segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

"O cerimonial das mãos" - Poema de José Jorge Letria



Pierre-Auguste Renoir (French artist, 1841–1919), Madame Monet and her Son, 1874,
National Gallery of Art


O cerimonial das mãos 


Mãe, onde foi que deixaste a outra metade,
a que anunciava o sol na turvação das noites,
a que iluminava a sombra no cerimonial das mãos?
Em que côncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projetada
para fora de mim como um sonho evadindo-se
do círculo de medos em que a fúria se jogava?
Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava à revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa,
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe, eu pedia uma trégua ao vento
e um punhal à chuva e com ambos queria
separar de mim a metade incandescente
que à beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.
Mãe, eu vejo-me outro nesta cama
que guarda os instrumentos liquefeitos da insónia
e sei que não sou eu quem lá está,
que não sou eu que lá quero estar. 


José Jorge Letria
in "A Tentação da Felicidade"




[In July and August 1874 Manet vacationed at his family’s house in Gennevilliers, just across the Seine from Monet at Argenteuil. The two painters saw each other often that summer, and on a number of occasions they were joined by Renoir. While Manet was painting this picture of Monet with his wife Camille and their son Jean, Monet painted Manet at his easel (location unknown). Renoir, who arrived just as Manet was beginning to work, borrowed paint, brushes, and canvas, positioned himself next to Manet, and painted Madame Monet and Her Son (National Gallery of Art, Washington, D.C.).]
 (daqui)
 

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