quarta-feira, 28 de abril de 2021

"O portão" - Poema de Lêdo Ivo

 
Max PechsteinThe Red House, 1911 - Oil on canvas, 88.9 × 68.5 cm,
Art Institute of Chicago
 
 
O portão

 
O portão fica aberto o dia inteiro
mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.
Não espero nenhum visitante noturno
a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.
A noite é tão silenciosa que me faz escutar
o nascimento dos mananciais nas florestas.
Minha cama branca como a via-láctea
é breve para mim na noite negra.
Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta
derruba uma estrela e enxota um morcego.
O bater de meu coração intriga as corujas
que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma
do dia e da noite paridos pelas águas.
No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.
Sou o vento que apalpa as alcachofras
e enferruja os arreios pendurados no estábulo.
Sou a formiga que, guiada pelas constelações,
respira os perfumes da terra e do oceano.
Um homem que sonha é tudo o que não é:
o mar que os navios avariaram,
o silvo negro do trem entre fogueiras,
a mancha que escurece o tambor de querosene.
Se antes de dormir fecho o meu portão
no sonho ele se abre. E quem não veio de dia
pisando as folhas secas dos eucaliptos
vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos
que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou
— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham
e se agitam na escuridão, e gritam as palavras
que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim
e ao doce esterco fermentado.
os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas
e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.
Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite.
Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho
protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras
e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.
À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.
Embora o meu portão vá amanhecer fechado
sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,
e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.


Lêdo Ivo
,
do livro “A noite misteriosa”, 1982.
 
 
Max PechsteinDie Schwalben sammeln sich (Ückeritz i. Pommern), 1949
 
 
 A andorinha faz
a sua casa
no vento. 

Albano Martins
(Haicai / Haikai) 
 
 
Max Pechstein, Self-Portrait with Pipe and Hat, 1918
(Expressionism, Fauvism


Max Pechstein (Zwickau, 1881-1955) foi um pintor expressionista alemão e artista gráfico. Formado na Academia de Dresden e na Kunstgewerbeschule, em 1906 foi integrado em Die Brücke
Trabalhou num expressionismo moderado, influenciado pela pintura fauvista francesa, especialmente por Matisse
Em 1908 deslocou-se a Berlim onde participou da fundação da New Secession (1910), o que o levou a ser expulso de Die Brücke em 1912. 
Os seus temas favoritos relacionam-se ao exotismo e à união com a natureza, motivo pelo qual visitou as ilhas Palau do Pacífico em 1914. 
Ligou-se com Der Blaue Reiter, sendo um dos membros do grupo que mais cedo alcançou a popularidade. 
Após a Primeira Guerra Mundial fez parte do Novembergruppe (1918), ensinando na Academia das Artes da Prússia até a chegada do nazismo, que o retirou dos seus cargos e o condenou ao ostracismo. Em 1945 foi reabilitado e trabalhou como professor da Escola Superior de Artes Figurativas.
Max Pechstein faleceu em Berlim Ocidental, a 29 de Junho de 1955. (Daqui)


Max Pechstein, A yellow house  
 
 
Expressionismo
Movimento Artístico
 
 
O Expressionismo designa um movimento cultural que se manifestou nos mais diversos campos artísticos como as artes visuais, o teatro, a literatura e o cinema. Nas artes plásticas (pintura, escultura, fotografia) e na arquitetura, esta tendência, de dimensão internacional desenvolveu-se a partir dos finais do século XIX, tendo conhecido uma importante expansão na Alemanha, no contexto de angústia e de agitação social que antecedeu a Primeira Guerra Mundial.

O Expressionismo apresentou-se em oposição tanto ao sentido cientista do Impressionismo como à vocação decorativa da Arte Nova e caracteriza-se pela procura de formas artísticas que exprimissem mais livre e subjetivamente os sentimentos do artista em relação à realidade. Os quadros tornaram-se o retrato intenso de emoções, transmitidas através de cores violentas e de pinceladas vincadas e as esculturas apresentavam formas agressivas, modelações vincadas e texturas rudes.

As primeiras manifestações que se podem considerar precursoras do movimento expressionista datam de meados de 1880. Entre estas contam-se as obras do pintor holandês Vincent Van Gogh, marcante pelo uso intenso dos valores cromáticos e texturais, e do francês Toulouse-Lautrec, nomeadamente pelos temas abordados e pela liberdade e espontaneidade do desenho. Os pintores Edvard Munch, expoente do Expressionismo nórdico, e James Ensor representaram outro momento de afirmação dos fundamentos da estética expressionista, como temas dramáticos e obsessivos e pela violência das formas e da cor.

