Nos teus olhos altamente perigosos
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
E avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
No Reino da Dinamarca, «Poesia e Verdade»,
Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., Lisboa,
Relógio d’Água, 1997. (Daqui)
A história de um Poema
Alexandre O’Neill
Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a
sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família,
para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já
falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris,
onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me
dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim.
A pressão
(ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha
à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que
aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a
própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas
usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a
Paris. Respondi: ‑ Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: ‑ Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um
novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
"Há mar e mar, há ir e voltar."
[Ficaram famosos alguns slogans publicitários da sua autoria, e este que foi encomendado pelo Instituto de Socorros a Náufragos, para uma campanha de prevenção dos afogamentos nas praias portuguesas, converteu-se em provérbio.]