segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

"A uma cerejeira em flor" - Poema de Eugénio de Andrade


 
 
 
 
A uma cerejeira em flor 


Acordar, ser na manhã de abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração duma cereja.

 in "As mãos e os frutos", 1948 
 
 
 
 Osias Beert 
Osias Beert, Breakfast still life
 
 
Fruto
 
 
 Em cada fruto a morte amadurece,
deixando inteira, por legado,
uma semente virgem que estremece
logo que o vento a tenha desnudado.
 in "As mãos e os frutos" , 1948
 
 
Osias Beert, Still Life of fruit in a Wan-li Bowl, 1607


Os frutos 
 
 
 Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
in "Ostinato Rigore", 1964
 
 
Osias Beert, Still life on a plain wooden table: a large Wanli porcelain dish of fruit, a pewter dish of fruit,
 medlars and nuts, a moth, two venetian-style glasses of wine, one white and the other red, a knife with
 an ornamental handle, white grapes, a roll of bread and half a peach.
 
 
Osias Beert, Still Life of Fruit and a Plate of Oysters
 
 
 
 
Osias Beert, Still life with grapes, wild strawberries, plums and a monkey
 
 
Osias Beert, Still life of porcelain vessels and pewter plates with sweets and chestnuts


Osias Beert, Still-life with oysters


Osias Beert, Still Life with Various Vessels on a Table, c. 1610

 
 Osias Beert, Dishes with Oysters, Fruit, and Wine, c. 1620/1625, National Gallery of Art 


Despedida

 
Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia. 
 
 
in "Ostinato Rigore" (1964), Assírio & Alvim

 
[O quarto volume da coleção Obras de Eugénio de Andrade corresponde a Ostinato Rigore, um dos livros mais marcantes na sua obra poética.

Como diz Eduardo Lourenço, no seu admirável texto Oiro e Melancolia, justamente dedicado a este livro, A sandália de Eugénio de Andrade, poeta do instante eterno em que o meio-dia humano se incarna miraculosamente, é menos ostentatória que a de Empédocles. E mais lusitanamente acordada com a essência de uma lírica que, atentando melhor, e contrariamente ao que poderia parecer, inverte menos a sua música profunda de um canto ingénuo da nossa alma galaica, vibrando anónima com a Natureza, do que a potencia magicamente como resposta e refúgio contra o mundo sem inocência que nos coube. 

É com este breve poema “Colhe/ todo o oiro do dia/ na haste mais alta/ da melancolia” que integra hoje a nossa memória cultural que o poeta de Ostinato Rigore se despede do seu verão.] (Daqui)
 
 

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