A uma cerejeira em flor
Acordar, ser na manhã de abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração duma cereja.
in "As mãos e os frutos", 1948
Osias Beert
Osias Beert, Breakfast still life
Fruto
Em cada fruto a morte amadurece,
deixando inteira, por legado,
uma semente virgem que estremece
logo que o vento a tenha desnudado.
deixando inteira, por legado,
uma semente virgem que estremece
logo que o vento a tenha desnudado.
in "As mãos e os frutos" , 1948
Os frutos
Assim eu queria o poema:
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
fremente de luz, áspero de terra,
rumoroso de águas e de vento.
in "Ostinato Rigore", 1964
Osias Beert, Still life on a plain wooden table: a large Wanli porcelain dish of fruit, a pewter dish of fruit,
medlars and nuts, a moth, two venetian-style glasses of wine, one white and the other red, a knife with
an ornamental handle, white grapes, a roll of bread and half a peach.
Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.
in "Ostinato Rigore" (1964), Assírio & Alvim
[O quarto volume da coleção Obras de Eugénio de Andrade corresponde a Ostinato Rigore, um dos livros mais marcantes na sua obra poética.
Como diz Eduardo Lourenço, no seu admirável texto Oiro e Melancolia, justamente dedicado a este livro, A sandália de Eugénio de Andrade, poeta do instante eterno em que o meio-dia humano se incarna miraculosamente, é menos ostentatória que a de Empédocles. E mais lusitanamente acordada com a essência de uma lírica que, atentando melhor, e contrariamente ao que poderia parecer, inverte menos a sua música profunda de um canto ingénuo da nossa alma galaica, vibrando anónima com a Natureza, do que a potencia magicamente como resposta e refúgio contra o mundo sem inocência que nos coube.
É com este breve poema “Colhe/ todo o oiro do dia/ na haste mais alta/ da melancolia” que integra hoje a nossa memória cultural que o poeta de Ostinato Rigore se despede do seu verão.] (Daqui)
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