domingo, 31 de março de 2024

"Deus" - Poema de Nuno Júdice


Vilhelm Hammershøi (Danish painter, 1864-1916), 


Deus


À noite, há um ponto do corredor
em que um brilho ocasional faz lembrar
um pirilampo. Inclino-me para o apanhar
– e a sombra apaga-o. Então,
levanto-me: já sem a preocupação
de saber o que é esse brilho, ou
do que é reflexo.
Ali, no entanto, ficou
uma inquietação; e muito tempo depois,
sem me dar conta do motivo autêntico,
ainda me volto no corredor, procurando a luz
que já não existe.


Nuno Júdice
, in "Meditação sobre Ruínas", 1995 

 


Vilhelm Hammershøi, Interior, Strandgade 30, 1901


"Toda palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada."
 
 "Every word is like an unnecessary stain on silence and nothingness."
 
Samuel Beckett
- citado em "Close-up‎" - Página 52, John Gruen - Viking Press, 1968 - 206 páginas.


segunda-feira, 25 de março de 2024

"Há cidades cor de pérola" - Poema de Herberto Helder


Albert Henry Collings (English artist, 1868-1947), Portrait of Gertie Millar 
(English actress and singer, 1879–1952), 1905.
 


Lugar IV


Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois noturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um desespero 
fulminante, 
a quem beijo os pés supostos 
entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
 a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
 ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.


Herberto Helder, Lugar IV (1962),
in Poesia Toda, Assírio & Alvim, 1996
 

Albert Henry Collings (English artist, 1868-1947), The Fish Bowl, 1907



Teoria das cores

 
Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou o peixe amarelo.


Herberto Helder, Os Passos em Volta. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 22-24


domingo, 24 de março de 2024

"Nú: Estudo em Comoção" - Poema de Ana Luísa Amaral


Mary Beth McKenzie (American painter, b. 1946), "Marcsi (window)", 1999. 
Oil on canvas, 48 X 40 inches, Private collection.
 


Nú: Estudo em Comoção

 
Em que meditas tu
quando olhas para mim dessa maneira,
deitada no sofá
diagonal ao espaço onde me sento,
fingindo eu não te olhar?

Em que pensa o teu corpo
elástico, alongado,
pronto a vir ter comigo
se eu pedir?

As orelhas contidas em recanto,
as patas recuadas,
o que vês tu agora no branco dos teus olhos:
lua em quarto-crescente,
um prado claro?

E quando dormes, como noutras horas,
que sonhos te viajam:
a mãe, a caça, a mão macia, o salto
muito perfeito
e alto, muito esguio?

Onde: a noite sem frio
que nos abrigará
um dia
e que há de ser
(só pode ser)
igual?


Ana Luísa Amaral
, What's in a name, 
 Assírio & Alvim, 2017
 
 
Mary Beth McKenzie, "Marcsi, Zsuzsa and Pip", 1991. Oil on canvas, 43 X 50 inches.
Collection of the Artist (marybethmckenzie.com)
 
 
Mary Beth McKenzie,"Zsuzsa asleep (cat)", 1995. Oil on canvas, 29 X 36 inches.
Private Collection
 

"Vida é vida - seja de um gato, ou de um cão ou de um homem. Não há diferença entre um gato e um homem. A ideia de diferença é a conceção humana para a vantagem do homem."
 
"Life is life - whether in a cat, or dog or man. There is no difference there between a cat or a man. The idea of difference is a human conception for man's own advantage."
 
 Publisher peaceCENTER, 2007, - 156 páginas.
 

sábado, 23 de março de 2024

"O Baile!" - Poema de Casimiro de Abreu


Julius LeBlanc Stewart (American, 1855 - 1919), The Ball, 1885. Private collection



O Baile!



Se junto de mim te vejo
Abre-te a boca um bocejo,
Só pelo baile suspiras!
Deixas amor - pelas galas,
E vais ouvir pelas salas
Essas douradas mentiras!