Todas estas referências vão cruzar-se no contexto artístico da Alemanha de inícios do século, encontrando eco em artistas que procuram afirmar novos caminhos.

A primeira corrente organizada dentro no interior do movimento expressionista foi o grupo Die Brücke (A Ponte), formado em Dresden em 1905, por Ernst Ludwig Kirchner, Karl Schmidt-Rottluff, Emil Nolde (1867-1956) e Max Pechstein (1881-1955) entre outros, com objetivo de agregar as várias tendências de vanguarda, rejeitando o academismo, o Impressionismo, o Jugendstil e a Secessão. Procurava, através de uma expressão direta, emotiva e muitas vezes violenta, a representação da realidade social e política desse período.

Mais tarde, em 1912, é formado em Munique o grupo Der Blaue Reiter (O cavaleiro azul) pelos pintores Wassily Kandinsky e Franz Marc, que reúne um vasto número de artistas alemães, suíços e russos, constituindo um novo período de afirmação do Expressionismo, mais ligado às manifestações do inconsciente e à atenção aos valores cromáticos e formais.

A corrente Nova Objetividade (Die Neue Sachlichkeit) formada no período entre as duas guerras mundiais, num clima de intensos problemas sociais e de desilusão e decadência de determinadas formas da cultura e da civilização ocidental, assumiu a recuperação e o ressurgimento do Expressionismo, após a interrupação ditada pela Primeira Guerra Mundial. Teve com protagonistas os pintores Otto Dix (1891-1969), George Grosz (1893-1959) e Max Beckmann (1884-1950), cujos trabalhos denunciam uma atitude eminentemente satírica e de crítica social.

A expansão internacional do Expressionismo acentua-se precisamente nesta altura, destacando-se os trabalhos de artistas como Oskar Kokoschka (1886-1980) e Arnold Schoenberg (1874-1951) na Áustria, e de Georges Rouault (1871-1958) e Chaïm Soutine (1894-1943), em França.

A pintura expressionista foi uma das principais precursoras do movimento do Expressionismo Abstrato e do Informalismo, surgidos respetivamente nos Estados Unidos da América e na Europa nas décadas de quarenta e cinquenta.

A escultura expressionista foi grandemente impulsionada pela obra do francês Auguste Rodin. De facto, um dos principais representantes deste movimento no campo da escultura foi Antoine Bourdelle (1861-1929), um dos discípulos do mestre francês. Destacam-se ainda alguns trabalhos do americano Jacob Epstein (1880-1959) e do alemão Ernst Barlach (1870-1938), representando geralmente figuras humanas de carácter maciço às quais imprimem diferentes tipos de distorção e uma modelação livre e intencionalmente imperfeita. (Daqui)
 

 
Max Pechstein, Springtime, 1919
 
 
Mais cedo ou mais tarde
o silêncio virá
perguntar por ti. 


Albano Martins
(Haicai / Haikai) 
 

terça-feira, 27 de abril de 2021

"O(fí)cio" - Poema de Aleilton Fonseca

 
 
Oscar Pereira da Silva (Brasil, 1867–1939), O Ferreiro, s/d,  
Coleção particular 
 

O(fí)cio 


há bigornas
espalhadas
por todo                 espaço
e um fogo larva
que nasce em si mesmo magma
sem nenhuma preocupação com as horas

oficina - casa do ofício, ócio, cio
acima um aviso breve
permitindo a entrada de pessoas estranhas
ao serviço
                e martelos
                usados ou virgens
e muito
ferro signo
                para fundir

portanto
o ferreiro não dorme
e malha o gesto em sangue quente,
como era no
princípio
       e agora
                e sempre:
                                poesia


Aleilton Fonseca 
 
 
Oscar Pereira da Silva, Autorretrato, 1936
 
 
 A Insónia
 
Furo a terra fria.
No fundo, em baixo do mundo,
trabalha-se: é dia.
 
(Haicai / Haikai)
 

Oscar Pereira da Silva, Paisagem Rural, óleo sobre madeira
 
 
Outubro
 
Cessou o aguaceiro.
Há bolhas novas nas folhas
do velho salgueiro.
 
