quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

"Poema da voz que escuta" - Políbio Gomes dos Santos


 
Henri Lebasque (French Post-Impressionist painter, 1865–1937), Sunset on Pont-Aven
(Young Man by the Sea)
, Coucher de soleil sur Pont-Aven, 1894,
Musée Thyssen-Bornemisza (Madrid).

Poema da voz que escuta


Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro – a Vida.

Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.


Políbio Gomes dos Santos
in 'Voz que Escuta'



'Voz que Escuta' de Políbio Gomes dos Santos


"Voz Que Escuta", obra póstuma, publicada em 1944 pela coleção Novo Cancioneiro, segundo o original do texto poético premiado nos Jogos Florais Universitários de Coimbra, em 1939.
Reunindo apenas cinco composições, três das quais datadas do ano da sua morte, e atestando a possibilidade de conjugar, na poética neorrealista, desde os seus primórdios, intenção social com qualidade estética, a pequena obra realizada por Políbio Gomes dos Santos dá "a certeza de um poeta de real merecimento" (Namorado, Joaquim - prefácio a Voz Que Escuta, 1944).
 
A consciência de uma morte próxima ou mesmo de viver numa situação limiar, atestada pelo uso do pretérito perfeito na primeira composição ("Chamam-me lá em baixo,/ São as coisas que não puderam decorar-me:/ As que ficaram a mirar-me longamente/ e não acreditaram","Poema da Voz Que Escuta"), ou pelo apelo a uma companheira que venha desenhar com o poeta "o sofrimento/ dos últimos poemas consentidos", em "Vem, Dentre As Mulheres", a expressão da impotência para a ação, corroborada pelo uso do imperfeito do conjuntivo ou do modo condicional, na composição "Canção do Lago Secando" ("Ainda se eu/ [...] Pudesse ter no mapa mancha azul e portos/ E ser útil à navegação...// Finando-me abriria a justa e verdadeira causa/ À minha sede e à minha direção."), ou a composição de uma alegoria da sua vida como balão "Murchando,/ Poisando na água pantanosa/ De além", na última composição, tragicamente intitulada "Epitáfio", conferem ao sujeito poético uma visão dolorosamente lúcida sobre a realidade e sobre a sua condição.
É esta perspetiva agónica que o dota de um dom visionário, em "Radiografia", considerado por Alexandre Pinheiro Torres um dos poemas maiores do neorrealismo (cf. p. 82,) e onde, lembrando O Sentimento Dum Ocidental de Cesário Verde, o autor funde a sua decomposição física com a putrefação material e humana da cidade. (daqui)
 

Políbio Gomes dos Santos (daqui) 

Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 7 de Agosto de 1911 — Ansião, 3 de Agosto de 1939), foi um poeta português.
Prematuramente desaparecido, com 27 anos, vítima de tuberculose, Políbio Gomes dos Santos deixou uma curta obra que é, não obstante, reconhecidamente a de um grande poeta. 

De próxima influência presencista, pelo tom intimista em que se recorta a sua poesia e está bem presente no seu único livro em vida, As Três Pessoas (1938), não deixou de emergir em Políbio uma intenção social que cedo aproximou o poeta do Neorrealismo, ao lado de Joaquim Namorado e Fernando Namora, em Coimbra, desde 1935.

Assíduo colaborador em publicações periódicas, depois de assinar algumas poesias numa folha de Ansião, sua terra natal, participou num conjunto de jornais e revistas de Coimbra (Ensaio, Coimbra, Ágora, Página de Gente Moça in AIdeia Livre, Página dos Novos in Independência d'Águeda, Cadernos da Juventude, Páginas Literárias in Gazeta de Coimbra), no âmbito de movimentos culturais juvenis dos anos trinta que foram a génese da corrente Neorrealista. 
Da individualidade fundadora, essa poesia abre-se aos outros e fala de (a) outras vozes, a (de) uma imensa humanidade que reside nesse "quadro negro – a Vida."

Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta,
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.


Em 1944, os seus parceiros de percurso acolhem na coleção "Novo Cancioneiro" um título póstumo, Voz que Escuta, cujo trabalho poético reforça a escrita laboriosa que era a de Políbio e que encontra lastro, por exemplo, na criação de Carlos de Oliveira que profundamente o admirava. (daqui)
 

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