Tens razão! Mais valem risos
Fingidos, desses Narcisos
- Bonecos que a moda enfeita -
Do que a voz sincera e rude
De quem, prezando a virtude,
Os atavios rejeita.

Tens razão! - Valsa, donzela,
A mocidade é tão bela,
E a vida dura tão pouco!
No burburinho das salas,
Cercada de amor e galas,
Sê tu feliz - eu sou louco!

E quando eu seja dormido
Sem luz, sem voz, sem gemido,
No sono que a dor conforta;
Ao concertar tuas tranças
No meio das contradanças
Diz tu sorrindo: "- Qu'importa?..

"Era um louco, em noites belas
"Vinha fitar as estrelas
"Nas praias, co'a fronte nua!
"Chorava canções sentidas
"E ficava horas perdidas
"Sozinho, mirando a lua!

"Tremia quando falava
"E - pobre tonto - chamava
"O baile - alegrias falsas!
"- Eu gosto mais dessas falas
"Que me murmuram nas salas
"No ritornelo das valsas. - "

Tens razão! - Valsa, donzela,
A mocidade é tão bela
E a vida dura tão pouco!
P'ra que fez Deus as mulheres,
P'ra que há na vida prazeres?
Tu tens razão... eu sou louco!

Sim, valsa, é doce a alegria,
Mas ai! que eu não veja um dia
No meio de tantas galas -
Dos prazeres na vertigem,
A tua coroa de virgem
Rolando no pó das salas!... 

Julho, 1858

Casimiro de Abreu
 (1839-1860),
in "As Primaveras", 1859.


 

sexta-feira, 22 de março de 2024

"Há sempre uma noite terrível" - Poema de Herberto Helder


Felice Casorati (Italian painter, sculptor, and printmaker, 1883–1963), Fiat 600, 1955.
 
 
 
Lugar II


Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
de silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,
ou estrela eletrocutada, ou em homem
noturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, raios límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta — dizem em mim — até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.

Há em cada instante uma noite sacrificada
ao pavor e à alegria.
Embatente com suas morosas trevas.
Desde o princípio, uma onda que se abre
no corpo, degraus e degraus de uma onda.
E alaga as mãos que brilham e brilham.
Digo que amaria o interior da minha canção,
seus tubos de som quente e soturno.
Há uma roda de dedos no ar.
A língua flamejante.
Noite, uma inextinguível
inexprimível
noite. Uma noite máxima pelo pensamento.
Pela voz entre as águas tão verdes no sono.
Antiguidade que se transfigura, ladeada
por gestos ocupados no lume.

Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os para-raios 
altíssimos da voz.
As raízes afogadas no nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
 fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.
Quando se esclarecem as portas que rodam
para o lugar da noite. Noite
de uma voz
humana. De uma acumulação
atrasada e sufocante.
Há sempre sempre uma ilusão abismada
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo
do cruzamento do fogo.
Prodígio para as vozes de uma vida repentina.

E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.

Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.

Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior
da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível, terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.

Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único, único violino.
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.


Herberto Helder, Lugar II,
in Poesia Toda, Assírio & Alvim, 1996


Herberto Helder - "Lugar II" dito por Luís Miguel Cintra


"A palavra quando é criação desnuda. A primeira virtude da poesia tanto para o poeta como para o leitor é a revelação do ser. A consciência das palavras leva à consciência de si: a conhecer-se e a reconhecer-se."

Octavio Paz, A Propósito de López Velarde


quinta-feira, 21 de março de 2024

"Peço Silêncio" - Poema de Pablo Neruda


Édouard Manet (French modernist painter, 1832–1883), Spring (Jeanne Demarsy), 1881,



Peço Silêncio


AGORA me deixem tranquilo.
Agora se acostumem sem mim.

Eu vou cerrar os meus olhos.

Somente quero cinco coisas,
cinco raízes preferidas.

Uma é o amor sem fim.