(Haicai / Haikai)
 
 

domingo, 25 de abril de 2021

"Um adeus português" - Poema de Alexandre O’Neill



José Malhoa, O Ateliê do Artista (Antes da Sessão) ou Descanso do Modelo, 1893/1894,
 

Um adeus português 


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
E avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
 

Alexandre O'Neill,  
  no livro ''No Reino da Dinamarca'', 1958
 
 
 No Reino da Dinamarca, «Poesia e Verdade»,
 Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., Lisboa, 
Relógio d’Água, 1997. (Daqui
 
 
 A história de um Poema
Alexandre O’Neill

Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. 

 A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: ‑ Turismo.
 
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: ‑ Se calhar V.   quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte. 
 
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa). 
 
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português». 
 
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.» 
 
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
 
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um 
novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.  
Tempos. 

Alexandre O'Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984
 
 
Alexandre O’Neill

"Há mar e mar, há ir e voltar."   
 
[Ficaram famosos alguns slogans publicitários da sua autoria, e este que foi encomendado pelo Instituto de Socorros a Náufragos, para uma campanha de prevenção dos afogamentos nas praias portuguesas, converteu-se em provérbio.] 
 

 - Alexandre O’Neill -
 
Poeta português, Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu a 19 de dezembro de 1924, em Lisboa, e morreu a 21 de agosto de 1986, na mesma cidade. 
Para além de se ter dedicado à poesia, Alexandre O'Neill exerceu a atividade profissional de técnico publicitário. 
Fundador do Grupo Surrealista de Lisboa, com Mário Cesariny, António Pedro, José-Augusto França, diretamente influenciado pelo surrealismo bretoniano, desvinculou-se do grupo a partir de Tempo de Fantasmas (1951), embora a passagem pelo surrealismo marque indelevelmente a sua postura estética. 
A sua distanciação em relação a este movimento não obstou a que um estilo sarcástico e irónico muito pessoal se impregnasse de algumas características do Surrealismo, abordando noutros passos o Concretismo, preocupando-se não em fazer "bonito", mas sim "bom e expressivo".
Para Clara Rocha, a poesia de Alexandre O'Neill coincide com o programa surrealista a dois níveis: "a libertação total do homem e a libertação total da arte. O que implica: primeiro, uma poesia de 'intervenção', exortando os homens a libertarem-se dos constrangimentos de toda a ordem que os tolhem e oprimem (familiares, sociais, morais, quotidianos, psicológico, políticos, etc.); segundo, a libertação da palavra de todas as formas de censura (estética, moral, lógica, do bom senso, etc.)" (cf. ROCHA, Clara - prefácio a Poesias Completas, 1982, p. 12). 
Para Fernando J. B. Martinho (retomando um artigo de Quadernici Portoghesi), a diferença de O'Neill relativamente à poética surrealista situa-se na "preferência, relativamente à oposição 'falar/imaginar', pelo primeiro polo", numa consequente atenção dispensada, nos livros posteriores a Tempo de Fantasmas, como No Reino da Dinamarca ou Abandono Vigiado, "à sociedade portuguesa de que vai traçar como que a radiografia, surpreendendo-a na sua mediocridade, nos seus ridículos, nos seus pequenos vícios provincianos" (MARTINHO, Fernando J. B., op. cit., 1996, pp. 39-40). 
Nessa medida, e ainda segundo o mesmo crítico, se "o surrealismo ortodoxo põe a sua crença na existência de um 'ponto do espírito em que [...] o real e o imaginário' deixariam 'de ser percebidos contraditoriamente', em Alexandre O' Neill toda a busca parece centrar-se na 'vida' e no 'real'" (id. ibi, p. 40).
Recebeu, pelas suas Poesias Completas, o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários (1983). (Daqui)
 
 
 
 José Malhoa (1855 – 1933),  O Fado, 1910
 
[“O Fado”, de 1910, é considerada uma das obras-primas do autor e está em exposição no Museu do Fado. Nesta obra, Malhoa retrata Amâncio, um conhecido marginal ou “fadista” – então sinónimo e tocador de guitarra da Mouraria – e Adelaide da facada, uma mulher de má vida, conhecida por exibir no rosto uma cicatriz provocada por uma navalha. Este magnifico quadro é uma evocação da boémia e da marginalidade – da sociedade lisboeta do inicio do século XX -, representando não só a melancolia do género musical que o inspirou, mas toda uma classe social que raramente era representada em obras de arte na época.] (Daqui)
 
 
- José Malhoa -
 
Pintor português, nascido a 28 de abril de 1855 nas Caldas da Rainha, José Malhoa frequentou a Academia de Belas Artes, sendo discípulo de Lupi e Anunciação.

