!
E a que sorri a rosa?
Ao mesmo a que sorris...

À luz dourada e pura
Do astro criador:
À noite, não, que é escura,
Causa-lhe a ela horror.

Ora uma nuvem negra,
Uma pesada cruz,
Uma alma que se alegra
Só quando vê a luz

De que ele, o Sol, inunda
O mar, quando se põe,
Imagem moribunda
De um coração que foi...

Uma alma semelhante
Não pode cativar
Um rosto tão galante,
Um tão galante olhar!

E eu vi caracteres
Que a tua mão traçou;
Mas vós... ah! vós, mulheres,
Quem já vos decifrou!

Mal te sustinha o pulso
A delicada mão;
Sentia-te convulso
Bater o coração;

Via-te arfar o seio...
Corar... mudar de cor...
E embora, ah! não, não creio...
Tu não me tens amor! 
 in 'Campo de Flores'
 
 

sexta-feira, 16 de maio de 2025

"A Borboleta" - Poema de Roseana Murray


 Harold Knight (British painter, 1874–1961), Two Young Girls with a Butterfly, 1929.


A Borboleta

 
Em sua casa casulo
bem enrolada nos fios,
a lagarta dorme a noite
dos que fabricam
asas no escuro.
O seu sono é de veludo
e segredo
e pouco a pouco,
enquanto o menino
e a menina piscam
os olhos,
não se sabe
como aconteceu:
a lagarta virou
borboleta azul,
vira virou
uma borboleta aguarela.


Roseana Murray, in "Vira Virou"
 
 
"Vira Virou" de Roseana Murray
‎ Nova Fronteira; 1ª edição (31 julho 2022)
 
 
Descrição


Neste livro de poemas, a premiada autora Roseana Murray fala sobre a passagem do tempo, a transitoriedade, a mudança das formas, a imaginação infantil: a lagarta que vira borboleta enquanto a criança dorme, o menino que vira pirata, vira cantor, vira mágico. A também premiadíssima Mariana Massarani criou ilustrações com colagens, e papeizinhos multicoloridos vira viraram gafanhotos, gatos de olhos azuis, menino, menina, riacho... Vira virou! A escritora e narradora de histórias Penélope Martins assina o texto de orelha e avisa de pronto que poesia é bicho instruído. Então, fique atento, porque poesia te pega de jeito e nunca mais te larga.

“Olhe para o céu/ e adivinhe/ um elefante de nuvem,/ mas basta um sopro/ e pronto,/ vira virou/ uma girafa e seu pescoço/ se enrola, vai e volta,/ parece uma argola/ e pronto/ vira virou”. 
Para leitores que gostaram de "Cantigamente", de Leo Cunha, "Fulustreca", de Luiz Raul Machado, e "Amor plenilunar", de Rui de Oliveira. (daqui)

quinta-feira, 15 de maio de 2025

"Banco de Jardim" - Poema de Colombina (Yde Schloenbach Blumenschein)


Madeleine Lemaire (Peintre, illustratrice et salonnière française, 1845 - 1928)
 

Banco de Jardim 



Amo os céus iluminados
pelos astros infinitos;
mas, por mal dos meus pecados,
teus olhos são mais bonitos.

Em teus braços aninhada,
tenho ao alcance da mão
toda uma noite estrelada,
todo o sol no coração.

Amar — verbo transcendente
que a gente conjuga a dois...
É um sorriso no presente
e são lágrimas, depois.

Penso em ti se estás ausente,
penso em ti se perto estás:
longe — quero-te presente,
perto — que embora não vás!

Apesar dos desenganos,
de tanta desilusão,
nós sempre temos vinte anos
num canto do coração.
 

Colombina 
in "Cantares de bem-querer", 1956. 
 
 
Madeleine Lemaire, Un vase de fleurs, s.d.
 

"O único caminho para emendar o mundo mau é criar o mundo bom."
 

Madeleine Lemaire, Gerbe de lilas mauve et blancs aux hannetons, 1903.
 

"A felicidade é um perfume que não se pode aspergir sobre os outros 
sem que algumas gotas respinguem sobre nós."

Ralph Waldo Emerson
 citado in 'Good Housekeeping',
Volume 14 - Página 302, C.W. Bryan, 1892.
 

quarta-feira, 14 de maio de 2025

"Joana Madalena" - Poema de Péricles Eugênio da Silva Ramos


Joseph Clark (English painter, 1834-1926), Teasing the kitten, 1876.
 
 
 
Joana Madalena 

1

Cega, chuleava roupa.
Não via, mas chuleava.
E tinha noventa
anos. E era
cega.