A segunda é ver o outono.
Não posso ser sem que as folhas
voem e voltem à terra.

O terceiro é o grave inverno,
a chuva que amei, a carícia
de fogo no frio silvestre.

Em quarto lugar o verão
redondo como uma melancia.

A quinta coisa são teus olhos,
Matilde minha, bem-amada,
não quero dormir sem teus olhos,
não quero ser sem que me olhes:
eu mudo a primavera
para que me sigas olhando.
Amigos, isso é quanto quero.
É quase nada e quase tudo.

Agora se querem, podem ir.

Vivi tanto que um dia
terão de por força me esquecer,
apagando-me do quadro negro:
Meu coração foi interminável.

Porém, por que peço silêncio
não creiam que vou morrer:
passa comigo o contrário:
sucede que vou viver.

Sucede que sou e que sigo.

Não será, pois lá bem dentro
de mim crescerão cereais,
primeiro os grãos que rompem
a terra para ver a luz,
porém, a mãe-terra é escura:
e dentro de mim sou escuro:
sou como um poço em cujas águas
a noite deixa suas estrelas
e segue sozinha pelo campo.

Sucede que tanto vivi
que quero viver outro tanto.

Nunca me senti tão sonoro,
nunca tive tantos beijos.

Agora, como sempre, é cedo.
Voa a luz com suas abelhas.

Me deixem só com o dia.
Peço licença para nascer. 
 
1957

Pablo Neruda
, em “Presentes de um Poeta”
Tradução de Thiago de Mello
[Publicado no livroEstravagario, 1958]
 
 
Pablo Neruda,“Presentes de um Poeta”,
Editor: ArtePlural.


Resumo
“Presentes de um Poeta”
 
Aqui reunidos estão alguns dos mais inesquecíveis poemas de Pablo Neruda, "o cronista de todas as coisas", como ele próprio se chamou. Cantando o amor, a humanidade, a terra e a poesia, as suas belíssimas palavras são adornadas nestas páginas com encantadoras e luminosas pinturas. A tradução, do poeta Thiago de Mello, amigo de Neruda, preserva para o português o toque mágico da sua intuição poética. (daqui)
 
 

quarta-feira, 20 de março de 2024

"Psicologia de um vencido" - Poema de Augusto dos Anjos


George Bellows (American realist painter, 1882 –1925), Men of the Docks, 1912,
National Gallery, Room 41, London.




Psicologia de um vencido


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigénesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia,
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário de ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida, em geral, declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Paraíba, 1909
 
Augusto dos Anjos, no livro Eu, 1912.


George Bellows, Blue Morning, 1909, National Gallery of Art.
 
 
"Da luz apenas fogem os escaravelhos, os ladrões e os ignorantes."



terça-feira, 19 de março de 2024

"Grandeza do Homem" - Poema de Ruy Belo


Antonio Rotta (Italian painter, 1828–1903), A Man and his Dog (The Hunter), 1872.
 
 
 
Grandeza do Homem 


Somos a grande ilha do silêncio de deus 

Chovam as estações soprem os ventos
jamais hão de passar das margens 

Caia mesmo uma bota cardada
no grande reduto de deus e não conseguirá
desvanecer a primitiva pegada 

É esta a grande humildade a pequena
e pobre grandeza do homem


in "Aquele Grande Rio Eufrates", 1961.

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

"Vieste como um barco carregado de vento" - Poema de Maria do Rosário Pedreira



Manuel Tavares (Pintor e aguarelista português, 1911-1974), Nazaré (Portugal), 1965.



Vieste como um barco carregado de vento



Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitetura fria do estaleiro
onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos
que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.



Maria do Rosário Pedreira,
in 'O Canto do Vento nos Ciprestes',
Gótica Ed., 2001.

 

 Manuel Tavares, "O arranjo das redes - Nazaré", 1965, Aguarela sobre papel.
 

Pores do sol


Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espetáculo extraordinário. 
 
