sábado, 1 de maio de 2021

"Alimentar o Amor" - Crónica de Miguel Esteves Cardoso

 
 
Isaac Levitan, Above the Eternal Tranquility, 1894

Alimentar o Amor

 
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas atividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A atividade que eu mais amo e respeito é a atividade de manter.

Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.

É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.

É tão fácil ser rebelde. Pica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquiteto. Gosto de académicos, de colecionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.

Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.

Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar. 

 

 

[Entre 1988 e 1990, Miguel Esteves Cardoso, diretor do semanário O Independente, escreveu e publicou nesse jornal a série de crónicas “As minhas aventuras na república portuguesa”. A reunião destes textos em volume homónimo, ainda durante 1990 e antes do fim da série no jornal, mostra bem a popularidade de que gozavam. “As minhas aventuras na república portuguesa” são um olhar distanciado, crítico e divertido sobre o Portugal recém-entrado na CEE. Contra o discurso efusivo do “Portugal na CEE” e contra o discurso da crise, que tende a mitificar o passado glorioso, estas crónicas pedem ao leitor que corrija o seu olhar face à realidade e aceite Portugal tal como é. (daqui)]
 
Sinopse
 
sinopse

"sinopse", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/sinopse [consultado em 01-05-2021].
sinopse

"sinopse", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/sinopse [consultado em 01-05-2021].
Miguel Esteves Cardoso reúne um conjunto de aventuras observadas por si, adicionando, peneirando, mexendo e acrescentando, como lhe é característico, pitadas de sal e pimenta. O resultado é delicioso, ou antes, "uma série de começos contrariados", como o próprio afirma no prefácio.
Neste livro ('As Minhas Aventuras na República Portuguesa')  encontramos duas personalidades distintas: o autor enquanto escritor e o autor enquanto observador, com experiências distintas, mas complementares, originando crónicas em que a irreverência e a ironia, mas também a profundidade e o sentimento, são constantes.
O livro descreve o simples, mas complexo quotidiano: "É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de se fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas" sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades "é o que distingue os seres humanos". (Daqui)



Isaac Levitan, Spring, High Waters, 1897


Eleve as suas palavras, não a sua voz. É a chuva que faz florescer, não o trovão.” 
 
 
 
Issac Levitan, Water lilies, 1895
 

"A alegria é como a água clara e pura, onde ela flui, flores maravilhosas crescem... 
A tristeza é como um rio negro, onde flui ele murcha as flores."
 


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