Hoje talvez enxergue;
mas as cinzas não trabalham.

2

És a lua de ontem,
minha avó.
Ausente à vista, certa na memória;
tranquila na lembrança
como o pão e a roupa,
os livros que me deste.

E és um presente ao homem,
àquele que hoje sou,
feito de velhos dias:

com teus lençóis sem mancha
nas tardes de Lorena —
onde há lençóis, nuvens lavadas
em céus também lavados.

3

Tarde adentro a voz se ouvia
na varanda,
tarde adentro
(a tarde era profunda):
"O fim é que é triste.
Um belo romance, A Filha do Diretor do Circo.
Como a Dejanira lia bonito!
Leia um pouco, meu neto."
E o menino lia.

Colibris revoavam no alpendre,
das canangas e dos manacás e dos bambus do Japão
subia um meigo aroma,
e havia em tudo um sabor de fonte e de jambo,
e tudo era idílico e doce,
mesmo a voz das corruíras pelas calhas,
mesmo o coaxar das rãs na terra húmida.
Crescia o musgo nas paredes
e havia papoulas e jasmins-do-cabo e rosas-chá
e flores de araruta como borboletas brancas:
tudo tão distante...

Ó minha avó, ó lua de ontem,
ensinarei teu nome aos pássaros em fuga.


Péricles Eugênio da Silva Ramos,
in 'Lua de Ontem', 1960. 


Joseph Clark (English painter, 1834-1926), Helping Grannie, 1878. 


"No homem cuja infância conheceu carinhos, há sempre um fundo de memória 
que pode ser despertado para a ternura."

George Eliot, Scenes of Clerical Life - Página 145,
 William Blackwood and Sons, 1858. 
 

terça-feira, 13 de maio de 2025

"A Cidade e a Aldeia" - Poema de Abílio Mesquita


Francisco Smith ou Francis Smith (Pintor português, 1881–1961), 
Aldeia portuguesa, 1938.
 
 
A cidade e a aldeia

 
Cidade - Quem és tu, assim tão simples?
 
Aldeia - E tu, quem és a final?
 
Cidade - A nobreza da Cidade.
 
Aldeia - Aldeia de Portugal.

Cidade - Tenho lindas pedrarias,
Joias mil de muitas cores...
 
Aldeia - E eu tenho maior riqueza
Nas minhas tão lindas flores...
 
Cidade - Tenho risos, alegrias
Divertimentos constantes.

Aldeia - Tenho a música dos ninhos
 E canções inebriantes.

Cidade
- Tenho luz de noite a jorros,
E não me levas a palma.
 
Aldeia - Tenho o Sol durante o dia,
De noite a luz da minha alma...
 
Cidade - Vivo em palácios vistosos
Que abundam pela Cidade.
 
Aldeia - E eu num casebre pequeno,
Que o Sol beija com vaidade!
 
Cidade - A História fala de mim,
Porque tenho algum valor...
 
Aldeia - Também tenho a minha História,
Escrita com o meu suor.
 
Cidade - Tenho o luxo que tu vês
Próprio da minha grandeza.

Aldeia - E eu o luxo e a vaidade de gostar da singeleza!
 
Cidade - Sou mais rica do que tu,
Que nada tens afinal!
 
Aldeia - Tenho aqui dentro do peito:
A alma de Portugal!
 
 
Abílio de Mesquita, in Livro de Leitura para a 4ª classe
Ed. Educação Nacional, Porto, s/ d. p. 86.
 
 
Francisco Smith, Largo de aldeia (Petite place au Portugal), 1954.


"Viver no campo tornou-me uma pessoa muito menos cínica e sombria do que resulta manter-me distante de um determinado modo de pensar instituído. Não é necessariamente um olhar do campo, é o debate com a possibilidade de um outro tipo de inteligência e de abordagem literária da existência humana só possível num cenário deste género."

Joel Neto, Entrevista Diário de Notícias, 12 Fev. de 2017



Francisco Smith, Encosta do Castelo de São Jorge, Lisboa, s.d.
 

"Se me pedirem para reduzir ao essencial a diferença entre o campo e a cidade, então aí está ela: o efeito que tem em nós uma sirene no horizonte. Na cidade, é apenas uma sirene. Aqui, há uma boa hipótese de se tratar de alguém que conhecemos, talvez até de alguém que estimamos."

Joel Neto, em "A Vida no Campo"
 
 
Francisco Smith, Praça em Lisboa (Place à Lisbonne), s.d.


"Deus fez o campo, e o homem fez a cidade."

"God made the country, and man made the town."

William Cowper, in The Task, 1785.