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte mm um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, oeste ar tão carregado de salitre que toma a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados ...
 
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do forte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer... 

Há na areia uns charcos onde se reflete o universo – o céu, a luz, o poente. Não bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde, que a noite vai empolgar não tarda, os charcos, entre a areia húmida e escura, teimam em guardar a luz concentrada e esquecida. 

Em todo o dia, o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos de poeira e sol misturados, água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas. Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária. 

Agora este, teatral, com largas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero e a montanha roxa ao fundo prestes a desvanecer-se... 

Agora é prata, daqui a pouco é oiro, e quando o Sol desaparecer de todo, ainda o horizonte fica por muito tempo iluminado. Oiro desvanecido e pó de água que ascende do mar. Um pouco de névoa e dois jatos projetados no céu – verde e oiro, oiro e verde. 

Esta tarde, o Sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode, iluminando o espaço e a água cor de chumbo. 

Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O Sol desce pouco e pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa a meus pés, na espuma ensanguentada, e chega ao Sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora direitos ao céu! 

 

segunda-feira, 11 de março de 2024

"A Bucólica Margem" - Poema de Egipto Gonçalves

 
 
Armando Aguiar (Pintor português, n. 1964), Rio Douro, Porto e Vila Nova de Gaia, s.d.


A Bucólica Margem


Sento-me então a olhar o rio,
os pensamentos formam cardumes
que contra a corrente se insurgem
mas as águas são inexoráveis;
olhando-as, a superfície cintila,
propaga-se como se fossem notas
de um piano na garupa de um cavalo
que se dirige para o mar.

O Douro bebe as cores da cidade,
sobre elas eu abro o coração
em que te encontras, as colinas
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos
é momento de pausa: as coisas
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar
como tudo o que a memória não reteve.

Mas este rio
já foi longamente folheado, nele
escrevemos
o romance que nos deu uma casa,
nos cortou o cabelo, nos afastou
das rugas, nos entregou o azul
(tecido, nuvem, divã, janela...)
o voo das artérias, lugar do corpo,
portas que amanhecem, espelho
onde fazemos fluir a vida.
Acordes
da guitarra que forja o horizonte,
que guia o sinuoso voo das gaivotas
e acaricia a pele que rasga atalhos
no interior dos sonhos. Estarei
vivo enquanto assim me guardar
teu coração. E no seu lucilar,
esta água imita o fogo
que devora sombras e escombros,
libertando a asa que no sangue
respira. A foz está próxima,
mas o horizonte é o teu olhar.
No leitor do carro, a guitarra flexível
sublinha o que divago; os acordes
disparam,
encontram-me na trajetória do seu alvo.


Egito Gonçalves, A Ferida Amável,
Campo das Letras, 2000.

 

 
Armando Aguiar, Rio Douro, Porto e Vila Nova de Gaia, s.d.

«Uma ida ao Porto é sempre uma lição de portuguesismo, tanto mais rica quanto mais raramente lá se vai. É indispensável – claro! – um mínimo de contacto reiterado com esse lar da nação para nele vermos algumas das significações latentes que enriquecem a nossa consciência de práticas.» — Vitorino Nemésio
 

domingo, 10 de março de 2024

"Cantiga" - Poema de Manuel Bandeira


Inês Dourado (Pintora portuguesa, n. 1958), Ericeira, Portugal, 2019,
Aguarela sobre papel. 
 


Cantiga


Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.


Manuel Bandeira
, 
 
 

Inês Dourado, Carvoeiro Beach VII (Algarve, Portugal), 2020,
Óleo sobre Tela, 60x70x2 cm.

 
 
Poema do Beco
 
 
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
 

 Manuel Bandeira, 
 
 
Inês Dourado, Aldeia de Benagil (Lagoa, Algarve, Portugal), 2022,
Óleo sobre tela, 38 x 55 cm.
 

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes.
O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.