Assumiu integralmente a pintura em 1881, após o sucesso do quadro Seara Invadida. Imprimiu uma certa crueza à tradição romântica de que fora herdeiro, pintando o quotidiano do homem do campo, impregnado de sentimentalismo cristão e de um pitoresco paganismo, ou ainda o meio popular dos fadistas. Os Bêbados (1907) e O Fado (1910) figuram entre as suas obras mais conhecidas.

Por último, representou o outono (1918) com uma sensibilidade já impressionista. O prestígio atingido ainda em vida valeu a José Malhoa numerosas consagrações e homenagens, assim como muitos discípulos e seguidores. Veio a falecer em Figueiró dos Vinhos em 1933. (Daqui)


 
 
José Malhoa pretende estabelecer uma sensação outonal através de uma cortina de pequenas pinceladas luminosas. Ramalho Ortigão entende esta obra como o resultado da influência de Claude Monet na pintura portuguesa e mais tarde, a crítica situa-o como exemplo intencional do divisionismo da estética pós-impressionista.
Na verdade, há uma tentativa de mostrar o indizível de uma paisagem em jogos luminosos, e de sobrepor, à evocação do motivo, jogos de pincelada solta, geradora de luz, característica de uma divulgação internacional, e tardia, do impressionismo de 1870. Como se Malhoa quisesse provar a sua capacidade de ser moderno.
No entanto, foi um exercício empírico e sem consequências, revelando a sua proverbial facilidade plástica sem pôr em causa um culto fixado nos valores celebratórios de um específico naturalismo. 
 
Maria Aires Silveira  (Daqui)
 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

"Já?" - Poema de Alberto Pimenta

 
 
Charles Demuth (American, 1883–1935),  The Tower, 1920
Columbus Museum of Art  (Movement: Precisionism)



Já? 


já tentaste praticar o bem
fazendo mal?
já tentaste praticar o mal
fazendo bem?
já tentaste praticar o bem
fazendo bem?
já tentaste praticar o mal
fazendo mal?
já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?
já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?
já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?
e o contrário, já tentaste?
já?
seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga. 


Alberto Pimenta
,
in 'Prodigioso Acanto' 
 
[Alberto Pimenta (Porto, 26 de dezembro de 1937), escritor, poeta e ensaísta, distingue-se na literatura contemporânea pelo caráter crítico e irreverente da sua obra, bem como pela diversidade dos meios de expressão artística: poesia, ficção, teatro, linguística, crítica, ensaio, happenings, performances, colagens.]
 
 
Charles Sheeler, Skyscrapers, 1922  
 
 
Preciosismo 
Movimento Artístico 
 
 
O Preciosismo (em inglês Precisionism) foi o primeiro movimento de arte moderna nos  Estados Unidos e uma contribuição americana para a ascensão do Modernismo. O estilo Precisionist, que surgiu pela primeira vez após a Primeira Guerra Mundial e estava no auge de sua popularidade durante a década de 1920 e início da década de 1930, celebrou a nova paisagem americana de arranha-céus, pontes e fábricas numa forma que também foi chamada de “Realismo Cubista”
 
O termo Precisionism terá sido referido pela primeira vez, em 1927, pelo diretor do Museu de Arte Moderna Alfred H. Barr. Os artistas que pintavam com este estilo também eram chamados de Immaculates (Imaculados), que era um termo mais utilizado naquele período. Seus dois praticantes mais famosos foram Charles Demuth e Charles Sheeler.
 
Este estilo de pintura, com influências no Cubismo, Futurismo e Orfismo, é marcado pela precisão e simplicidade das linhas nos cenários arquitetónicos industriais e urbanos desprovidos de atividade humana. O movimento expressa uma espécie de veneração para a era industrial, mesmo que não seja um componente fundamental do estilo. O grau de precisão nos detalhes é considerável. Charles DemuthCharles Sheeler, Preston Dickinson, Louis Lozowick e Georgia O'Keeffe eram especialistas em precisão. Até George Ault, Ralston Crawford e Gerald Murphy estão associados ao estilo.
 
Georgia O'Keeffe permaneceu fiel aos ideais do Precisionism até a década de 1960, embora seus trabalhos mais conhecidos não estejam ligados a esse movimento. Seu marido, o fotógrafo Alfred Stieglitz, era um respeitado mentor do grupo.
 
