quarta-feira, 7 de abril de 2021

"Anúncio no Ar" e "Creio termos sido feitos para amar" - Poemas de Egito Gonçalves

 


Harald Sohlberg
, Fisherman's cottage, 1907


Anúncio no Ar

 
Céus, nuvens, ondas, ventos,
dai-me notícias do meu amor norueguês.

Elementos da natureza gastos por tantos versos,
ferralha romântica, brilhai de novo
e trazei-me notícias do meu amor norueguês.

Aquela que eu amei um verão na praia
– pérola cuja ostra era um barco de carvão,
matrícula de Bergen, essa mesma, elementos!,
notícias, notícias do meu amor norueguês.

A que veio dos fiordes e vivia num barco
encostado ao cais, junto de um guindaste;
a que me acendeu a manhã do amor,
a que abriu a porta às tempestades,
a que me deu a chave da invenção…
Existe? Fugiu à ocupação? Morreu prisioneira?

Notícias, notícias do seu rosto que mal lembro,
do seu corpo de caule adolescente…
Notícias do seixo branco que trocámos
com palavras de amor em inglês mal decorado.

Notícias da que foi espiga mal madura,
notícias do meu amor norueguês. 
 
in ‘Viagem com o Teu Rosto’ 
 
 
   Ano: 1980    1ª Edição  
 
 
Poemas Políticos 
(1952-1979)
 
Poemas Políticos reúne grande parte dos poemas de Egito Gonçalves incluídos nos volumes A Viagem com o teu rosto (1958), Os Arquivos do Silêncio (1963), O Fósforo na Palha (1970) ou publicados dispersamente em jornais, revistas e volumes coletivos. 
 
A antologia obedece ao critério de coligir composições consideradas como representativas de uma poesia militante, reflexo de uma situação política de censura e ditadura, ou sugerida por acontecimentos históricos concretos explicitados pelo autor numa "Nota" final à edição. 
 
A descodificação plena dos Poemas Políticos depende, pois, dessa contextualização revelada na "Nota do Autor", sem a qual apenas acederíamos a um sentido parcial ou difuso do texto poético, tanto mais quanto a produção poética sob a censura obrigou a estratégias de ocultação do referente histórico ou político a que as composições aludiam (sobre a distinção entre poema emocional e poema político, cf. Fernando J. B. Martinho - Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa na década de 50, 1996, pp. 380-381). Em algumas composições, a relação entre o enunciado poético e os acontecimentos evocados é concebida de forma intencionalmente enigmática e atravessada por uma imagística surrealizante que tornam, ao leitor que não possua os mesmos denominadores históricos, inacessível o seu contexto concreto como, por exemplo, em "Eleição". 
 
A antologia, que abre com um dos poemas mais conhecidos pela intelectualidade portuguesa da oposição ao regime, e que deu título à publicação Notícias do Bloqueio, faz reviver um contexto de catástrofe bélica e opressão humana, a que o sujeito poético imprime frequentemente uma nota discreta de amarga ironia ("É necessário inventar uma gigantesca correia-sem-fim / que produza diariamente milhares de soldados, / que taylorize o exército e bata os recordes de produção." (in "Edital"). 
 
A certeza de que um dia todas as atrocidades serão passado, que a libertação virá mais tarde ou mais cedo condenam o sujeito poético a uma vida adiada ("Escreverei mais tarde / saudades da infância / e de pedras e rosas / sem dúbios sentidos. // Escreverei mais tarde / de um anel muito simples / e das tardes plenas / em que o amor se inscreve. // Mas agora deixai-me/ chorar sobre estas lágrimas.", in «Mais tarde sim») e a suportar indefinidamente o «Rolar do tempo», as "longas horas" em que vela o estertor dos homens, numa espera cansada e que parece já inconcebível ("Creio termos sido feitos para amar / tranquilos. Creio sermos velhos / e termos já sofrido o necessário/ para comer em paz e ver o sol / cada manhã subir um novo dia / sem angústia alicerçada no nascente", in "Creio termos sido feitos para amar"). 
 
A parte final da coletânea é reservada essencialmente a composições que homenageiam personagens ou poetas contemporâneos que tiveram um destino trágico. (Daqui)
 
 
Harald Sohlberg, Street in Røros
 

Creio termos sido feitos para amar


 
Creio termos sido feitos para amar
tranquilos. Creio sermos velhos
e termos já sofrido o necessário
para comer em paz e ver o sol
cada manhã subir um novo dia
sem angústia alicerçada no nascente.
Creio termos gritado já bastante
em todos estes séculos — estes duros
anos que passaram — Navegamos
em círculo, morremos, renascemos...
Fugazes as tangentes que traçamos 
e falharam a alegria. Tanto tempo
e nova morte espreita. A mão
habitual nos comprime as artérias.
Sempre os beijos longos nos escapam.
Não é então para nós? Não é ainda
o tempo de sorrir?

Egito Gonçalves
,
Os Arquivos do Silêncio
 
 

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