Bernardo Soares (Heterónimo de Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego, fragmento 451, ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim, 11ª ed.
 

sábado, 9 de março de 2024

"Penas" e "Fases da Vida" - Poemas de Fernando Caldeira


 
Gregorio Prieto (Pintor e desenhista espanhol, 1897-1992), Maniquí del pájaro, 1927,
Óleo sobre lienzo, 59.7 x 79.5 cm, Museo Gregorio Prieto.
 
 

Penas

Se eu soubesse que voando
alcançava o que desejo,
mandava fazer as asas,
que as penas são de sobejo

 Cant. Popul.

Como diferem das minhas
as penas das avezinhas,
que de leves, leva o ar!
As minhas pesam-me tanto,
que às vezes já nem  o pranto
lhes alivia o pesar.

O passarinho tem penas,
que em lindas tardes amenas
o levam por esses montes,
de colinas em colinas,
ou nas extensas campinas
a descobrir horizontes!

Com elas vive folgando;
tem penas apenas quando
alguma pena lhe cai;
mas a essa pena afaz-se,
entretanto, a outra nasce,
e tudo esquece e... lá vai.

E as minhas penas não caem
nem voam nunca, nem saem
comigo desta amargura!
Mostram-me apenas na vida
A estrada, já conhecida,
trilhada pelos sem ventura.

Passam dias, passam meses
passa o ano muitas vezes
sem que uma pena se vá!...
E, se uma vai, mais pequena,
ao depois nem vale a pena
porque mais penas me dá.

São bem felizes as aves!
como são leves, suaves,
as penas que Deus lhe deu!
Só as minhas pesam tanto!...
Ai! se tu soubesses quanto!...
Sabe-o Deus e sei-o eu.


Fernando Caldeira (1841-1894)
Em: A Vida elegante: O Jornal das Senhoras,
Ano: 1909 / Edição 00001


Gregorio Prieto, Los maniquíes, 1932, Óleo sobre lienzo, 191 x 193 cm.
Museo Fundación Gregorio Prieto



Fases da Vida

 
Abri meus olhos ao raiar da aurora
e parti. Veio o sol, e então, segui-a
a sombra, que eu julgava guiadora,
a minha própria sombra fugidia.

E foi subindo o sol; Ao meio dia,
escondeu-se-me aos pés a sombra; agora,
se volvo o olhar onde passei outrora,
vejo-a seguir-me, a sombra que eu seguia.

A gente é o sol de um dia; sobe, avança,
passa o zénite e vai na imensidade
apagar-se do mar, onde se lança.

E a vida é a própria sombra; meia idade,
somos nós que a seguimos, e é a Esperança;
depois segue-nos ela: é a Saudade.
 

Fernando Caldeira,
in A Circulatura do Quadrado,
Edições Unicepe, 2004. 
 

sexta-feira, 8 de março de 2024

"Cantiga de Amor" - Poema de Manuel Bandeira



Charmaine Olivia
 (Contemporary artist, born in Southern California, 1988),
 Marilyn Monroe (American actress, model and singer, 1926–1962).


Cantiga de Amor 


Mulheres neste mundo de meu Deus
Tenho visto muitas — grandes, pequenas,
Ruivas, castanhas, brancas e morenas.
E amei-as, por mal dos pecados meus!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!

Andei por São Paulo e pelo Ceará
(Não falo em Pernambuco, onde nasci)
Bahia, Minas, Belém do Pará...
De muito olhar de mulher já sofri!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!

Atravessei o mar e, no estrangeiro,
Em Paris, Basileia e nos Grisões,
Lugano, Gênova por derradeiro,
Vi mulheres de todas as nações.
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!

Mulher bonita não falta, ai de mim!
Nenhuma porém, tão bonita assim!


Manuel Bandeira (1886–1968), Poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986 - p. 418-419.

 


Charmaine Olivia
, Secret Life of Marilyn Monroe, 2015.