O movimento não inclui artistas fora dos Estados Unidos e, embora um manifesto não tenha sido criado, os próprios artistas formaram um grupo coeso e organizaram as exposições juntos, entre 1920 e 1930. 
 
A arte do Preciosismo teria uma influência indireta nos estilos posteriores conhecidos como Realismo mágico, Arte Pop e Fotorrealismo. (Daqui) 
 
 
Preston Dickinson, Industry II,  c. 1918–1920 
 
 
Progresso?
 
Enorme canhão,
o arranha-céu acompanha
o voo do avião.
 
(Haicai / Haikai)
 
 
 
Preston Dickinson, Factory, c. 1920. Oil on canvas, Columbus Museum of Art
 
 
Praticar uma arte...
 
“Praticar uma arte, não importa como, bem ou mal, é um caminho para fazer sua alma crescer, pelo amor de Deus. Cante no chuveiro. Dance para o rádio. Conte histórias. Escreva um poema a um amigo, mesmo um péssimo poema. Faça isso tão bem quanto puder fazer. Você terá uma enorme recompensa. Você terá criado alguma coisa.”

“Practicing an art, no matter how well or badly, is a way to make your soul grow, for heaven's sake. Sing in the shower. Dance to the radio. Tell stories. Write a poem to a friend, even a lousy poem. Do it as well as you possibly can. You will get an enormous reward. You will have created something.”
 
Kurt Vonnegut
, de “Um homem sem Pátria”, 2005
Tradução de Fabio Malavoglia 
 
 

[TALLAHASSEE, FL - 1986: Author Kurt Vonnegut poses at the Turnbull Conference Center on the campus of Florida State University after a Distinguished Lecture Series speech in 1986 in Tallahassee, Florida. (Photo by Mickey Adair/Getty Images)]

Kurt Vonnegut nasceu em Indianápolis, nos Estados Unidos, em 1922. É autor de trinta romances, vários ensaios e peças de teatro, muitos dos quais com adaptações ao cinema e à televisão.
É um dos poucos grandes mestres da literatura norte-americana contemporânea. Sem ele, a própria expressão «literatura norte-americana» perderia parte do sentido. Morreu no dia 11 de Abril de 2007.

 


'Um Homem Sem Pátria', de Kurt Vonnegut
 
[A edição portuguesa, em tradução de Susana Serras Pereira para a Tinta-da-China
tem como subtítulo Memórias da América de George W. Bush.]

«Um Homem sem Pátria é como que uma versão, escrita para adultos, do Principezinho do século XXI.»  — John Freeman

Um Homem Sem Pátria, o primeiro livro do autor desde 1999, demonstra que Kurt Vonnegut permanece entre os grandes nomes da literatura norte‑americana contemporânea.

Composto por curtos ensaios, generosamente ilustrados com desenhos assinados pelo autor, Um Homem Sem Pátria revela‑nos um Vonnegut vociferante de indignação e, ao mesmo tempo, em afetuosa comunicação com os seus compatriotas americanos. O autor dá voz ao seu entusiasmo por manifestações humanas tão diversas como os blues ou o empenho desinteressado dos bibliotecários. Mas, sobretudo, dá voz ao seu desgosto face àquilo que diagnostica como a subversão do processo democrático propiciada pelo governo de George W. Bush, denuncia as «personalidades psicopáticas» dessa administração e reflete sobre a corrupção e os recentes escândalos corporativos.

Um registo por vezes humorístico, outras vezes atormentado, e sempre, sempre inconformado. Eis o mote: «Não há razão para que o bem não possa triunfar sobre o mal, basta que os anjos se organizem mais ou menos como a máfia.» (Daqui)

 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

"Soneto de amor" - Poema de Lêdo Ivo

 
Paul Ranson (French painter and writer, 1861-1909), The Blue Room, ca. 1900
 

Soneto de amor
 
Doce fogo do amor, como me queimas
e me fazes arder por entre neves
como se eu fora a pálida fogueira
acesa pelo sol na noite breve.

Doce rival do fogo verdadeiro,
quanto mais rompo contra as tuas chamas,
elas se alastram mais na minha cama
e, guerreiro, por ti sou guerreado.

Mais me queima teu frio, mais intacto
respiro e te combato; e fatigado
da luta em que me abrasas, mais descanso.

