domingo, 25 de abril de 2021

"Um adeus português" - Poema de Alexandre O’Neill



José Malhoa, O Ateliê do Artista (Antes da Sessão) ou Descanso do Modelo, 1893/1894,
 

Um adeus português 


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
E avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
 

Alexandre O'Neill,  
  no livro ''No Reino da Dinamarca'', 1958
 
 
 No Reino da Dinamarca, «Poesia e Verdade»,
 Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., Lisboa, 
Relógio d’Água, 1997. (Daqui
 
 
 A história de um Poema
Alexandre O’Neill

Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim. 

 A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: ‑ Turismo.
 
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: ‑ Se calhar V.   quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte. 
 
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa). 
 
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português». 
 
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.» 
 
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi ficando e passando para as antologias.
 
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar o título do poema para título de um 
novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.  
Tempos. 

Alexandre O'Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984
 
 
Alexandre O’Neill

"Há mar e mar, há ir e voltar."   
 
[Ficaram famosos alguns slogans publicitários da sua autoria, e este que foi encomendado pelo Instituto de Socorros a Náufragos, para uma campanha de prevenção dos afogamentos nas praias portuguesas, converteu-se em provérbio.] 
 

 - Alexandre O’Neill -
 
Poeta português, Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu a 19 de dezembro de 1924, em Lisboa, e morreu a 21 de agosto de 1986, na mesma cidade. 
Para além de se ter dedicado à poesia, Alexandre O'Neill exerceu a atividade profissional de técnico publicitário. 
Fundador do Grupo Surrealista de Lisboa, com Mário Cesariny, António Pedro, José-Augusto França, diretamente influenciado pelo surrealismo bretoniano, desvinculou-se do grupo a partir de Tempo de Fantasmas (1951), embora a passagem pelo surrealismo marque indelevelmente a sua postura estética. 
A sua distanciação em relação a este movimento não obstou a que um estilo sarcástico e irónico muito pessoal se impregnasse de algumas características do Surrealismo, abordando noutros passos o Concretismo, preocupando-se não em fazer "bonito", mas sim "bom e expressivo".
Para Clara Rocha, a poesia de Alexandre O'Neill coincide com o programa surrealista a dois níveis: "a libertação total do homem e a libertação total da arte. O que implica: primeiro, uma poesia de 'intervenção', exortando os homens a libertarem-se dos constrangimentos de toda a ordem que os tolhem e oprimem (familiares, sociais, morais, quotidianos, psicológico, políticos, etc.); segundo, a libertação da palavra de todas as formas de censura (estética, moral, lógica, do bom senso, etc.)" (cf. ROCHA, Clara - prefácio a Poesias Completas, 1982, p. 12). 
Para Fernando J. B. Martinho (retomando um artigo de Quadernici Portoghesi), a diferença de O'Neill relativamente à poética surrealista situa-se na "preferência, relativamente à oposição 'falar/imaginar', pelo primeiro polo", numa consequente atenção dispensada, nos livros posteriores a Tempo de Fantasmas, como No Reino da Dinamarca ou Abandono Vigiado, "à sociedade portuguesa de que vai traçar como que a radiografia, surpreendendo-a na sua mediocridade, nos seus ridículos, nos seus pequenos vícios provincianos" (MARTINHO, Fernando J. B., op. cit., 1996, pp. 39-40). 
Nessa medida, e ainda segundo o mesmo crítico, se "o surrealismo ortodoxo põe a sua crença na existência de um 'ponto do espírito em que [...] o real e o imaginário' deixariam 'de ser percebidos contraditoriamente', em Alexandre O' Neill toda a busca parece centrar-se na 'vida' e no 'real'" (id. ibi, p. 40).
Recebeu, pelas suas Poesias Completas, o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários (1983). (Daqui)
 
 
 
 José Malhoa (1855 – 1933),  O Fado, 1910
 
[“O Fado”, de 1910, é considerada uma das obras-primas do autor e está em exposição no Museu do Fado. Nesta obra, Malhoa retrata Amâncio, um conhecido marginal ou “fadista” – então sinónimo e tocador de guitarra da Mouraria – e Adelaide da facada, uma mulher de má vida, conhecida por exibir no rosto uma cicatriz provocada por uma navalha. Este magnifico quadro é uma evocação da boémia e da marginalidade – da sociedade lisboeta do inicio do século XX -, representando não só a melancolia do género musical que o inspirou, mas toda uma classe social que raramente era representada em obras de arte na época.] (Daqui)
 
 
- José Malhoa -
 
Pintor português, nascido a 28 de abril de 1855 nas Caldas da Rainha, José Malhoa frequentou a Academia de Belas Artes, sendo discípulo de Lupi e Anunciação.

Assumiu integralmente a pintura em 1881, após o sucesso do quadro Seara Invadida. Imprimiu uma certa crueza à tradição romântica de que fora herdeiro, pintando o quotidiano do homem do campo, impregnado de sentimentalismo cristão e de um pitoresco paganismo, ou ainda o meio popular dos fadistas. Os Bêbados (1907) e O Fado (1910) figuram entre as suas obras mais conhecidas.

Por último, representou o outono (1918) com uma sensibilidade já impressionista. O prestígio atingido ainda em vida valeu a José Malhoa numerosas consagrações e homenagens, assim como muitos discípulos e seguidores. Veio a falecer em Figueiró dos Vinhos em 1933. (Daqui)


 
 
José Malhoa pretende estabelecer uma sensação outonal através de uma cortina de pequenas pinceladas luminosas. Ramalho Ortigão entende esta obra como o resultado da influência de Claude Monet na pintura portuguesa e mais tarde, a crítica situa-o como exemplo intencional do divisionismo da estética pós-impressionista.
Na verdade, há uma tentativa de mostrar o indizível de uma paisagem em jogos luminosos, e de sobrepor, à evocação do motivo, jogos de pincelada solta, geradora de luz, característica de uma divulgação internacional, e tardia, do impressionismo de 1870. Como se Malhoa quisesse provar a sua capacidade de ser moderno.
No entanto, foi um exercício empírico e sem consequências, revelando a sua proverbial facilidade plástica sem pôr em causa um culto fixado nos valores celebratórios de um específico naturalismo. 
 
Maria Aires Silveira  (Daqui)
 

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