Marilyn Monroe
 
 
Atriz norte-americana, e um dos grandes símbolos sexuais do cinema, nascida a 1 de junho de 1926, em Los Angeles, na Califórnia, e falecida a 5 de agosto de 1962, também na Califórnia. De seu nome verdadeiro Norma Jean Mortensen, viveu uma infância atribulada, com o pai a abandonar o lar e a mãe a sofrer problemas mentais. Educada num orfanato, casou-se aos 16 anos com um homem que lhe infligia maus tratos. Torna-se operária fabril e mais tarde modelo de pin-ups
Em 1946, é contratada pela 20th Century Fox como figurante, participando nessa condição em filmes como The Shocking Miss Pilgrim (1947), The Asphalt Jungle (Quando a Cidade Dorme, 1950), All About Eve (Eva, 1950) e Monkey Business (A Culpa Foi do Macaco, 1952). 
Foi Howard Hawks quem reparou no seu potencial, colocando-a como protagonista ao lado de Jane Russell na comédia Gentlemen Prefer Blondes (Os Homens Preferem as Louras, 1953). O filme é um sucesso retumbante, elevando Monroe à categoria de «diva loura» e de símbolo sexual. 
Depois de filmar o western River of No Return (Rio Sem Regresso, 1954), teve um casamento mediático com a estrela do basebol Joe Di Maggio, ligação que durou 18 meses. 
Filmou pela primeira vez sob a orientação de Billy Wilder em The Seven Year Itch (O Pecado Mora ao Lado, 1956), um grande êxito a nível internacional. Apostada em consagrar-se como atriz dramática, decide matricular-se no Actors Studio, tornando-se colega de Montgomery Clift, de quem se torna grande amiga.
Em Nova Iorque, conhecerá o dramaturgo Arthur Miller com quem se casará em finais de 1956. Com o seu contrato reforçado, protagoniza a comédia Bus Stop (Paragem de Autocarro, 1956) e The Prince and the Showgirl (O Príncipe e a Corista, 1957), mas o último falharia nas bilheteiras. Quase simultaneamente, a sua vida pessoal torna-se muito instável: o seu casamento com Miller estava a passar por uma crise, obrigando a atriz a refugiar-se no álcool e nas drogas. Será Billy Wilder quem a convencerá a interpretar aquele que seria o papel mais célebre da sua carreira: o de Sugar Kane, uma intérprete musical que sonha em casar com um milionário na comédia Some Like It Hot (Quanto Mais Quente Melhor, 1959). Em seguida, contracenou com Yves Montand em Let's Make Love (Vamo-nos Amar, 1960).
Vítima de sucessivas depressões nervosas, a fragilidade da atriz começou a causar-lhe numerosos dissabores profissionais: durante as rodagens de The Misfits (Os Inadaptados, 1961), foram constantes as suas discussões com o realizador John Huston e Clark Gable, para além de numerosos atrasos. Paralelamente, circulavam boatos das suas ligações afetivas clandestinas com o presidente John Kennedy e com Robert Kennedy. 
No dia 5 de agosto de 1962, um mês depois de ter sido despedida por George Cukor das filmagens de Something's Got to Give (1962), a atriz foi encontrada inanimada na cama do seu apartamento. A autópsia revelou suicídio por ingestão de barbitúricos, mas a hipótese de crime ainda hoje é ventilada. (daqui)
 

quarta-feira, 6 de março de 2024

"Merina" - Poema de Cesário Verde



Bryce Cameron Liston
(American painter, b. 1965), A Winter's Tale.
 


Merina


Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.


Cesário Verde
(1855 - 1886), Obra Completa,
Edição de Joel Serrão, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 122. 
 
 
Bryce Cameron Liston, Home Before Dark.
 

"Casaco é aquilo que a criança usa quando a mãe sente frio." 

Ambrose Bierce, citado em "Baby's First Year Journal:
A Day-To-Day Guide to Your Baby's Development ...‎
" - Página 168, 
A. Christine Harris - Chronicle Books, 1999.