Oculto nos lençóis, fogo de estio,
escorres, ledo e manso como as águas
— a água serena do amoroso rio.
 
 
do livro “Crepúsculo civil”, 1990


 
 Retrato de Paul Ranson, vestido de Nabi, 1890, por Paul Sérusier,
 
[Paul-Élie Ranson (1861-1909) foi um pintor e gravador francês ligado ao grupo Les Nabis ou Nabis.]
 
 
Nabis
 
Nabis designa um pequeno grupo de artistas franceses, formado na década de 1880, que, sob influência da linguagem e técnica pictórica do pintor francês Paul Gauguin, procuram um caminho para uma arte espiritual de dimensão universal, constituindo uma das tendências do movimento simbolista. A designação "nabis", derivada termo hebraico "navi" que significa profeta, deve-se ao poeta Cazalis.

Sérusier, enquanto estudante na academia Julian, foi bastante influenciado por Gauguin e procurou divulgar a sua obra e os respetivos fundamentos formais, reunindo em torno de si um grupo de jovens pintores ávidos pela definição de novos caminhos estéticos. A mostra coletiva de pinturas de artistas impressionistas e sintetistas, realizada em Paris em 1889 permitiu a este grupo o contacto direto com uma mais vasta obra pictórica. Mais tarde descobrem a obra de Van Gogh, de Paul Cézanne e de Toulouse-Lautrec. De forma mais ou menos direta, cruzam ainda influências da cultura popular, das estampas japonesas, dos trabalhos de Gustave Moreau (1826-1898) e dos pintores pré-rafaelitas, assim como dos simbolistas Puvis de Chavannes (1824-1898) e Odilon Redon.

De entre os pintores que integraram o movimento destacava-se o grupo formado pela Academia Julian de Paris, liderado por Pierre Bonnard (1867-1947) e Maurice Denis (1870-1943), o teórico do grupo e autor de uma obra de carácter místico com referências à Escola de Pont-Aven.

Édouard Vuillard (1868-1940) foi o mais interessante dos pintores formados na Escola de Belas-Artes de Paris.

Bonnard e Vuillard, os artistas mais interessantes do grupo, constituíram uma fação independente, à qual se juntou o pintor Henri Rousseau (1844-1910). Desenvolvem trabalhos que procuram acentuar sensações primitivas através de formas em arabesco e de um cromatismo plano que recusa a sensação de profundidade e dilui o contraste entre figura e fundo. Denotando a influência das estampas japonesas e do japonismo, este grupo anuncia em simultâneo a linguagem pictórica do Fauvismo. Abordaram temáticas que incluíam a paisagem e a cena de género (da cultura parisiense ou da vida familiar).

O suíço Félix Vallotton (1865-1925) junta-se ao movimento em 1892, desenvolvendo uma obra que se caracteriza pela representação de figuras alongadas e estilizadas e pela acentuação de uma linearidade de carácter ornamental.

Para além dos pintores, faziam parte do grupo os escultores LacombeAristide Maillol (1894-1944). As suas obras, marcadas ideologicamente pelo culto da beleza e da saúde, representam figuras de forte plasticidade e sensualidade, através do recurso a formas curvas e a uma modelação cuidada.

Tal como se verificava frequentemente nos movimentos artísticos dos finais do século XIX ou de inícios do século XX, a atividade artística não se fixou nas formas expressivas da pintura a da escultura, estendendo-se ao campo das artes decorativas (como o vitral, o cartaz, a ilustração, a gravura) e do teatro. Nesta área é de salientar o trabalho de Félix Vallotton que realizou inúmeros trabalhos de gravura a preto e branco e inventou uma novo processo de xilogravura, que permitia a simplificação do traço e da linha.

A Revue Blanche, fundada pelos irmãos Nathanson, constituiu o instrumento de reflexão filosófica e de divulgação de alguns dos trabalhos pictóricos.

Os membros do grupo Nabis expuseram juntos pela última vez em 1899, numa altura em que a acentuação das divergências linguísticas entre as suas obras levaria a que alguns destes pintores se ligassem a outros movimentos, como o expressionismo alemão.

Alguns ensaios críticos e teóricos foram produzidos por alguns dos elementos do grupo, de entre os quais se destacam Maurice Denis, com os seus livros Teorias e Novas Teorias, publicados respetivamente em 1913 e em 1922 e Paul Sérusier (1864-1927), que escreveu ABC da pintura, editado em 1921. (Daqui)